Entre os resultados e a urgência de um novo paradigma de desenvolvimento
Se Belém defendeu uma COP da implementação, cabe agora transformar o Mutirão em ação cotidiana
Inamara Melo/Vermelho
Sediar a COP30 em Belém, cidade no coração da Amazônia e uma das capitais brasileiras a apresentar os maiores indicadores de desigualdades, com cerca de 55,8% da população morando em favelas, era uma manobra arriscada, com desafios logísticos e operacionais significativos: capacidade hoteleira limitada para receber os mais de 50 mil visitantes esperados, preços elevados de hospedagem, pressão sobre a mobilidade urbana, necessidade de obras e de planos de segurança e resposta a emergências. Nos dias que antecederam o evento, a cobertura jornalística registrou o risco de exclusão de delegações de países mais pobres, a busca por soluções como hospedagem em cruzeiros e a exigência de planos de segurança no padrão de grandes eventos.
Apesar disso, a aposta do presidente Lula em realizar uma “COP da Amazônia” foi politicamente certeira: trouxe a floresta e seus povos ao centro da agenda climática, forçou a diplomacia a ouvir territórios historicamente periféricos e conferiu simbolismo concreto aos temas de conservação, justiça climática e transição justa. A cidade, de povo hospitaleiro e uma diferenciada gastronomia, pulsou sob a pressão dos movimentos sociais e do calor intenso, com sensação térmica que beirava os 40ºC e chuvas torrenciais. Mas o pacote final aprovado em Belém e a visibilidade internacional reforçam que o risco logístico não anulou o ganho político e civilizatório de pautar o futuro do clima no coração da Amazônia. E este acabou sendo um problema menor a ser enfrentado pelo país-sede e presidente da Conferência do clima na busca por um marco robusto, dez anos depois do Acordo de Paris.
Um momento crítico para o planeta e para o multilateralismo
Foram dias tensos. E intensos. A COP30 ocorreu sob a confirmação de que 2024 foi o ano mais quente da história, com a temperatura média global cerca de 1,55–1,60°C acima dos níveis pré-industriais — o primeiro ano-calendário a ultrapassar 1,5°C. Isso não significa, tecnicamente, romper a meta de longo prazo do Acordo de Paris (medida em médias de 20 anos), mas é um sinal inequívoco de que riscos severos — eventos extremos, perdas de vidas em populações vulneráveis, colapso de ecossistemas e extinção de espécies — estão se intensificando. Relatórios e comunicados recentes reforçam a escalada: gases de efeito estufa em máximos históricos, conteúdo de calor oceânico recorde, probabilidade elevada de novos anos acima de 1,5°C até 2029 e impactos irreversíveis por séculos se a trajetória atual persistir, a caminho para um aumento de 2,6 a 3,1 graus até 2100.
Esse cenário emerge e retroalimenta um modelo de desenvolvimento predatório que, ao longo dos últimos séculos e sob a hegemonia dos países do Norte Global, produziu desigualdade, consumismo e devastação ambiental. A urgência de uma concertação internacional efetiva na COP30 era, portanto, indiscutível, mas, nem por isso, provável.
A governança multilateral atravessa uma fase de tensões crescentes que resultam de sua incapacidade em transformar os compromissos em medidas concretas e ainda de uma sobreposição de múltiplas crises (conflitos armados, instabilidade econômica, questões energéticas) que competem com a agenda climática. Além disso, a dificuldade em construir um consenso para enfrentar desafios transnacionais como o clima foi aumentada pela ausência dos Estados Unidos, que não enviaram delegação oficial de alto nível a Belém — fato inédito em 30 anos de COP, ainda que autoridades estaduais e locais tenham comparecido para marcar presença.
Neste ponto, há que analisar os debates no âmbito da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) sob o ponto de vista dialético. Nas salas de negociação em que os diplomatas são acompanhados de perto por observadores e jornalistas, ainda que não haja menções claras sobre o papel do capitalismo para o agravamento dos eventos extremos e muito menos sobre a necessidade de sua superação para lidar com a emergência climática, este é um espaço onde não se pode negar a ciência e o problema global da insustentabilidade inerente ao modelo de desenvolvimento tradicional. Ali, ouvem-se vozes que ousam defender a promoção do desenvolvimento aliado à justiça ambiental e social como condição para o futuro à humanidade. Isso torna o multilateralismo uma necessidade.
Responsabilidades comuns, porém diferenciadas.
A COP30 evidenciou que não há vencedores em um planeta em superaquecimento. A presidência brasileira inovou ao propor uma COP com 4 pilares: negociações, cúpula de líderes, agenda de ação e agenda de mobilização, numa expectativa de ir além de palavras já ditas. Após estimular organizações internacionais para a apresentação de planos de aceleração de soluções climáticas, o espírito do Mutirão Global — nome dado ao pacote político de Belém — convocou a cooperação, o respeito às diferenças de capacidades e circunstâncias (princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas) e a busca pelo benefício mútuo, com medidas concretas. Em especial, países desenvolvidos precisam assumir mais responsabilidades na provisão de financiamento, tecnologia e apoio à transição justa, enquanto todos elevam a ambição de suas metas nacionais.
Esse enfoque ficou explícito nos textos que tratam de financiamento, de indicadores de adaptação e do mecanismo de transição justa, desenhados para colocar as pessoas no centro — sinalizando um deslocamento do debate de “o que fazer” para o “como fazer” com cooperação concreta.
Os ganhos da COP30 em meio às tensões
Em meio a tensões geopolíticas sem precedentes, 195 Partes aprovaram o “Pacote de Belém”, composto por 29 decisões que renovam o compromisso coletivo e aceleram a implementação do Acordo de Paris. Entre os principais ganhos:
- Triplicar o financiamento para adaptação até 2035 e concluir o Baku Adaptation Roadmap, com um conjunto de 59 indicadores para a Meta Global de Adaptação (GGA). A adoção desses indicadores consolida, pela primeira vez no âmbito do Acordo de Paris, um marco global para orientar, medir e acelerar a adaptação climática.
- Mecanismo de transição justa, colocando equidade e pessoas no centro; fortalecimento de cooperação técnica, capacitação e compartilhamento de conhecimento.
- Planos para implementar e elevar ambição: Global Implementation Accelerator e Belém Mission to 1,5°C, voltados a fechar a lacuna entre NDCs atuais e a trajetória compatível com 1,5°C.
- Diálogo sobre comércio e clima por três anos, reconhecendo tensões de medidas unilaterais e a necessidade de coordenação para evitar “guerras verdes” e viabilizar transições justas.
- Reconhecimento e liderança de povos indígenas, comunidades tradicionais e afrodescendentes, com avanços em gênero e participação.
- Tropical Forests Forever (Fundo/Facility para conservação permanente de florestas tropicais) como mecanismo inovador — pauta reforçada pelo Brasil e países amazônicos.
É claro que ficaram grandes lacunas: Apesar de ter sido uma proposta do próprio presidente Lula, não houve consenso para incluir nos documentos formais um mapa do caminho para o afastamento dos combustíveis fósseis nem um mapa do caminho para interromper e reverter o desmatamento. Com mais de 80 países apoiando uma linguagem explícita acerca do tema e mais de 80 se opondo a ela, a proposta foi apresentada como iniciativafora do processo formal, a ser liderada pela Presidência brasileira. A ambição agregada dos NDCs segue aquém do necessário para 1,5°C, e o financiamento em escala ainda é bem abaixo da demanda: segundo o Adaptation Gap Report 2025 (PNUMA), os países em desenvolvimento precisam, em média, de US$ 310 bi por ano até 2035 apenas para ações de adaptação à mudança do clima, quando se fala como meta a ser alcançada algo em torno de US$ 120 bi.
Sem um novo paradigma de desenvolvimento, os ODS não serão alcançados
A ciência e o próprio balanço da COP30 convergem: sem uma revisão radical da concepção de desenvolvimento, não se alcançará a Agenda 2030 e seus ODS. Não basta reduzir emissões; é preciso transformar os fundamentos econômicos que hoje geram desigualdade, consumo predatório e destruição ambiental. Esse novo paradigma — ancorado em justiça social, natureza como infraestrutura viva, economias de baixo carbono e coerência entre comércio, finanças e clima — torna-se uma escolha inevitável para a sustentabilidade da humanidade e um pré‑requisito para uma comunidade de futuro compartilhado. Foi exatamente isso que o Pacote Político de Belém tentou sinalizar: é preciso passar à implementação, com mecanismos, métricas e cooperação reforçada.
A COP da Amazônia como ponto de inflexão
Belém revelou as dificuldades práticas de levar a maior negociação climática do mundo para uma cidade fora dos circuitos habituais — e mostrou por que isso é necessário: aproximar o debate dos territórios que já vivem os impactos e carregam soluções. O resultado político foi balanceado (ganhos relevantes, lacunas críticas), mas afirmou o multilateralismo em tempos adversos e “colocou o elefante na sala” ao expor polêmicas e o equilíbrio de forças entre os países do norte e sul global. A tentativa foi a de colocar ferramentas novas à disposição para fazer o que a década exige: implementar em escala e reorientar o desenvolvimento.
Para que o espírito de Belém não se perca, algumas tarefas são inadiáveis:
- Cobrar NDCs alinhadas a 1,5°C, com planos nacionais e financiamento claro, exigindo que os países ricos – os maiores emissores de GEE – acelerem a implementação de seus compromissos climáticos.
- Fortalecer, em todos os países, um modelo de Governança Multinível, multissetorial e inclusiva que articule governos nacionais e locais para a implementação das medidas de mitigação e adaptação que pedem execução territorial.
- Conectar finanças, comércio e clima, evitando medidas unilaterais que punem os mais vulneráveis e travam a transição, uma vez que a crise climática e a pauta ambiental passaram a impactar a agenda econômica, social e política de maneira definitiva.
- Operacionalizar a transição justa e a justiça climática: assegurando a integridade da informação e o engajamento da sociedade para a busca de empregos, proteção social e da participação de mulheres, grupos vulneráveis e comunidades na governança.
Se Belém defendeu uma COP da implementação, cabe agora transformar o Mutirão em ação cotidiana — nas cidades, nas empresas, nas florestas e nos parlamentos — até que a nova economia desloque definitivamente a velha, com a certeza de que este sim é um pré-requisito para a construção de um futuro compartilhado da humanidade.
Referências principais (seleção)
- Resultados oficiais e pacote de Belém: COP30 aprova Pacote de Belém; Agência Gov – decisões e balanço; UNFCCC – Belém Political Package; UN News – síntese dos resultados; Carbon Brief – análise dos desfechos; WRI Brasil – avanços e frustrações.
- Contexto científico de 1,5°C (2024): WMO – 2024 mais quente, ~1,55°C; Copernicus – primeiro ano acima de 1,5°C; Royal Meteorological Society – explicação e implicações; UN News – probabilidades de novos anos >1,5°C.
- Belém: logística e segurança: Climate Change News – pressão por soluções de hospedagem; ESCAP’IA – infraestrutura de hospedagem e soluções; COP30 Brasil – modelo de segurança integrado; Crisis24 – riscos e operações.
- Multilateralismo sob pressão e ausência dos EUA: Brookings – reforma do multilateralismo; Atlantic Council – custos da fragmentação; ABC News – ausência oficial dos EUA e presença subnacional.
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