Para avançar em terras raras, Brasil deve se unir à China, defende
acadêmico
Estudioso
da área há mais de 50 anos, químico Gilberto Sá critica aproximação do país com
EUA. Pesquisador lamenta retrocesso nacional no setor, que teve pioneiro Pawel
Krumholz
Fábio Vitor/Folha
de S. Paulo
Reservas estratégicas
Desde que os Estados Unidos
anunciaram o interesse em minerais estratégicos do Brasil, e
mais ainda quando o governo sinalizou
disposição em incluir o setor num acordo para atenuar a guerra
tarifária imposta pelos americanos, o químico Gilberto Fernandes de Sá não tem
conseguido dormir direito.
Há décadas um
dos principais pesquisadores do país em terras raras –conjunto
de 17 elementos químicos de difícil extração e refino usados para produzir ímãs
essenciais à fabricação de carros elétricos, turbinas eólicas e outros produtos
tecnológicos relacionados à transição energética e à defesa–, Sá critica a
estratégia brasileira para o setor.
Para ele e
outros acadêmicos que também dedicaram a vida a esse tema, como Osvaldo Serra
(USP) e Oscar Malta (UFPE), o país negligenciou as terras raras desde os anos
1960 e deveria, em vez de negociar com os EUA, buscar uma parceria com a China, mais desenvolvida na área e única que
domina a tecnologia de separação e refino de terras raras.
Professor
emérito da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Gilberto Sá foi um dos
fundadores do Departamento de Química Fundamental daquela instituição, na qual
criou, em 1973, o laboratório de terras raras BSTR. Foi secretário de Políticas
e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério de Ciência e Tecnologia
na gestão de Roberto Amaral (governo Lula 1).
Com atuação em
universidades da Europa, dos EUA e da China, trabalhou com alguns dos maiores
nomes da química no Brasil, como Ernesto Giesbrecht, Ricardo Ferreira e o
polonês naturalizado brasileiro Pawel Krumholz, pioneiro na tecnologia de
separação de terras raras na empresa Orquima.
"Era um gênio, está esquecido."
O Brasil já
foi bem mais desenvolvido em terras raras do que hoje. O que houve?
O grande problema é que foi feita a encampação da empresa Orquima pelo Estado,
e o [Pawel] Krumholz evidentemente ficou fulo, não negociou as suas patentes de
separação de terras raras, deixou no cofre.
Naquele tempo
nós tínhamos a coisa mais importante, que era a tecnologia de separação das
terras raras, que ninguém tem hoje ainda. Nem o Brasil, nem os Estados Unidos.
Quem tem é só a China.
Por que o
sr. diz que o Krumholz foi um visionário e que está esquecido nesse momento em
que se fala tanto em terras raras?
Ele foi a pessoa que desenvolveu a tecnologia de separação de terras raras.
No
mundo?
No mundo! Todos os pesquisadores do mundo recebiam dele as amostras, em
pequenas quantidades, para fazer pesquisa. Isso na Suíça, na Europa toda, nos
Estados Unidos. Ele conseguiu separar, produzir uma quantidade significativa de
európio [um dos 17 elementos chamados de terras raras] de alta pureza, que foi
usado nos primeiros reatores americanos, tudo produzido aqui no Brasil.
Isso
nos anos 1950?
1950, 1960.
Aí quero
pular para os dias de hoje. O sr. comentou que não tem dormido direito desde o
anúncio de que o Trump tem interesse nas terras raras do Brasil e que isso pode
entrar numa negociação com os americanos. Por que isso está lhe tirando o sono?
Primeiro porque, do ponto de vista pessoal, as terras raras são uma coisa
extremamente importante, a minha vida toda foi essa. Há mais de 50 anos que eu
trabalho… eu só penso sobre isso, certo?
Agora,
estrategicamente, é realmente o futuro, quer dizer, cada vez mais está se vendo
a importância. Não é por acaso que o Trump está querendo tomar as terras raras
na Ucrânia, na Groenlândia, está fazendo aquela confusão. E agora é aqui. A
embaixada [dos EUA] já explicitou o interesse, e houve resposta positiva,
primeiro do Haddad e agora do Lula, dizendo que isso poderia estar nas cartas
de negociação.
A
frase do Lula sobre as terras raras foi a seguinte [em entrevista coletiva em
Nova York]: "Queremos que empresas que querem explorar vão ao Brasil
explorar. O que não queremos é ser apenas exportador de minérios. [...] Estou
estudando muito sobre minerais críticos e terras
raras que é para ninguém me enganar. O Brasil não quer ser isolado do mundo. Se
estabelecermos acordo com empresas, serão bem-vindos parceiros de qualquer
parte do mundo".
Isso é uma bobagem, porque o que está sendo feito até agora não aponta nesse
sentido. Se nós quiséssemos realmente acelerar esse processo, faríamos uma
parceria com a China, que eles desenvolveram uma tecnologia que nem os
americanos nem os outros têm. Ninguém sabe nem que solvente eles estão usando.
Então o certo
seria —é uma coisa que eu já disse ao Lula no primeiro governo dele— organizar
um programa, levantar todos esses dados com parcerias internacionais, para
acelerar esse processo. Não levaram a sério.
Cheguei a propor ao ministro [de Ciência e Tecnologia do governo Dilma] Marco Antonio Raupp, ao Sérgio Rezende [titular da pasta nos governos Lula 1 e 2 e conselheiro do petista na área]… todo mundo é meu amigo.
Você dizia
exatamente o quê, qual era a sugestão?
Minha sugestão era que se criasse grupos de articulação nacional, com visão
internacional, para acelerar o processo de dominação da tecnologia, para voltar
a fazer o processo de separação.
E
nunca foi levado a sério?
Não. Aliás, eu cheguei a propor ao meu amigo professor Carlos Alberto Aragão,
que foi presidente do CNPq em 2010 e em seguida foi contratado pela Vale, onde
deveria estimular pesquisas na área de terras raras. A Vale, no entanto,
continuou com atividades periféricas na área.
Desde
quando vem o desdém com o setor?
A atuação dos governos federais a partir da década de 1960 em relação às terras
raras é caracterizada por ineficiência administrativa, descaso institucional e
limitada preocupação com a soberania nacional. Além disso, sob a justificativa
de atender ao interesse público, promoveu-se o enfraquecimento de uma
estratégia essencial ao país, ao mesmo tempo em que se incorreu em práticas de
prevaricação, privilegiando posicionamentos individuais em detrimento da
proteção e valorização do patrimônio nacional.
Então o sr. acha que a estratégia brasileira está errada, ou seja, defende que nem se deve abrir conversa com os EUA?
Precisamos acelerar o nosso processo, já que estamos atrasados. Como é que a
gente acelera? Buscando quem tem a tecnologia.
E
o sr. acha que a China teria interesse e disposição para isso?
Acho que teria. Eu tive um grande amigo, o Su Qiang [um dos pioneiros na
pesquisa de terras raras na China, morto em 2017]. Estive em seus laboratórios
de terras raras, interagindo com estudantes de pós, ministrando seminários e
publicando um paper em uma revista chinesa. Su também nos visitou, ministrando
seminários, discutindo com estudantes e colaborando em experimentos em nossos
laboratórios. Consegui levá-lo para o Carnaval em Olinda…
Existe a sua posição de pesquisador e a de homem de
esquerda, ex-militante do PC do B. Essa avaliação é essencialmente técnica, ou
também política?
Eu sempre tive uma posição de autonomia, de pensar no que é melhor para o
Brasil. Sempre tive problemas com políticos exatamente por isso. Porque eu
sempre quis que fosse feito melhor, independente de qualquer coisa.
O nosso princípio, meu e de colegas pesquisadores
da área, é: colaboração ampla, interesse nacional inegociável. O Brasil deve
estar aberto a colaborações de quem quiser desenvolver aqui a cadeia completa
–dos EUA, da Europa e da China– desde que com transferência e codesenvolvimento
de tecnologia, metas de conteúdo local, capacitação de pessoal e produção
industrial no território brasileiro. Esse é o padrão mínimo para qualquer
parceria estratégica.
E por que defender a parceria com a China? Porque é
com a China que podemos aprender mais, melhor e mais rápido na etapa mais
crítica —a separação e a metalurgia fina—, são eles que detêm o maior know-how
nisso, industrial e escala. Isso não significa fechar portas a ninguém, nem
subordinar a soberania. O interesse nacional vem acima de tudo.
O sr. tentou agora falar com alguém do governo
federal?
Tentei conversar com pessoas que falam com Lula. Foi frustrante, porque nem o
Sérgio Rezende me respondeu.
A única mineradora de terras raras no Brasil, Serra
Verde, tem capital americano e britânico, e ela exporta tudo.
Como vê a situação?
É ruim, porque estão exportando o agregado de terra rara. E nós vamos ficar com
o quê? O agregado você ainda precisa fazer a separação. Dependendo do produto,
eles podem pegar um pouco de agregado, mas na maioria de tecnologia com mais
precisão, quando você vai falar em chips, em equipamentos bélicos, você tem que
fazer muito claramente a separação das terras. Aí entra a complicação.
RAIO-X | Gilberto Sá, 83
1942, São Miguel (RN)
Formou-se em
química na UFC (Universidade Federal do Ceará), fez doutorado na USP, com
sanduíche na Universidade de Minnesota (EUA). É pesquisador desde os anos 1970
na interface entre física e química, nas áreas de complexos de lantanídeos com
bases de Schiff e espectroscopia eletrônica de terras raras em sólidos hospedeiros.
Professor emérito da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), onde criou o
laboratório de terras raras. Professor e pesquisador visitante em universidades
da Europa, dos EUA e da China. Membro da Academia Brasileira de Ciências. Foi
secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério
de Ciência e Tecnologia na gestão de Roberto Amaral (governo Lula 1).
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Leia também: Para além do “economicismo governamental” https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/minha-opiniao_5.html
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