Dermeval Saviani: Educação não é gasto, nem pode
ser submetida a teto
Um fato que vem marcando a educação
brasileira, desde o tempo da colônia, é a histórica resistência dos nossos
dirigentes à manutenção e desenvolvimento da educação. Indo na contramão do
entendimento de que a educação se constitui num investimento de alto retorno.
Isso não escapou, sequer, aos políticos já no tempo do império.
Como se pode ver por essa afirmação de Almeida de Oliveira na sessão de 18 de
setembro de 1882 do Parlamento brasileiro, final do Império, portanto. Disse
ele, naquele momento: “Na instrução pública está o segredo da multiplicação dos
pães. E o ensino restitui cento por cento o que com ele se gasta”.
Não obstante, durante os 49
anos correspondentes ao Segundo Império, entre 1840 e 1888, a média anual dos
recursos investidos em educação foi de 1,80% do orçamento do governo imperial,
cabendo 0,47% para instrução primária e secundária. Era, pois, um investimento
irrisório, conforme constatou Ruy Barbosa, que afirmou, em 1882: “O Estado, no
Brasil, consagra a esse serviço apenas 1,99% do orçamento geral, enquanto as
despesas militares nos devoram 20,86%”. Isso está sendo fortemente reeditado
agora. Enquanto se busca reduzir os recursos para a educação, os militares são
aquinhoados com novos privilégios, mais recursos, mais remuneração, uma
aposentadoria privilegiada, e ocupando postos nos mais variados ministérios do
governo.
Ao longo da Primeira República,
o ensino permaneceu estagnado. O que pode ser ilustrado com o número de
analfabetos em relação à população total, que se manteve no índice de 75% entre
1900 e 1920, sendo que o número absoluto de analfabetos aumentou de 12.939.000
para 23.142.000. Quase duplicou!
Na era Vargas, a Constituição de 1934 determinou que a União e
os municípios deveriam aplicar nunca menos de 10%, e os estados 20% da
arrecadação de impostos, na manutenção e desenvolvimento dos sistemas
educacionais. No entanto, vejam só, em 1936, a União aplicava 2,5% e os
municípios 8,1%, quando deveria ser no mínimo 10%, e os estados aplicavam 13,4%
dos 20% mínimos.
A Constituição de 1946 fixou em
20% a obrigação mínima dos estados e municípios e 10% para a União. No entanto,
em 1955, tínhamos os seguintes resultados: União, 5,7%, estados, 13,7% e
municípios, 11,4%. Sempre investimentos muito abaixo do que a própria lei
determinava.
A nossa primeira Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 20 de dezembro de 1961,
determinou pelo parágrafo 1o. do artigo
92, que, com nove décimos dos recursos federais, deviam ser constituídos, com
parcelas iguais, três fundos: um para o ensino primário, outro para o ensino
médio e um terceiro para o ensino superior. E no parágrafo 2o atribuiu ao Conselho Federal de
Educação a tarefa de elaborar o plano referente a cada um desses três fundos.
Designado para relatar o plano no Conselho Federal de Educação,
Anísio Teixeira arquitetou um procedimento engenhoso para a distribuição dos
recursos, detalhando no que se refere ao plano do Fundo Nacional do Ensino
Primário. Então, combinando renda per capita dos estados com população em idade
escolar, propôs que 70% dos recursos fossem calculados na razão inversa da
renda per capita, e 30% na razão direta da população em idade escolar.
Para determinar as despesas com
ensino considerou que os gastos com salários dos professores seriam da
ordem de 70%, que é o que, agora, o Fundeb aprovado também marcou. O anterior
era, no mínimo, 60%, e, agora, é como Anísio Teixeira já havia proposto.
Distribuindo-se o restante entre administração (7%), recursos didáticos (13%) e
prédio e equipamentos (10%).
Anísio tomou ainda os valores
dos salários mínimos regionais como referência para estabelecer os custos com o
magistério. E, somados às demais despesas, permitiram-lhe determinar o custo do
aluno/ano. Com base nesses elementos, propôs uma fórmula matemática para o
cálculo dos recursos que a União repassaria a cada Unidade da Federação.
Ora, foi esse procedimento que inspirou a criação, em 1996, do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do
Magistério, o Fundef, que vigorou de 1996 até 2006. Essa orientação também foi
mantida com a substituição do Fundef pelo Fundeb, em dezembro de 2006, quando
ocorreram, no entanto, dois avanços em relação ao Fundef.
O primeiro foi estender a
abrangência para toda a educação básica, abarcando também a educação infantil e
o ensino médio. E o segundo avanço foi assegurar a participação da União com a
parcela do orçamento do MEC, pois o governo FHC não cumpria essa exigência e
utilizava a transferência dos recursos do salário-educação como correspondendo
à participação federal na composição do, então, Fundef. Pela lei de 20 de junho
de 2007, que regulamentou a implantação do então Fundeb, foi vedada a
utilização de recursos oriundos da arrecadação da contribuição social do
salário-educação na complementação da união aos Fundos, paragrafo 1o. do artigo 5o.
dessa lei. O próprio governo federal, no projeto da lei que foi aprovado no
Congresso, proibiu o uso do salário-educação, porque era uma forma de burlar a
exigência da complementação por parte do Governo Federal.
Agora, felizmente, a Câmara dos
Deputados, num esforço articulado pela oposição ao governo Bolsonaro, aprovou em
22 de julho deste ano, a Emenda Constitucional, que não apenas renova a
validade do Fundeb, como o torna permanente. Além disso, representa um avanço
ao determinar a ampliação gradativa da participação da União, passando dos 10%
atuais, para chegar a 23% em 2026.
Só nos resta, então, esperar que o Senado confirme integralmente
essa decisão, que se configurou numa clara derrota do governo Bolsonaro. No
entanto, o presidente, mentiroso contumaz, teve o desplante de afirmar nas
redes sociais, no dia 23 de julho, um dia depois da aprovação da PEC do Fundeb,
que “O Executivo mostrou responsabilidade na aprovação do Fundeb, no dia de
ontem. Então, o PT ficou 14 anos no poder e não fez nada. Ou melhor, via método
Paulo Freire, nos colocou em último lugar no PISA [Programa Internacional de
Avaliação de Estudantes]. E o governo conseguiu, ontem, mais uma vitória,
aprovamos o Fundeb e o Senado deve seguir o mesmo caminho”.
Ora, o governo tentou a ultima
hora transferir a validade do Fundeb para 2022 e desviar recursos do Fundo para
o programa Bolsa Família. Sete votos não favoráveis à aprovação da PEC foram de
aliados do presidente, pertencentes seis do PSL e um do PSC, partidos que o
elegeram.
Enfim, já que a questão dos
recursos para a educação e seu aumento têm a ver com a busca de melhorar a
qualidade do ensino, é preciso considerar que é impossível equacionar o
problema da qualidade do ensino público operando sempre com recursos escassos
como é a regra no nosso país.
É preciso, então, equipar
adequadamente as escolas e instituir uma carreira docente que permita aos
professores, em regime de 40 horas semanais, e com salários dignos, atuarem em
uma única escola de educação básica, destinando metade do tempo para as aulas e
a outra metade para as demais atividades.
Assim, transformada a docência em uma profissão atraente
socialmente, em razão da sensível melhoria salarial e das condições de
trabalho, para ela serão atraídos muitos jovens dispostos a investir seus
recursos, tempo e energias, numa alta qualificação obtida em graduações de
longa duração e em cursos de pós-graduação. Com um quadro de professores
altamente qualificados trabalhando em condições adequadas estaremos elevando a
qualidade da educação pública em seus diferentes níveis e modalidades.
Enfim, cabe afirmar que
educação é, pois, um investimento, e dos mais rentáveis; não sendo, em hipótese
alguma, simplesmente gasto ou despesa. Portanto, a educação sequer estaria
sujeita à determinação da Emenda 95 que estabeleceu o Teto de Gastos.
Portanto, o governo deve
encaminhar ao Congresso, que deve tomar a iniciativa de aprovar um projeto
revogando a Emenda 95. Porque é um absurdo que um país decida, por sua
iniciativa, ficar parado durante 20 anos sem investir e sem se desenvolver.
Mesmo que o Congresso não faça isso, o governo não está impedido de investir em
educação, porque não se trata de gasto, portanto não está submetido aos limites
do Teto de Gastos.
(Este
texto foi extraído da live do portal Vermelho “Rumos da educação em tempos de
pandemia e bolsonarismo”, ocorrida no último dia 24 de julho, às 15 horas.)