A armadilha da austeridade permanente
Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal,
a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização
– que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
PEDRO PAULO
ZAHLUTH BASTOS*/A Terra é Redonda
Fui recentemente desafiado a pensar sobre os desafios estruturais que um programa desenvolvimentista enfrenta no Brasil contemporâneo.[i] Minha contribuição aqui busca articular duas dimensões desse desafio: primeiro, as restrições domésticas impostas pelo arcabouço fiscal à execução de uma política econômica desenvolvimentista; segundo, as oportunidades abertas pela reconfiguração geopolítica global, particularmente a rivalidade sino-americana, que criam condições históricas para uma estratégia de autonomia tecnológica e reindustrialização.
Meu argumento central é que essas duas
dimensões estão intrinsecamente conectadas: sem reformar as amarras fiscais que
inviabilizam investimentos públicos estratégicos, o Brasil permanecerá incapaz
de aproveitar a janela geopolítica que se abre.
A armadilha da austeridade permanente
O chamado “arcabouço fiscal” ou “regime
fiscal sustentável” representa a continuidade, sob nova roupagem, da lógica da
austeridade que domina a política econômica brasileira pelo menos desde 2015.
Embora apresentado como mais flexível que o teto de gastos de Michel Temer, o
novo regime mantém o essencial: a subordinação da política fiscal a metas de
resultado primário e a limitação do crescimento das despesas primárias a um
teto móvel vinculado à 70% do crescimento da receita, com crescimento real
máximo de 2,5% ao ano.
As consequências dessa arquitetura
institucional são evidentes. Primeiro, ela perpetua a compressão dos
investimentos públicos, que caíram de 3,5% do PIB em 2010 para menos de 1%
atualmente. Segundo, ela impõe uma contenção permanente dos gastos sociais
justamente quando o país deveria expandir sua rede de proteção e seus serviços
públicos. Terceiro, e crucialmente para o argumento que desenvolvo aqui, ela
inviabiliza a capitalização de empresas estatais e os investimentos em
infraestrutura necessários para viabilizar um projeto desenvolvimentista.
O problema não é meramente técnico ou
contábil. Trata-se de uma escolha política que prioriza a rentabilidade dos
títulos públicos e a tranquilidade dos mercados financeiros em detrimento da
capacidade do Estado de induzir o desenvolvimento econômico.
Como demonstrei em análises anteriores,
essa escolha reflete um condomínio hegemônico entre o capital estrangeiro e o
grande capital financeiro doméstico que se consolidou após o golpe de 2016 e
que resiste a qualquer projeto que ameace suas estratégias de acumulação que
integra a economia brasileira de modo dependente no capitalismo mundial.
A recuperação do gasto público, seja na
infraestrutura social seja na econômica, ao contrário, é fundamental para
ativar um modelo de crescimento econômico que combine apoio popular e
investimentos públicos e privados orientados para atendimento das necessidades
da população brasileira.
Reforma fiscal estratégica – exclusões
necessárias
Diante desse impasse, o ideal seria
propormos a superação do arcabouço. Se não tivermos força política para tanto,
pelo menos devemos obter duas exclusões fundamentais do cálculo dos gastos
limitados pelo arcabouço fiscal.
Primeira: exclusão dos gastos em
educação e saúde. A racionalidade dessa proposta é evidente. Educação e saúde
são investimentos de longo prazo na capacidade produtiva da nação, não gastos
de consumo. Tratá-los como despesas ordinárias que devem ser contidas é
condenar o país ao subdesenvolvimento permanente.
Mais ainda, em um momento histórico em
que a competição econômica global se desloca crescentemente para setores
intensivos em conhecimento – inteligência artificial, biotecnologia, transição
energética, entre outros –, comprimir investimentos em educação, ciência e
tecnologia é renunciar antecipadamente a qualquer possibilidade de inserção
soberana na economia mundial.
Segunda: exclusão dos gastos com
capitalização de empresas estatais e investimentos em infraestrutura realizados
pela administração direta e unidades federadas. Esta exclusão é ainda mais
crucial para o argumento que desenvolvo aqui. Sem capacidade de capitalizar
empresas como Petrobras, Eletrobras (onde o Estado ainda mantém participação
minoritária), BNDES e outros bancos públicos, o Estado brasileiro fica
desarmado para implementar políticas industriais substantivas.
Contudo, tal capitalização, incluída no
teto do arcabouço fiscal, é financeiramente inviável. Contudo, sem poder
investir em infraestrutura logística, energética e digital fora do teto de
gastos, o país permanece prisioneiro de gargalos estruturais que inviabilizam
qualquer estratégia de desenvolvimento.
Um pequeno sinal disso é que, em 05/12,
a LDO de 2026 aprovada pelo Congresso Nacional retirou algo como R$ 10 bilhões
do teto do arcabouço para auxiliar na recuperação financeira dos Correios,
viabilizando a continuidade de um serviço essencial para integrar a nação.
Meritória em si, a exclusão deste gasto
do teto do arcabouço e da meta fiscal levanta uma pergunta óbvia: por que só
atender a necessidades urgentes de investimento público – como os Correios ou a
reconstrução de infraestruturas destruídas por desastres climáticos – ao invés
de viabilizar a expansão planejada do investimento público orientado para
restaurar o desenvolvimento econômico e social?
Essas exclusões não representam
irresponsabilidade fiscal, mas sim uma compreensão mais sofisticada do que
significa “sustentabilidade” em política econômica. Sustentável não é aquilo
que agrada aos mercados financeiros no curto prazo, mas sim aquilo que constrói
capacidades produtivas de longo prazo. Países desenvolvidos jamais impuseram a
si mesmos as amarras que o Brasil se autoinflige.
A janela geopolítica sino-americana[ii]
Enquanto o Brasil se paralisa em
debates sobre décimos de ponto percentual no resultado primário, o mundo passa
por uma reconfiguração geopolítica de magnitude histórica. A ascensão da China
como potência tecnológica e industrial, e a resposta estadunidense na forma de
contenção e “desacoplamento”, criam oportunidades sem precedentes para países
de desenvolvimento intermediário que souberem aproveitar as contradições dessa
nova guerra fria.
Os dados são eloquentes. A participação
da China no comércio exterior brasileiro saltou de meros 2% no ano 2000 para
31,3% em 2023, tornando-se nosso principal parceiro comercial. Simultaneamente,
a participação dos Estados Unidos caiu de 23,9% para 10,3% no mesmo período.
Essa reorientação comercial não é mero acidente estatístico, mas expressão de uma
transformação estrutural na economia mundial.
Mais significativo ainda: essa
transformação não se limita ao comércio. Empresas chinesas tornaram-se
protagonistas em setores estratégicos da infraestrutura brasileira. Na geração
de energia elétrica, empresas chinesas controlam 13% da capacidade instalada do
país. Na transmissão, controlam 18% das linhas. Em telecomunicações, a Huawei
consolidou-se como fornecedora fundamental, apesar das pressões estadunidenses
para sua exclusão das redes 5G.
O segundo governo de Donald Trump, com
sua ênfase em unilateralismo e protecionismo, tende a aprofundar essa
tendência. Enquanto Washington impõe tarifas, restrições tecnológicas e exige
subordinação geopolítica de seus parceiros, Beijing oferece financiamento,
transferência tecnológica e parcerias sem condicionalidades políticas
explícitas.
Esta é a janela histórica que se abre:
aproveitar a competição sino-americana para negociar transferências
tecnológicas substantivas e construir capacidades produtivas autônomas. Mas – e
aqui retorno ao primeiro argumento – essa janela só pode ser aproveitada se o
Estado brasileiro tiver capacidade fiscal e institucional para ser um parceiro
relevante, não um mero receptor passivo de investimentos.
Parcerias estratégicas: transição
energética, Inteligência artificial e semicondutores
Proponho três eixos concretos de
parcerias estratégicas com capital estatal chinês, todos dependentes da reforma
fiscal que defendo.
Primeiro eixo: transição energética e
transferência tecnológica. O Brasil possui vantagens comparativas evidentes em
energia renovável – hidroelétrica, eólica, solar, biomassa. Mas nossa inserção
nesse setor tem sido predominantemente como fornecedor de matérias-primas e
receptor de tecnologias já maduras.
A proposta é estabelecer joint
ventures entre empresas estatais brasileiras (Petrobras, eventualmente
uma nova empresa focada apenas em energias sustentáveis) e grupos estatais
chineses líderes em tecnologias de transição energética – painéis solares de
alta eficiência, turbinas eólicas offshore, baterias de armazenamento,
hidrogênio verde.
O objetivo não é apenas atrair
investimentos, mas estabelecer contratos de joint venture que incluam cláusulas
explícitas de transferência tecnológica e produção local de componentes de alta
intensidade tecnológica. A China possui tanto o interesse estratégico
(diversificar cadeias produtivas diante de pressões ocidentais) quanto a
capacidade tecnológica para viabilizar esse tipo de parceria. Mas isso exige
contrapartida brasileira: capacidade de co-investimento via capitalização de
estatais, algo impossível sob o atual arcabouço fiscal.
Segundo eixo: inteligência artificial e
economia digital. A corrida pela supremacia em Inteligência artificial é
o front central da competição tecnológica global. O Brasil não
tem capacidade de competir diretamente com Estados Unidos ou China nesse campo,
mas pode buscar uma inserção qualificada.
Proponho parcerias para desenvolvimento
de aplicações de Inteligência artificial voltadas para especificidades
brasileiras – agricultura de precisão tropical, gestão de biomas complexos como
Amazônia e Cerrado, sistemas de saúde pública em escala continental, educação
adaptativa para país de dimensões continentais e desigualdades regionais
extremas.
Empresas chinesas de Inteligência artificial
enfrentam crescente fechamento de mercados ocidentais. O Brasil pode oferecer
não apenas um mercado de 215 milhões de habitantes, mas também dados e
problemas únicos que enriqueceriam o desenvolvimento dessas tecnologias. Em
contrapartida, exigimos transferência tecnológica, formação de quadros
brasileiros e desenvolvimento de capacidades computacionais nacionais – data
centers soberanos, processamento em território nacional, segurança de dados.
Terceiro eixo: semicondutores e
autonomia tecnológica. A dependência brasileira de semicondutores importados é
quase absoluta, tornado o país vulnerável tanto a choques de oferta (como vimos
na pandemia) quanto a pressões geopolíticas. A China investiu centenas de
bilhões de dólares na última década para reduzir sua própria dependência de
chips ocidentais, especialmente diante das restrições impostas pelos EUA.
Proponho negociar com grupos chineses
do setor a instalação no Brasil de plantas de fabricação de semicondutores de
gerações anteriores (não necessariamente os chips mais avançados de 3 ou 5
nanômetros, mas chips de 28nm ou superiores que atendem 90% das aplicações
industriais, automotivas e de infraestrutura).
Em troca, oferecemos mercado garantido
via compras públicas, incentivos fiscais e, crucialmente, uma localização
geográfica que oferece alguma proteção contra pressões geopolíticas
estadunidenses.
Esses três eixos, por sua vez, devem
estar conectados a projetos coordenados pelo Estado de expansão da
infra-estrutura econômica e social orientada para um modelo de crescimento que
combine redução de desigualdades, sustentabilidade ecológica e atendimento de
necessidades reconhecidas da população brasileira.
Síntese – reforma fiscal como
pré-condição geopolítica
Retorno ao argumento central: essas
parcerias estratégicas não são viáveis sem a reforma fiscal que proponho. Joint
ventures substantivas exigem que o parceiro brasileiro entre com
capital, não apenas com território e mão-de-obra barata. Transferência
tecnológica genuína só ocorre quando o receptor demonstra capacidade de
absorção, o que exige investimentos massivos em educação, pesquisa e
desenvolvimento institucional. Autonomia tecnológica não se conquista com
passividade fiscal.
O momento é agora. A janela geopolítica
aberta pela rivalidade sino-americana não permanecerá aberta indefinidamente.
Se o Brasil não aproveitar a atual conjuntura para negociar parcerias
substantivas, voltaremos à condição de receptores passivos de investimentos em
setores de baixo valor agregado.
As eleições de 2026 devem ser
disputadas em torno dessa escolha civilizatória: continuar prisioneiros de uma
austeridade que nos condena ao subdesenvolvimento permanente, ou realizar as
reformas institucionais – começando pela fiscal – que viabilizam uma estratégia
soberana de inserção na economia mundial do século XXI.
A pergunta que coloco para debate não é
se podemos fazer isso, mas se teremos a coragem política de fazê-lo.
*Pedro Paulo
Zahluth Bastos é professor titular Instituto de Economia da Unicamp. Autor,
entre outros livros, de A era Vargas: Desenvolvimentismo, economia e
sociedade (Editora da Unicamp). [https://amzn.to/3RxhzIe]
Notas
[i] O
texto foi preparado para responder ao desafio posto pela Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo-FESPSP, na figura de Angelo Del Vecchio e
Ubiratan de Paula Santos, que organizaram reunião ampla em 06/12/2025 para
voltarmos a debater, como em 2017, a urgência de um novo projeto de Nação.
[ii] Este
item baseia-se no paper Donald Trump’s Unilateralism,
Brazilian Nationalism, and the China-BRICS Nexus, apresentado na Fudan-Latin
America Universities Consortium – FLAUC 7th Annual Meeting (PUCp,
Lima, Peru, dec. 04-05th).
[Qual a sua
opinião?]
Leia também: Terras raras: por que evitar aproximação com os EUA https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/reservas-estrategicas.html

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