Desdolarização, “corrida ao ouro” e o Brasil
Estreando sua coluna no Portal Grabois, economista
analisa a ordem financeira vigente e aponta caminhos para ampliar a autonomia
dos países
Maryse Farhi/Portal Grabois www.grabois.org.br
O sistema
monetário internacional vem sendo dominado pelo dólar mericano desde a Segunda Guerra
Mundial. À época, a moeda americana era lastreada em ouro. Em 1971, o presidente
Nixon decidiu suspender a conversibilidade do dólar em ouro, com a moeda
passando a ser estritamente fiduciária, baseada na confiança dos agentes.
Crise da hegemonia do dólar
O papel da
moeda americana como instrumento de reserva começou a ser questionado na
chamada “grande recessão” (crise de 2008) em função do “afrouxamento monetário”
adotado pelo Federal Reserve (FED) — banco central dos Estados Unidos — e
retomado na pandemia de 2020/2022. Com essa política, a autoridade monetária
americana visava injetar liquidez no sistema financeiro ao adquirir títulos da
dívida pública emitidos pelo Tesouro e ativos lastreados em hipotecas nos
balanços dos bancos através da impressão de moeda. Os ativos no balanço do FED
passaram de US$ 2,25 trilhões em 2008 para US$ 8,6 trilhões no início de 2022.
O
distanciamento do dólar acentuou-se consideravelmente, ao iniciar-se a guerra
Rússia/Ucrânia, com o rápido congelamento de cerca de US$ 300 bilhões das
reservas em moeda estrangeira da Rússia depositados em bancos da União Europeia
e dos Estados Unidos e a decisão de utilizar os rendimentos desses valores para
financiar a ajuda militar à Ucrânia. Pouco tempo depois, o acesso de bancos e
instituições financeiras russas ao sistema de comunicação entre instituições financeiras
para a troca de informações e a liquidação de transações internacionais chamado
Swift foi proibido.
O movimento de
“transformação do dólar em arma” (weaponisation)
teve impacto profundo entre os maiores credores dos Estados Unidos. A não
renovação dos títulos públicos americanos que foram vencendo, aliada a vendas
no mercado secundário, reduziu a participação percentual do Japão de 17,70% em
2020 para 12,40% em 2024, enquanto a da China foi de 15,17% para 8,87% do total
da dívida pública dos EUA. Nesse período, o dólar se desvalorizou e a
inclinação da curva de juros se acentuou com alta relativa dos juros de longo
prazo.
Corrida ao ouro
Bancos
centrais de diversos países, em particular o da China, passaram a comprar ouro
levando a uma alta de seu preço de aproximadamente 122% de início de 2020 para
cá.
O FMI aponta
que, em 2000, ativos em dólar representavam mais de 70% das reservas globais,
enquanto em 2025 tinham se reduzido a 58%. Criada em 2014, a Shanghai Gold
Exchange já conquistou o 1º lugar no mundo na negociação de ouro físico. A
fulgurante expansão dos volumes de ouro nos balanços bancários levou, em 1º de
julho de 2025, o intitulado Basileia 3 – acordo internacional de supervisão e
regulação dos bancos – a incluir o ouro como “Tier one” (ativos sem risco) nos balanços
bancários junto com os títulos públicos de curto prazo em dólar e em euro.
Algumas
especificidades desse aumento de demanda por ouro devem ser destacadas por
serem reveladoras de sua magnitude e profundidade.
O incremento de
demanda por esse metal deu-se quase exclusivamente no segmento de ouro físico,
deixando de lado o mercado dito de papel onde as trocas são baseadas em seus
certificados de custódia. De posse das barras de ouro, os compradores têm se
apressado em repatriá-las para seus países de origem, quebrando, assim, uma
prática amplamente adotada de deixá-lo depositado em Londres ou em Nova Iorque.
A busca pelo metal precioso tornou-se intensa ao ponto do London Bullion Market
Association (LBMA) ter de prolongar seu prazo de entrega que era de um dia útil
para 8 semanas, citando uma penúria de caminhões e equipes de segurança. Países
como Alemanha, França e Itália, que mantinham seus estoques de metal precioso
nos Estados Unidos, têm solicitado sua repatriação.
Alternativas ao sistema dominado pelos EUA
Paralelamente,
tem se desenvolvido a constituição de novos
sistemas de transferência internacional de ativos financeiros inicialmente
para permitir que a Rússia, excluída do Swift, pudesse manter relações
financeiras com o resto do mundo. Sistemas como o russo System for Transfer of
Financial Messages (SPFS) e o chinês Cross Border Interbank Payment System
(CIPS) estão em processo de implantação. Um interessante projeto colaborativo
internacional, liderado pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS) e os
bancos centrais de Hong Kong, da Tailândia, dos Emirados Árabes Unidos e o da
China planeja utilizar moedas digitais de Bancos Centrais (CBDCs) em uma
plataforma de blockchain para permitir pagamentos transfronteiriços mais
rápidos, baratos e eficientes. Entretanto, a participação do BIS foi
interrompida após uma declaração do presidente dos Estados Unidos
Donald Trump contrária aos Brics e a seus esforços de realizar trocas
comerciais sem a participação do dólar.
Nesse quadro,
tem se desenvolvido a discussão sobre a criação de uma moeda que servisse
somente para trocas entre os países do grupo denominado BRICS, sejam eles
membros ou aspirantes. Alguns analistas preveem que essa moeda poderia ser o
renminbi chinês ou uma nova moeda lastreada em ouro. O saldo financeiro das
trocas de mercadorias ou transferências financeiras entre os países membros
seria liquidado em ouro. Essa previsão baseia-se na construção em curso pela
China de cofre fortes destinados a armazenar ouro e, eventualmente prata, em
países de forte concentração de seu comércio exterior ou de trocas financeiras,
o que lhe permitiria agilizar as operações em sua própria moeda.
Cenários futuros
Esses
movimentos configuram a rotação de um sistema com moeda fiduciária para outro
tipo. Se a busca por uma moeda com lastro em ativos reais para a sua função de
reserva de valor, é bem mais complicado imaginar a adoção de uma moeda que
reproduza o padrão ouro, dada sua inerente rigidez. É possível antever que o
sistema monetário baseado na predominância do dólar americano deverá ser
substituído por um sistema multipolar. Em princípio, tal transição não deve ser
muito rápida, salvo no caso de uma acentuada crise financeira que acelere sua
plena implantação.
Às voltas com
sanções de natureza política com os Estados Unidos, o Brasil deve
necessariamente promover uma extensa diversificação de suas reservas em
divisas, que no fim de 2024 eram constituídas em 78,45% em dólares americanos –
em particular títulos do Tesouro americano e por apenas 3,55% em ouro. Para
tanto, deveria adotar medidas que permitam reduzir a exportação dos elevados
volumes de ouro legalmente minerados no Brasil e restaurar o monopólio de
compra do ouro pela Caixa Econômica Federal em regiões de pequenos garimpos.
Torna-se igualmente necessário que o país dê passos concretos rumo à adesão aos
sistemas de pagamentos internacionais não sujeitos aos ditames dos Estados
Unidos.
Maryse
Farhi é
economista formada pela Universidade de Paris I Sorbonne, com mestrado em
Economia Financeira (Paris X–Nanterre) e doutorado pela Unicamp. Professora
doutora aposentada da Unicamp, dedica-se ao estudo de temas como derivativos
financeiros, política monetária, taxa de câmbio, independência do Banco
Central, liberalização, economias emergentes e crises financeiras.
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