A injusta guerra de narrativa sobre a chacina do Rio
Análise de cobertura do grupo Globo revela um alinhamento com o discurso oficial e ignora moradores que presenciaram a chacina mais letal da história do Brasil
Olívia Bandeira e Júlia Lanz/Le Monde Diplomatique
Na última terça-feira (28), o Brasil parou diante das notícias que chegavam sobre uma operação policial nos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro. As primeiras informações, que circulavam nas redes sociais a partir dos próprios moradores que estavam sob o fogo cruzado, logo alcançou todo o país, através da cobertura midiática que trazia a dimensão da ação policial, a mais letal de sua história: ao menos 121 pessoas foram mortas.
No entanto, como essa história foi contada variou de acordo com cada veículo. Iniciava uma guerra de narrativa que revelava a disparidade de “armas” e os discursos dos grupos midiáticos que faziam a cobertura. Enquanto as redes sociais de mídias comunitárias e dos moradores das comunidades denunciavam a chacina, questionavam a operação e mostravam o trabalho dos moradores de recolher os corpos assassinados pelo Estado, outras versões eram exibidas pela mídia comercial.
Portal G1
No portal G1, a cobertura se focou em legitimar a operação e o governo do estado, construindo um discurso que transformava os moradores das favelas em bandidos e os policiais em heróis, justificando as mortes dos primeiros, e defendendo o governo estadual diante da falta de recursos.
Na parte da manhã, quando ocorreu a entrevista coletiva com o governador Cláudio Castro, as manchetes do G1 destacavam: “Moradores encontram corpos após dia de confronto no Rio; Castro diz que megaoperação foi um sucesso”; “‘De vítimas, só tivemos os 4 policiais’, diz governador do RJ”; “Moradores mostram as casas metralhadas: ‘Cachorra tá morta’”; “Cúpula do Comando Vermelho é levada para cadeia de segurança máxima”.
Na parte da tarde, após entrevista coletiva com a cúpula da segurança do Rio, os destaques foram: “Governo do RJ diz que operação deixou 121 mortos; moradores retiram corpos de mata”; “Plano da PM foi empurrar traficantes para ‘muro do Bope’ em mata”; “Polícia aponta adulteração de corpos com retirada de corpos e armas”; “Castro diz que operação foi ‘sucesso: de vítimas, só tivemos os policiais”. Trouxe também, em manchete na primeira página, destaque de outros veículos do grupo, como a Globonews: “OCTAVIO: Tática da polícia de empurrar bandidos para a mata foi bem-sucedida”.
No recorte do vídeo publicado em destaque no G1, o jornalista e comentarista Octávio Guedes chama a tática de inteligente, bem-sucedida e inédita, dizendo que “na mata não circulam moradores”. Logo, em sua visão, “a possibilidade de confronto ter se dado entre bandidos e policiais é muito grande”. A fala em destaque compra o discurso oficial que foi transmitido aos jornalistas e à população durante a entrevista coletiva da cúpula de segurança, transmitida ao vivo pela Rede Globo.
O G1 Rio de Janeiro transmitiu a programação da Rede Globo, que foi em parte suspensa para uma edição especial do RJ TV (RJ TV 1 e RJ TV 2), que foi ao ar da parte da manhã até às 17h, sendo interrompida somente para a transmissão no Jornal Hoje, em cadeia nacional.
RJ TV
O RJ TV, durante todo o dia, deu voz quase exclusiva às fontes oficiais do governo do estado, destacando a “legitimidade” e o “sucesso” da “operação” e destacando que ela seria fruto de um trabalho de inteligência que estava sendo desenvolvido há um ano e de planejamento feito nos últimos 60 dias, como resposta às críticas que apontavam falta de planejamento da operação.
O telejornal local também replicou a versão de Cláudio Castro de que, segundo ele, o governo não teria obtido uma suposta ajuda solicitada ao governo federal e de que seria impossível combater o crime organizado “sozinho”, diante da falta de recursos financeiros. O G1 também acompanhou a narrativa de que todos os mortos eram bandidos e que morreram porque preferiram o confronto ao se entregar à polícia.
Num dos raros momentos em que apresentou um especialista questionando a eficácia da operação, afirmando que o número de mortos não representa o sucesso de uma operação, os âncoras retomaram a fala para dizer que é preciso pensar qual o projeto para a retomada dos territórios e endossaram a tese de que o estado não poderia se responsabilizar sozinho, diante de sua fragilidade econômica – o que aponta para jogar a responsabilidade para o governo federal, narrativa usada por Cláudio Castro em suas primeiras declarações. Ao mesmo tempo em que o Grupo Globo no Rio de Janeiro defendia as ações do governo do estado e culpabilizava o governo federal, destacava o apoio que o governador Cláudio Castro teria recebido de outros governadores.
Durante todo o dia, o RJTV reforçou a narrativa oficial de que todos os mortos eram suspeitos e bandidos, exceto os quatro policiais, considerados as únicas “vítimas”. O apresentador do telejornal chegou a afirmar que haviam quatro feridos – mas ponderando que o número de policiais feridos foi maior, chegando a dez. Os moradores feridos durante o tiroteio foram classificados como: um homem em situação de rua, um que estava em um ferro velho, uma mulher dentro de uma academia e um mototaxista.
Direito à fala
Durante toda a sua cobertura, o RJTV reverberou o discurso oficial e as narrativas policiais. Foram raros os momentos em que vozes dissonantes de especialistas foram ouvidas e, menos ainda, a fala dos que foram afetados diretamente e presenciaram, em tempo real, a operação: os moradores.
Em um dos raros momentos em que moradores tiverem suas falas citadas pelo telejornal, o repórter, no entorno do Instituto Médico Legal (IML), afirmou que conversou com uma mãe e que ela admitiu que o filho teria envolvimento com o tráfico, mas que estava tentando que ele saísse do crime. Os mortos foram, a todo o tempo, tratados como “corpos” de “suspeitos” e em nenhum momento como “pessoas assassinadas”.
Mesmo sem a publicação de laudos oficiais, as repórteres de plantão replicaram a versão das forças de segurança de que as mortes teriam se dado em confrontos, pela escolha dos indivíduos em não se entregar. Para corroborar essa tese, eles afirmaram que “os corpos” apresentavam de um a dois furos de bala, o que, segundo legistas, indicaria confronto.
No entanto, moradores e mídias comunitárias apresentam outras versões – omitidas pelo RJTV. Há depoimentos de uma mãe que, ao ver o filho rendido, teria implorado aos policiais para que ele fosse preso. No entanto, segundo ela, o jovem foi arrastado para um beco e executado. Outro morador também relata execuções em becos, vistos de sua janela e, ao gritar para que parassem “pois isso era uma covardia”, teve sua casa invadida e documentos fotografados. No mesmo dia, esse morador alega que teve o seu carro totalmente destruído por um policial com as mesmas características do que teria invadido sua casa.
Outros moradores, que ajudaram na remoção das pessoas assassinadas na mata, afirmaram haver corpos decapitados, outros com várias perfurações de tiro e totalmente desfigurados, além de corpos com indícios de perfuração por faca. O deputado federal e pastor Otoni de Paula, que compõe a “bancada da bíblia” e a “bancada da bala”, chegou a afirmar, em plenário, que quatro jovens, filhos de frequentadoras de sua igreja, foram mortos na operação, mesmo sem nenhum envolvimento com o crime: “Meninos que nunca portaram fuzis, mas que estão sendo contados no pacote como se fossem bandidos. E sabe quem vai saber se eram bandidos ou se não são? Nunca! Ninguém vai atrás. Sabe por que não? Preto, correndo em dia de operação, na favela, ‘é bandido’. Preto, com chinelo Havaiana, sem camisa – pode ser trabalhador – correu, ‘é bandido’.”
Tais denúncias não foram exibidas pelo RJTV, que sustentou a tese de confronto. No entanto, em alguns momentos, as próprias repórteres entraram em contradição ao afirmar que muitos corpos poderiam demorar a ser identificados porque teriam chegado totalmente desfigurados. Em nenhum momento a cobertura questionou como pode, em um suposto confronto, um lado ter quatro mortos e, do outro, 120. O programa omitiu as versões dos moradores e até mesmo de outros veículos da mídia tradicional, a exemplo da BBC, que narrou a versão de um fotógrafo que cobriu a operação e relata indícios de execuções. Já os policiais foram amplamente ouvidos pela emissora, tratados como heróis.
Jornal Hoje e Jornal Nacional
O discurso em relação ao suposto “sucesso da operação” apresentado pelo Jornal Hoje (Grupo Globo) foi um pouco diferente. O JH, além da versão oficial do governo do estado do Rio de Janeiro, apresentou as falas de alguns especialistas que contestaram a eficácia desse tipo de operação e por não enfrentar o poder econômico do crime. Os entrevistados também citaram outras formas de combate ao crime organizado, como a ocupação dos territórios, o combate ao tráfico de dentro dos presídios e investigações para rastrear o dinheiro do crime.
O presidente da ONG Rio de Paz também foi ouvido e afirmou que “não podemos, em nome da paz, causar derramamento de sangue”. O JH também apresentou a fala do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, defendendo a PEC da Segurança Pública, que prevê a integração das forças de segurança e a priorização de ações de inteligência no combate ao crime. O programa também trouxe falas do ministro da Fazenda, Fernanda Haddad, cobrando ações do governo estadual contra a economia do tráfico, como o contrabando de combustível, além de declarações do secretário-geral da ONU, António Guterres, criticando o resultado da operação.
Já à noite, durante o Jornal Nacional, foi retomada a narrativa de “batalha entre policiais e bandidos”, legitimando a operação e corroborando a ideia de que, com exceção dos quatro policiais mortos, as demais vítimas eram todas traficantes e que as mortes foram decorrentes de confronto. O JN destacou a prisão de “bandidos”, apreensão de “arsenais” de armas e drogas e a retaliação dos “criminosos”, que teriam sequestrado ônibus e feito pessoas reféns.
O telejornal ainda afirmou que essas ações prejudicaram o trânsito e o funcionamento de escolas, postos de saúde e universidades. Também destacou que o Hospital Getúlio Vargas teria recebido, durante todo o dia, “as vítimas dos dois lados dessa guerra”. Ao reforçar a tese do “bem contra o mal”, o Jornal Nacional também ignorou a possibilidade de haver vítimas sem envolvimento com o crime organizado. E, ao naturalizar as mortes e omitir depoimentos de moradores que contestavam as versões oficiais, corroborou com a tese de confronto, desconsiderando os indícios e denúncias de execução.
De uma maneira geral, o Grupo Globo seguiu a narrativa do governador do Rio de Janeiro e das forças de segurança envolvidas no massacre. Com ampla cobertura, durante todo o dia, o grupo optou por corroborar teses oficiais, abrindo mão da premissa jornalística de investigar as informações recebidas e ouvir diferentes lados, versões e pontos de vista. Para quem sequer teve direito a um julgamento e ampla defesa, o posicionamento da mídia pesa como uma segunda sentença, tão arbitrária quanto a dos agentes de segurança envolvidos nessa chacina que manchou o Brasil de sangue.
Olívia Bandeira é Pós-doutoranda no Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Integra a linha de pesquisa Gênero, Religião e Política (GREPO) do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR), da Unicamp. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Júlia Lanz é jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
[Se comentar, identifique-se]
Lula se fortalece e direita ataca o país https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/editorial-do-vermelho_10.html

O senhor é um homem inteligente! O senhor sabe que isso não foi uma chacina!! Isso é guerra. Se mais de 80 % dos moradores de comunidades são da classe trabalhadora como não á uma opção? O estado nega oportunidades sim ... más ainda a uma opção, oque falta é humildade para pertencer à classe trabalhadora. Isso é guerra não é chacina!! Basta olhar o armamento usado, granadas, morteiros, drones, fuzis .556, .762 , .30.30 ...farta munição! Isso é chacina? Isso guerra.
ResponderExcluir