14 setembro 2025

Uma crônica de Ruy Castro

A voz de 40 graus de febre
Que homem seria capaz de encarar uma mulher com a voz de Iris Lettieri? Nenhum de nós, mortais
Ruy Castro/Folha de S. Paulo   


Os obituários sobre a locutora Iris Lettieri, morta no dia 28 último aos 84 anos, foram técnicos e profissionais. Informaram que ela morrera de infarto em seu apartamento em Botafogo e que, em 1976, depois de breve carreira como apresentadora de telejornais, fora contratada pela Infraero para anunciar as chegadas e partidas dos aviões no Aeroporto Internacional do Rio. E que, então, se tornara "a voz do Galeão".

É verdade. Mas é pouco. Duas gerações de usuários do Galeão, nacionais e estrangeiros, se apaixonaram por Iris. Na verdade, apaixonaram-se por sua voz, sem saber quem estava por trás dela. E talvez fosse melhor não saber, porque era a voz de uma mulher deslumbrante, imperturbável, inatingível, consciente de seu supremo poder de sedução. Uma voz de febre de 40 graus, como se saísse de um subterrâneo acetinado, em que até as pausas diziam coisas. Que homem seria capaz de encarar essa mulher? Não nós, mortais.

Os sobreviventes dos anos 60 a conheciam dos jornais da TV Tupi e, de óculos, que usava no dia-a-dia, nos anúncios das Óticas Fluminense. Mas poucos ligavam o nome à figura —a mulher da TV não tinha a sua voz, e a voz do aeroporto não tinha rosto nem nome. Nem precisava. Ao ouvir, no Galeão, "Varig... Vôo 276... Para Cuiabá... Embarque... Portão cinco...", queríamos embarcar com ela, para Cuiabá ou para onde fosse.

Na vida real, Íris era bonita, mas nada que lembrasse a voz do Galeão —mesmo porque, fora do microfone, não a usava. Falava com suave entonação natural, algo mais aguda, e achava graça quando, ao sabê-la de 1,60m, as pessoas não escondiam sua decepção. Parecia até se envaidecer com isso. Era a prova de que, apenas com a voz, virava a cabeça dos homens.

Na única vez em que nos falamos, na loja Modern Sound, explicou-me que sua locução era feita de palavras isoladas, depois rearranjadas eletronicamente para se adaptar aos aeroportos de outras cidades que agora a usavam. Iris não era mais apenas a voz do Galeão. Era a voz do Brasil.

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Leia: A palavra e o gesto https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/minha-opiniao_14.html

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