O referendo inglês: o irrecusável "não", suas perspectivas e riscos
Por Haroldo Lima*, no
portal Vermelho
O mundo recebeu nesse 23
de junho de 2016, uma notícia impactante: o Reino Unido optou por afastar-se da
União Europeia, UE, o poderoso bloco de 28 países do qual participava há 43
anos. Era um resultado possível, mas não esperado.
O quadro
ficava mais confuso ao se observar os vencedores e vencidos. Os dois grandes
partidos do Parlamento Britânico, o Conservador, que está no governo, e o
Trabalhista, que chefia a oposição, dividiram-se e saíram chamuscados.
O
Primeiro Ministro do Partido Conservador, David Cameron, um conservador
moderno, que promoveu a união civil entre pessoas do mesmo sexo, defendeu o
"ficar", para que seu país não saísse da UE, diferentemente da maior
parte de direita de seu partido. Perdeu, e anunciou que vai renunciar.
O
Partido Trabalhista, que se posicionou pelo "ficar", também perdeu, e
seu líder Jeremy Corbyn, da ala esquerda do partido, tido como admirador de
Marx, está sendo criticado por não ter se esforçado bastante na defesa do
"ficar". O Partido da Independência do Reino Unido, o UKIP, de
extrema direita, sustentou a posição de "sair", o "Brexit"
(British exit, ou saída britânica). Foi vitorioso. Esse partido tinha, até
2014, um deputado na Câmara dos Comuns. Nas eleições de 2013 foi o terceiro
partido mais votado.
O
Partido Comunista Britânico, sem representação parlamentar, sustentou a
campanha do "sair", mas, em vez de levantar o "Brexit",
defendido pela direita, sustentou o "Lexit" (Left Leave, saída pela
esquerda). Foi vitorioso.
A
grande mídia mundial destacou o entusiasmo de forças ultradireitistas pelo
resultado do referendo, como a empolgação de Marine Le Pen, da França, Donald
Trump, dos EUA, e equivalentes da Holanda, Suécia, Hungria, Polônia e outros.
Na França e Itália direitistas já falam em promover referendos semelhantes. E
como os países do Reino Unido votaram diferentemente, Inglaterra e País de
Gales pelo "sair" e Irlanda do Norte e Escócia pelo
"ficar", pode ocorrer o desmantelamento do próprio Reino Unido.
Mas,
por que toda essa convulsão?
Na
história recente da humanidade, a Europa foi palco de guerras frequentes e
sangrentas. Duas dessas se alastraram mundo afora e se transformaram na
Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Vidas, às dezenas de milhões, foram
ceifadas.
Quando
a II GM terminou, patenteou-se a ideia de se encontrar um mecanismo onde as
contradições intereuropeias pudessem ser tratadas sem o apelo à guerra. Seis
países, em 1957, entre os quais França, Itália e Alemanha (na época, só
Ocidental), assinaram o Tratado de Roma e criaram a Comunidade Econômica
Europeia, CCE, para exercitar o Mercado Comum Europeu. Entre 1973 e 1986, mais
seis países se incorporaram ao bloco, o Reino Unido entre eles, e em 1992,
através do Tratado de Maastricht, foi criada a União Europeia, que depois veio
a aglutinar 28 países.
Todo
esse processo de unificação era visto pelo povo, não apenas como o entendimento
entre mercados, naturalmente necessário, mas, como o expediente para a melhoria
de vida da população, para a ascensão social das vastas camadas empobrecidas,
para a abertura de bons e numerosos postos de trabalho, para a garantia de
direitos. Havia, por parte do povo, o sonho de se chegar a uma espécie de
"Suécia global".
O
problema é que as diretrizes da UE refletiam cada vez mais o pensamento das
elites financeiras europeias e mundiais, que mandavam na UE, conduzida pela
chamada "troika", o Fundo Monetário Internacional, FMI, ( por onde
entravam os EUA), o Banco Central Europeu, BCE, e a Comissão Europeia. E o que
no início tinha certa tendência à distribuição de rendas, cedeu lugar a um
movimento irrefreável de concentração de riquezas.
A
crise capitalista, iniciada em 2008, precipita dificuldades e sobretudo os
países não situados na Europa central são gradativamente empurrados a
desajustes. Trabalhadores e camadas médias veem suas condições de vida
corroídas.
É
quando cresce a insatisfação, o desassossego e massas vão às ruas na Grécia,
Espanha, Portugal, Itália e outros. O sonho da socialdemocracia estava dando
lugar a um pesadelo.
Neste
momento, a UE passa a responder aos problemas do povo como se fosse uma
Federação de Bancos: dívidas tem que ser pagas, e com juros; há carência de
recursos? cortem gastos, diminuam serviços, suspendam garantias, congelem
salários, reduzam direitos. Tudo isto passa ter nome bonito:
"austeridade", que é como é chamada essa política fria, insensível,
antipopular, de defesa do mundo rentista, das elites burocráticas financeiras,
dos bancos.
Essa é
a razão de fundo para se entender o que ocorreu no referendo último do Reino
Unido, e é a base para se compreender o que está se passando na Europa. A UE
frustrou a esperança de vida de grande parte da gente que dizia unir. O
bem-estar foi substituído pela "austeridade".
E as
reações se estenderam. Pela esquerda, em alguns países, como a Grécia; pela
direita, em outros, como na França, onde cresce a Frente Nacional de Marine Le
Pen. Na Grécia, a UE foi implacável com os inauditos esforços de uma saída mais
à esquerda proposta pela Syriza (Coalizão da Esquerda Radical) através de seu
líder Alexis Tsipras, e a Grécia foi praticamente liquidada.
As
imigrações recentes, gravemente aumentadas, colocou mais um ingrediente
complicador no problema social. Milhões de pessoas, banidas de seus
territórios, sobretudo pelas guerras de agressão movidas pelos Estados Unidos
contra a Síria, Líbia, Iraque, Afeganistão, significavam mais mão de obra para
trabalhar, mais gente para viver. A direita pegou carona nesse fenômeno e
hasteou nova bandeira - "contra a imigração" - apresentando-a como
luta em defesa dos trabalhadores nacionais.
O
referendo no Reino Unido embutia esses componentes, variados e controversos. A
direita, que cresce em diversos cantos da Europa, não cresce por ser direita,
mas por estar conseguindo apresentar-se como força que protege os trabalhadores
ameaçados em seus empregos e em suas vidas. E o faz dessa maneira reacionária,
primária e “anti-solidária”, a de querer expulsar ou impedir a presença do
imigrante, supostamente para defender o nativo. Só que isso tem um potencial de
enganação enorme. Sua luta para "sair" da UE tem essa motivação
básica, daí que eles dizem ter ganho o referendo. E ganharam mesmo, mas não
ganharam sozinhos.
A
esquerda resolveu não deixar a defesa dos trabalhadores nas mãos da direita
reacionária e racista e, correndo o risco de ser vista como misturada com essa
gente atrasada, solidarizou-se com o povo trabalhador, com a gente que está
sendo marginalizada, indicando, contudo, diferentemente da direita, qual era o
responsável direto pelas agruras populares, que não era de forma alguma a
imigração, que trazia vítimas indefesas das guerras do capital, mas o complô
dos banqueiros que de Bruxelas impunha "austeridade" à periferia
social do primeiro mundo, para viabilizar os altos ganhos do seu império. E a
esquerda foi para o referendo dizendo "não", "Lexit".
Assim
procedeu o Partido Comunista Britânico e setores do Partido Trabalhista. Este,
dirigido por Jeremy Corbyn, fez a campanha do "ficar", mas o Corbyn
está sendo criticado por não ter se empenhado pelo "ficar", e o
"sair" ter ganho nas bases nortistas do Partido Trabalhista.
A
batalha está em curso e os riscos são grandes, porque a direita europeia está
crescendo e procura, e talvez consiga, capitalizar mais o resultado do
referendo. Mas a vitória do "não", com o "Lexit" no meio,
desgastará o comando financeiro da UE em Bruxelas, mostrará rebeldia contra a
"austeridade", e apontará saídas para a esquerda europeia.
*Haroldo
Lima é engenheiro, foi deputado federal pela Bahia e Presidente da Agência
Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. É membro do Comitê Central
do PCdoB.