07 julho 2024

Minha opinião: uma nesga de vida

Pedaço de chão temporário 
Luciano Siqueira   


No Rio Grande do Sul é inaugurada a primeira “cidade provisória” para desabrigados pelas enchentes, com 126 unidades habitacionais cedidas pela ONU e pode receber até 630 pessoas.

Uma espécie de acampamento de refugiados das consequências dramáticas locais das mudanças climáticas. 

Muito melhor do que a continuidade das pessoas em abrigos improvisados em escolas, igrejas e outros locais. 

Mas, certamente, de um impacto imenso na consciência e na emoção cotidiana da população removida para esses locais. 

Uma espécie de ruptura com o espaço físico onde cada família construiu sua trajetória, superando dificuldades, celebrando pequenas conquistas e alimentando a esperança. 

Pedaço de chão provisório, onde assim mesmo as pessoas são instadas a retomarem o fio de suas trajetórias de vida. 

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/05/tragedia-ambiental-causas-conhecidas.html 

Literatura: limites e possibilidades

Literatura e matemática, faces da mesma moeda
A relação íntima entre elas, e a suposta antítese entre 'humanas' e 'exatas'
Marcelo Viana/Folha de S. Paulo  

Passei o fim de semana na Feira do Livro em São Paulo para o lançamento do meu livro "Histórias da Matemática", antologia de colunas que escrevo nesta Folha desde 2017. Ocasião para voltar a meditar sobre a relação íntima entre literatura e matemática e a suposta antítese entre "humanas" e "exatas".

Um jornalista conhecido surpreendeu-se com o livro "agradável de ler" escrito por um matemático. "Eu achava que nós de humanas sabíamos escrever, e o pessoal de exatas fazia contas", explicou-me. Já eu gosto de provocar os colegas com a afirmação enfática de que a matemática é a mais humana das ciências, sem deixar de ser a mais exata.

A antítese é invenção recente. Seguindo Platão, o ensino medieval dividia o conjunto do conhecimento em sete artes, organizadas no trivium (gramática, retórica e lógica) e no quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), todas indispensáveis a uma formação completa. E a fronteira entre matemática e literatura era difusa. 

O persa Omar Khayyam (1048-1131), a quem é atribuída a coleção de poemas "Rubaiyat", era matemático: trabalhou na resolução das equações cúbicas e também aprofundou a discussão do postulado das paralelas de Euclides. O "pai da literatura inglesa", Geoffrey Chaucer (1343-1400), autor dos "Contos da Cantuária", também escreveu um "Tratado do Astrolábio". E Lewis Carroll (1832-1898), autor de "Alice no País das Maravilhas", era matemático por profissão e ficcionista por passatempo.

Diversos autores lançaram mão de regras matemáticas para condicionar a narrativa literária, reforçando os temas do texto. Por exemplo, em "A Vida Modo de Usar", do francês Georges Perec (1936-1982), a ação se desloca entre os cômodos de um imóvel parisiense conforme o movimento do cavalo no tabuleiro de xadrez. Mas a influência mútua também pode ir na direção oposta: na tradição clássica indiana era comum formular fatos matemáticos na forma de poemas para facilitar a sua comunicação.

O matemático inglês G. H. Hardy (1877-1947) entendia o que une a matemática às artes: "Tal como o pintor ou o poeta, o matemático é um criador de padrões. Se os seus padrões são mais permanentes é porque são feitos de ideias. Esses padrões, tais como os do pintor ou do poeta, devem ser belos: as ideias, tais como as cores ou as palavras, devem se relacionar de forma harmoniosa".

Sofia Kovalevskaya (1850-1891), a primeira mulher com doutorado em matemática, foi além. "É impossível ser matemático sem ter alma de poeta… o poeta precisa olhar mais fundo, ver o que outros não veem …. e o matemático precisa fazer o mesmo."

Leia e veja: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2022/11/cida-pedrosa-e-as-araras-vermelhas.html

Trabalhadores leitores ativos

Três indicadores
Leitores de jornais, filiados a partidos e sindicalizados são indicadores da democracia no Brasil, evidenciando a necessidade de fortalecer a participação cidadã e o movimento sindical.
João Guilherme Vargas Netto/Vermelho   

Para meu uso adoto três indicadores para avaliar o grau de democracia política efetiva em uma sociedade: leitores de jornais, filiados a partidos políticos e sindicalizados. (Os indicadores são outros quando se trata de democracia sócio-econômica: um prato de comida, um emprego e uma sala de aula).

A leitura do jornal, reflexiva, que era para Hegel a oração da manhã do homem moderno, ainda hoje em tempo de redes sociais e de internet, é um indicador seguro de preocupação cidadã; compara-se o número de leitores com o número de alfabetizados.

A filiação a partidos políticos (mesmo que não represente a militância ou as votações) é um indicador para o papel desempenhado pelos partidos na vida democrática, aferindo-se a relação entre filiados e eleitores.

A sindicalização, cuja taxa é a porcentagem entre a associados aos sindicatos e ocupados, é o terceiro pilar de sustentação democrática e, junto aos outros dois, mede o grau de democracia política de nossa sociedade.

Para registro (mesmo sem números), das três proporções listadas (leitores de jornais/alfabetizados; filiados a partidos/eleitores e sindicalizados/ocupados) o que apresenta melhor taxa no Brasil é a sindicalização, apesar de baixa entre baixas.

Ela é baixa em si e em comparação com a de outros países democráticos, demonstrando que temos ainda de avançar no exercício da democracia política.

É imperioso, portanto, que o movimento sindical, o governo e a sociedade façam esforços constantes para a sindicalização, mobilizadores e institucionais, garantindo seu aumento com mais associados e ativistas sindicais, contribuindo assim para o avanço da luta democrática. 

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/06/habitos-digitais-dispersivos.html

Enio Lins opina

França da Resistência x França Colaboracionista
Enio Lins 

Hoje a França vai às urnas, em mais uma eleição emblemática para o mundo inteiro. No centro das atenções, o impactante crescimento da extrema-direita – não só em território francês, mas em vários outros países importantes na geopolítica contemporânea, como no poderosíssimo Estados Unidos, onde o acanalhado Trump avança (com apoio de uma Suprema Corte direitista) para mais um desgoverno na Casa Branca.

Mas a França é especialmente significativa por conta do mito mundial sobre a história (falsamente progressista) da terra dos gauleses. Se recordarmos a saga de Asterix, notaremos que, nos tempos de César, a maioria da população nativa havia aderido aos invasores romanos e apenas uma aldeia resistia brava e incondicionalmente (numa alusão óbvia a pequenez numérica de franceses que formaram a Resistência durante a ocupação nazista entre maio de 1940 e dezembro de 1944).

Se essa questão vergonhosa na história francesa não for compreendida, não se compreenderá o porquê dos avanços da extrema-direita, herdeira do nazifascismo, na França (e em tantos outros lugares do mundo). Asterix e Obelix, na ficção de Goscinny e Uderzo, são personagens replicadas na vida real em tantos heróis e heroínas que nem cabe aqui tentar fazer um resumo – mesmo que só tentássemos listar as militâncias armadas mais destacadas de La Résistance. Mas essa parcela heroica sempre foi minoria. Só para ficarmos no quadro da II Grande Guerra, onde as questões ideológicas foram predominantes, mesmo antes da capitulação patética das forças armadas francesas frente às tropas alemães, a extrema-direita já demonstrava grande força na França e quando Hitler, pessoalmente, passeou pelas ruas parisienses, se sentiu em casa, e o sorriso do Marechal Pétain ao apertar a mão do Führer é a própria expressão da subserviência e bajulação. A maioria da população francesa conviveu feliz e colaborativamente com os nazistas durante os quatro anos e sete meses da famigerada República de Vichy. E quando a derrota nazista se confirmou, grupos de desqualificados passaram a expressar sua misoginia perseguindo e humilhando em público algumas mulheres que teriam namorado alemães durante a ocupação, como se essas jovens tivessem feito algo diferente do resto da população colaboracionista. Pétain, no pós-guerra, apesar de umas condenações de fachada, foi tratado com toda cortesia e o próprio general De Gaulle teria determinado a destruição dos inquéritos sobre as principais personalidad es colaboracionistas francesas. Ficou o dito pelo não dito. E o nazifascismo francês voltou à ativa o mais rápido que pode.

Hoje, na França repete-se, novamente, o conteúdo da luta entre o ideário de Vichy e a ideologia de La Résistance. Veremos se o resultado será diferente do visto entre 1940 e 1944. Por via das dúvidas, é bom ouvirmos (mesmo quem não saiba francês) a canção “La Complainte du Partisan” (O Lamento do Partisan), composta pela combatente Anna Marly (1917/2006) com letra de Emmanuel d’Astier (1900/1969), e disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=uTMe6-6VSuQ

Enfim, sempre, Vive La Résistance!!!

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/nova-alianca-politica-na-franca.html

Minha opinião: mulheres fuzileiras navais

Um passo adiante 

Luciano Siqueira  

A Marinha do Brasil formou sua primeira turma de fuzileiras navais. São 114 jovens de mulheres oriundas de várias partes do país. 

Em princípio, as mulheres poderão ocupar todos os corpos e quadros da Marinha, inclusive na linha de combate. 

Ela se formaram juntamente com 546 fuzileiros homens. 

Na luta pela igualdade de gênero, cada novo espaço conquistado é um passo adiante. E deve ser comemorado. 

Supera preconceitos centenários. Vislumbra novas perspectivas para as mulheres, a cada dia progressivamente mais conscientes de que podem estar em toda parte, uma vez capacitadas para exercer suas funções. 

E não há limite para a capacitação. Por isso não mais são admitidas para tarefas administrativas. Estão aptas para o combate. 

Reforçam a consigna de que a mulher pode estar onde quiser.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/01/minha-opiniao_22.html

França em crise

França: por que a ultradireita cresceu
Pesquisa sugere: o que mais atrai seus eleitores não é a xenofobia, mas a rejeição parcial ao neoliberalismo. Esperança de vencê-la está na Nova Frente Popular, que foi capaz de propor, em poucos dias, um programa claro ligado às dores da maioria
Thomas Piketty Julia Cagé, com tradução no IHU/Outras Palavras   

O primeiro turno das eleições legislativas na França produziu uma onda inédita de apoio à extrema-direita. No próximo domingo, 7 de julho, o Rally Nacional (RN) e seus aliados podem potencialmente chegar ao poder. Não apenas com uma maioria relativa, mas — e há uma probabilidade significativa disso — com uma maioria absoluta.

Alguns podem argumentar que a extrema-direita chegou e que deveríamos simplesmente nos acostumar com ela. Partidos de extrema-direita ganharam eleições nos últimos anos em outros países europeus, incluindo Itália e Holanda. Mas não podemos nos acostumar com isso. Uma vitória da extrema-direita representa uma grande ameaça ao nosso contrato social básico e às nossas liberdades. Enfrentamos a implementação de políticas que discriminam estrangeiros, migrantes, mulheres, minorias e muito mais. Como não tem uma plataforma econômica confiável, a extrema-direita retornará à única coisa que conhece – a exacerbação das tensões e a política do ódio. 

Qual é a alternativa? A aliança de esquerda, a Nova Frente Popular (NFP), é a melhor chance da França.

Esta aliança se inspira na Frente Popular – que em 1936 surgiu sob a ameaça do fascismo para governar a França. Esta coalizão de esquerda de socialistas e comunistas representou uma mudança real para as classes trabalhadoras, com políticas como a introdução de férias pagas de duas semanas e uma lei limitando a semana de trabalho a 40 horas. Tal mudança social foi possível pela vitória eleitoral, mas também pelas demandas da sociedade civil e pela pressão dos sindicatos, que organizaram uma onda de ocupações de fábricas. Havia uma clara competição sociopolítica entre os trabalhadores e as classes dominantes que levou a um conflito político entre a esquerda e a direita.

O NFP está seguindo um caminho semelhante hoje, com políticas ambiciosas para melhorar o poder de compra de pessoas pobres e de classe média baixa. Essas reformas incluem um aumento substancial no salário mínimo, salários indexados a preços e almoços escolares gratuitos. Mais importante, o NFP quer priorizar o investimento no futuro aumentando os gastos públicos em infraestrutura – em todo o país, incluindo em áreas rurais isoladas – bem como em saúde, educação e pesquisa. Esta é a única maneira coerente de planejar o futuro e aumentar a produtividade do trabalho, que sob Macron caiu 5% desde 2019.

O manifesto econômico detalhado do NFP foi lançado no mês passado com os custos completos. Porque – e isso é novo – os planos do NFP são equilibrados de um ponto de vista orçamentário: o investimento em crescimento e produtividade futuros, bem como em transição energética e climática, poderia ser tornado acessível por meio de tributação progressiva da riqueza, a introdução de um imposto de saída, tributação efetiva de empresas multinacionais e uma luta há muito esperada contra o dumping social, fiscal e ambiental. Este programa também daria aos trabalhadores mais poder dentro das empresas que os empregam, melhorando a governança corporativa (por exemplo, reservando um terço dos assentos nos conselhos de administração da empresa para representantes dos funcionários, seguindo disposições semelhantes que existem há décadas nos países nórdicos e na Alemanha).

Esses planos são o completo oposto do caminho seguido por Emmanuel Macron desde 2017. Sua agenda exacerbou a desigualdade de renda e riqueza, enquanto não houve nenhuma mudança em investimento, criação de empregos ou crescimento. Para combater o apoio à extrema-direita, a estratégia de Macron era buscar apoio tanto do centro-direita quanto do centro-esquerda. Na prática, isso passou a parecer cada vez mais uma coalizão de eleitores abastados e, como as eleições recentes mostraram, não se pode governar de forma sustentável um país com uma base eleitoral tão estreita.

Alguns agora buscam assustar os eleitores de esquerda e centro-esquerda alegando que o programa do NFP para o governo seria perigoso para a economia francesa. Eles estão errados. Não estamos alegando que este manifesto é perfeito – como poderia ser, dado que Macron só permitiu três semanas para se organizar para as eleições? Mas no contexto histórico, ele deve ser considerado um conjunto pragmático e social-democrata de propostas voltadas para a redução das desigualdades e preparação para o futuro. Não há nada de radical nesta agenda.

Talvez o mais importante seja que este programa permitirá que a esquerda tente reconquistar votos em áreas rurais e cidades menores, onde as pessoas gradualmente se voltaram para a extrema-direita. 

No último domingo, o RN obteve uma parcela de votos 1,6 vezes maior em cidades pequenas e médias (50.000 habitantes ou menos) do que em grandes centros urbanos (com populações acima de 250.000). O inverso vale para a esquerda. Digitalizamos todos os resultados de nível de comuna para eleições legislativas desde 1848, e não víamos uma lacuna geográfica tão grande nos padrões de votação desde o fim do século XIX e início do século XX.

Em cidades com populações entre 20.000 e 30.000, como Hénin-Beaumont, uma antiga cidade de mineração de carvão no nordeste, e o distrito eleitoral de Marine Le Pen, o RN obtém 60% dos votos. Mesmo em cidades mais populosas, como Cambrai, em uma região que sofreu grandes paralisações industriais nas últimas décadas e é relativamente mal servida por infraestrutura, como hospitais, universidades e conexões de transporte público, o partido de Le Pen está obtendo pontuações acima de 40%.

Como mostramos em nosso livro Uma História do Conflito Político, pessoas em cidades menores e áreas rurais são atraídas para a extrema-direita principalmente por questões socioeconômicas: elas não têm poder de compra, sofrem mais com a falta de investimento em infraestrutura pública e sentem que foram abandonadas por governos de todos os tipos nas últimas décadas.

A plataforma de políticas do NFP aborda de forma credível como financiar uma estratégia de investimento inclusivo. Em contraste, a extrema-direita argumenta a favor da revogação do imposto existente sobre multimilionários imobiliários. Ela alega que financiará suas políticas mirando estrangeiros e beneficiários de assistência social, mas isso simplesmente gerará mais desilusão econômica e mais tensões.

A única ameaça na França no próximo domingo é a que representa a vitória da extrema-direita. Esperamos que os eleitores centristas entendam o que está em jogo e voltem para a esquerda.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/franca-perda-de-poder-relativo.html

Ucrânia: drama geopolítico

Como salvar a Ucrânia… dos EUA
Tropas da Rússia avançam aos poucos. Plano dos militaristas norte-americanos – humilhar Moscou e ameaçar Pequim – está batido. Há duas alternativas: expandir o conflito, que poderia tornar-se mundial, ou aceitar o convite russo e negociar
Jeffrey D. Sachs, em Common Dreams. Tradução de Glauco Faria  

Pelo amor de Deus, negociem!

Pela quinta vez desde 2008, a Rússia propôs negociar com os EUA sobre acordos de segurança, desta vez com base em propostas feitas pelo presidente Vladimir Putin em 14 de junho de 2024. Nas quatro vezes anteriores, os EUA rejeitaram a oferta de negociações em favor de uma estratégia neocon para enfraquecer ou desmembrar a Rússia por meio de guerra e operações secretas. As táticas neocon dos EUA fracassaram de forma desastrosa, devastando a Ucrânia durante o processo e colocando em risco o mundo inteiro. Depois de todo esse belicismo, é hora de Biden abrir negociações de paz com a Rússia. 

Desde o fim da Guerra Fria, a grande estratégia dos EUA tem sido enfraquecer a Rússia. Já em 1992, o então secretário de Defesa Richard Cheney opinou que, após o fim da União Soviética em 1991, a Rússia também deveria ser desmembrada. Zbigniew Brzezinski sugeriu em 1997 que a Rússia deveria ser dividida em três entidades vagamente confederadas na Europa russa, na Sibéria e no extremo leste. Em 1999, a aliança da Otan, liderada pelos EUA, bombardeou a Sérvia, aliada da Rússia, por 78 dias, para dividir a Sérvia e instalar uma enorme base militar da Otan no Kosovo, que se separou do país. Os líderes do complexo militar-industrial dos EUA apoiaram veementemente a guerra da Chechênia contra a Rússia no início dos anos 2000.

Para garantir esses avanços dos EUA contra a Rússia, Washington promoveu agressivamente a ampliação da OTAN, apesar das promessas feitas a Mikhail Gorbachev e Boris Yeltsin de que a organização não se moveria nem um centímetro para o leste da Alemanha. De forma mais tendenciosa, os EUA promoveram a ampliação da OTAN para a Ucrânia e a Geórgia, com a ideia de cercar a frota naval russa em Sevastopol, na Crimeia, com países-membros da organização: Ucrânia, Romênia (membro da OTAN desde 2004), Bulgária (membro desde 2004), Turquia (membro desde 1952) e Geórgia, uma ideia tirada diretamente do manual do Império Britânico na Guerra da Crimeia (1853-1856).

Brzezinski definiu uma cronologia de ampliação da OTAN em 1997, incluindo a adesão da Ucrânia à organização entre 2005 e 2010. Na verdade, os EUA propuseram a adesão da Ucrânia e da Geórgia na Cúpula de Bucareste, realizada pela entidade em 2008. Em 2020, a OTAN já havia de fato agregado 14 países da Europa Central, do Leste Europeu e da antiga União Soviética (República Tcheca, Hungria e Polônia em 1999; Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia em 2004; Albânia e Croácia em 2009; Montenegro em 2017; e Macedônia do Norte em 2020), enquanto prometia a futura adesão da Ucrânia e da Geórgia.

Em suma, o projeto de 30 anos dos EUA, originalmente concebido por Cheney e pelos neoconservadores e levado adiante de forma consistente desde então, tem sido enfraquecer ou até mesmo desmembrar a Rússia, cercá-la com as forças da OTAN e apresentar a Rússia como a potência beligerante.

É nesse cenário sombrio que os líderes russos têm proposto repetidamente a negociação de acordos de segurança com a Europa e os EUA que proporcionariam segurança a todos os países envolvidos, não apenas ao bloco da OTAN. Orientados pelo plano de jogo neocon, os EUA se recusaram a negociar em todas as ocasiões, enquanto tentavam culpar a Rússia pela falta de negociações.

Em junho de 2008, quando os EUA se preparavam para expandir a OTAN para a Ucrânia e a Geórgia, o presidente russo, Dmitry Medvedev, propôs um Tratado de Segurança Europeia, pedindo segurança coletiva e o fim do unilateralismo da OTAN. Basta dizer que os EUA não demonstraram nenhum interesse nas propostas da Rússia e, em vez disso, prosseguiram com seus planos de longa data para a ampliação da organização.

A segunda proposta russa para negociações veio de Putin, após a violenta derrubada do presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, em fevereiro de 2014, com a cumplicidade ativa, se não a liderança total, do governo dos EUA. E eu vi a cumplicidade dos EUA de perto, pois o governo pós-golpe me convidou para discussões econômicas urgentes. Quando cheguei a Kiev, fui levado ao Maidan, onde fui informado diretamente sobre o financiamento dos EUA para o protesto do Maidan. 

As evidências da cumplicidade dos EUA com o golpe são esmagadoras. A secretária de Estado adjunta Victoria Nuland foi flagrada em uma ligação telefônica, em janeiro de 2014, tramando a mudança de governo na Ucrânia. Enquanto isso, senadores dos EUA foram pessoalmente a Kiev para incitar os protestos (semelhante aos líderes políticos chineses ou russos que foram a Washington em 6 de janeiro de 2021 para agitar as multidões). Em 21 de fevereiro de 2014, os europeus, os EUA e a Rússia intermediaram um acordo com Yanukovych, no qual ele concordou com eleições antecipadas. No entanto, os líderes do golpe renegaram o acordo no mesmo dia, tomaram os prédios do governo, ameaçaram com mais violência e depuseram Yanukovych no dia seguinte. Os EUA apoiaram o golpe e imediatamente reconheceram o novo governo.

Na minha opinião, essa foi uma operação padrão de mudança de regime, secreta, liderada pela CIA, da qual houve várias dezenas em todo o mundo, incluindo 64 episódios entre 1947 e 1989, meticulosamente documentados pelo professor Lindsey O’Rourke. É claro que as operações secretas de mudança de regime não são realmente ocultas, mas o governo dos EUA nega veementemente seu papel, mantém todos os documentos altamente confidenciais e sistematicamente faz seu gaslighting com o mundo: “Não acredite no que você vê claramente com seus próprios olhos! Os EUA não têm nada a ver com isso”. No entanto, os detalhes das operações acabam surgindo por meio de testemunhas oculares, delatores, liberação forçada de documentos nos termos da Lei de Liberdade de Informação, desclassi ficação de documentos após anos ou décadas e memórias, mas tudo isso tarde demais para uma verdadeira responsabilização.

De qualquer forma, o violento golpe induziu a região de Donbas, de etnia russa, no leste da Ucrânia, a se separar dos líderes do golpe, muitos dos quais eram nacionalistas russofóbicos radicais e alguns pertenciam a grupos violentos com histórico de ligações com a SS nazista no passado. Quase imediatamente, as lideranças golpistas tomaram medidas para reprimir o uso do idioma russo, mesmo na região de Donbas, que fala russo. Nos meses e anos seguintes, o governo de Kiev lançou uma campanha militar para retomar as regiões separatistas, empregando unidades paramilitares neonazistas e armas dos EUA.

No decorrer de 2014, Putin pediu repetidamente uma paz negociada, o que levou ao Acordo de Minsk II em fevereiro de 2015, baseado na autonomia de Donbas e no fim da violência de ambos os lados. A Rússia não reivindicou a região como território russo, mas, em vez disso, pediu autonomia e a proteção dos russos étnicos dentro da Ucrânia. O Conselho de Segurança da ONU endossou o acordo de Minsk II, mas os neoconservadores norte-americanos o subverteram de forma privada. Anos depois, a chanceler Angela Merkel revelou a verdade. O lado ocidental tratou o acordo não como um tratado solene, mas como uma tática de adiamento para “dar tempo” à Ucrânia para construir sua força militar. Nesse meio tempo, cerca de 14 mil pessoas morreram nos combates em Donbas entre 2014 e 2021.

Após o colapso definitivo do acordo de Minsk II, Putin propôs novamente negociações com os EUA em dezembro de 2021. A essa altura, as questões iam além da ampliação da OTAN e incluíam questões fundamentais de armamentos nucleares. Passo a passo, os neoconservadores dos EUA abandonaram o controle de armas nucleares em conjunto com a Rússia, abandonando também unilateralmente o Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM) em 2002, colocando mísseis Aegis na Polônia e na Romênia a partir de 2010 e saindo do Tratado de Força Nuclear Intermediária (INF) em 2019.

Em vista dessas terríveis preocupações, Putin colocou na mesa, em 15 de dezembro de 2021, um projeto de “Tratado entre os Estados Unidos da América e a Federação Russa sobre Garantias de Segurança”. A questão mais imediata sobre a mesa (artigo 4 do projeto de tratado) foi o fim da tentativa dos EUA de expandir a OTAN para a Ucrânia. Liguei para o assessor de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, no final de 2021 para tentar convencer a Casa Branca de Biden a entrar nas negociações. Meu principal conselho foi evitar uma guerra na Ucrânia, aceitando a neutralidade do país em vez da adesão à OTAN, que era uma linha vermelha luminosa para a Rússia.

O presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, aceitou rapidamente a neutralidade do país, e a Ucrânia e a Rússia trocaram documentos, com a mediação hábil do Ministério das Relações Exteriores da Turquia. Então, repentinamente, no final de março, a Ucrânia abandonou as negociações.

O então primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, seguindo a tradição do belicismo anti-russo britânico que remonta à Guerra da Crimeia (1853-6), foi até Kiev para advertir Zelensky contra a neutralidade e a importância de a Ucrânia derrotar a Rússia no campo de batalha. Desde essa data, a Ucrânia teve cerca de 500 mil mortos e está nas cordas no front.

Agora temos a quinta oferta de negociações da Rússia, explicada de forma clara e convincente pelo próprio Putin em seu discurso para diplomatas no Ministério das Relações Exteriores da Rússia em 14 de junho. O presidente russo expôs os termos propostos pelo país para acabar com a guerra na Ucrânia.

“A Ucrânia deve adotar um status neutro e não alinhado, ser livre de armas nucleares e passar por desmilitarização e desnazificação”, disse Putin. “Esses parâmetros foram amplamente acordados durante as negociações de Istambul em 2022, incluindo detalhes específicos sobre desmilitarização, como o número acordado de tanques e outros equipamentos militares. Chegamos a um consenso em todos os pontos.”

“Certamente, os direitos, as liberdades e os interesses dos cidadãos de língua russa na Ucrânia devem ser totalmente protegidos”, continuou ele. “As novas realidades territoriais, incluindo o status das repúblicas populares da Crimeia, Sevastopol, Donetsk e Lugansk, Kherson e Zaporozhye como partes da Federação Russa, devem ser reconhecidas. Esses princípios fundamentais precisam ser formalizados por meio de acordos internacionais fundamentais no futuro. Naturalmente, isso também implica a remoção de todas as sanções ocidentais contra a Rússia.”

Permitam-me dizer algumas palavras sobre a negociação.

As propostas da Rússia devem agora ser respondidas na mesa de negociações por propostas dos EUA e da Ucrânia. A Casa Branca está totalmente errada em fugir das negociações apenas por causa de discordâncias com as propostas da Rússia. Ela deveria apresentar suas próprias propostas e começar a negociar o fim da guerra.

Há três questões centrais para a Rússia: A neutralidade da Ucrânia (não ampliação da OTAN), a permanência da Crimeia nas mãos dos russos e as mudanças de fronteiras no leste e no sul da Ucrânia. As duas primeiras são quase certamente inegociáveis. O fim da ampliação da OTAN é o casus belli fundamental. A Crimeia também é essencial para a Rússia, pois ela abriga a frota russa do Mar Negro desde 1783 e é fundamental para a segurança nacional do país.

A terceira questão central, as fronteiras do leste e do sul da Ucrânia, será um ponto-chave das negociações. Os EUA não podem fingir que as fronteiras são sacrossantas depois que a OTAN bombardeou a Sérvia em 1999 para que renunciasse ao Kosovo e depois que os EUA pressionaram o Sudão para que renunciasse ao Sudão do Sul. Sim, as fronteiras da Ucrânia serão redesenhadas como resultado dos dez anos de guerra, da situação no campo de batalha, das escolhas das populações locais e das compensações feitas na mesa de negociações.

Biden precisa aceitar que as negociações não são um sinal de fraqueza. Como disse Kennedy: “Nunca negocie por medo, mas nunca tenha medo de negociar”. Ronald Reagan descreveu de forma famosa sua própria estratégia de negociação usando um provérbio russo: “Confie, mas verifique”.

A abordagem neocon em relação à Rússia, ilusória e arrogante desde o início, está em ruínas. A OTAN nunca será ampliada para a Ucrânia e a Geórgia. A Rússia não será derrubada por uma operação secreta da CIA. A Ucrânia está sendo horrivelmente ensanguentada no campo de batalha, muitas vezes perdendo 1.000 ou mais mortos e feridos em um único dia. O fracassado plano de jogo neocon nos aproxima do Armagedom nuclear.

No entanto, Biden ainda se recusa a negociar. Após o discurso de Putin, os EUA, a OTAN e a Ucrânia rejeitaram firmemente as negociações mais uma vez. Biden e sua equipe ainda não desistiram da fantasia neocon de derrotar a Rússia e expandir a OTAN para a Ucrânia.

O povo ucraniano foi enganado inúmeras vezes por Zelensky, Biden e outros líderes dos países da OTAN, que lhes disseram falsa e repetidamente que a Ucrânia prevaleceria no campo de batalha e que não havia opções de negociação. A Ucrânia está agora sob lei marcial. O público não tem voz sobre seu próprio massacre.

Para o bem da própria sobrevivência da Ucrânia e para evitar uma guerra nuclear, o presidente dos Estados Unidos tem uma responsabilidade primordial hoje: Negociar.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/06/russia-x-ucrania-geopolitica.html 

06 julho 2024

Minha opinião: boicote ao regime federativo

Governadores retrógrados 

Luciano Siqueira  

Governadores de orientação bolsonarista têm se negado a comparecer a atos oficiais promovidos pelo governo federal. 

Não desejam fortalecer o presidente Lula. 

O que é pura bobagem. Antes, demonstração retrógrada da polarização política e ideológica elevada à décima potência. 

O Brasil é constitucionalmente uma República federativa. União Federal, Estados e Municípios devem manter relações cooperativas entre si, na esfera administrativa, em favor do bom cumprimento de suas funções. 

Recordo-me de um evento no Palácio do Campo das Princesas, no Recife, quando o então governador Miguel Arraes discursou enaltecendo "a sensibilidade social" do presidente Fernando Henrique Cardoso. 

Era um ato que formalizava a liberação de recursos federais para o programa "Chapéu de palha", do governo estadual.

Me surpreendeu o tom de Miguel Arraes, Fernando Henrique tratava o governo de Pernambuco a pão e água. 

Já no final da noite liguei para o governador e manifestei a minha estranheza. 

Do outro lado da linha, ele me respondeu que havia um detalhe para o qual eu não estava dando a devida atenção. Chamou-me para um café na manhã seguinte e conversamos sobre o fato e extensivamente sobre a conduta correta do gestor público, que segundo ele deveria ser desprovida da contaminação das disputas políticas momentâneas. 

— O governador não faz oposição ao presidente da República. Cabe ao partido a que pertence e não a ele pessoalmente. 

Vivíamos outro tempo. A luta política era acirrada, a demarcação de campos explícita. E contávamos com quadros da estirpe de um Miguel Arraes, sob muitos aspectos exemplo para as novas gerações que se formavam. 

A atitude dos atuais governadores bolsonaristas traduz uma percepção mesquinha da função pública, que em nada contribui para o fortalecimento do regime democrático.

Contrasta com a postura dos governadores que, no governo passado, respeitavam o princípio federativo e, mesmo tratados com hostilidade, compareciam a eventos convovados pelo então presidente Bolsonaro.

O neofascismo acrescenta uma gota de ódio em tudo. Contra o processo civilizatório da nação.

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Pesquisa da CBS News/YouGov revela que 72% dos eleitores norte-americanos acham que Biden não tem a saúde mental e cognitiva necessária para seguir na presidência dos EUA. E a alternativa Trump é ainda pior. Coisa de superpotência declinante.

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/eua-o-muro-de-biden-e-o-mesmo-de-trump.html

O domínio da Inteligência Artificial

A máquina é máscara: qual é o papel das novas tecnologias, como a IA?
Com seus algoritmos, empresas vêm definindo quase tudo o que consumimos no dia a dia, as marcas que devemos comprar e até as pessoas com quem interagimos
Roger Dörl/Le Monde Diplomatique

A internet está longe de completar meio século de existência, mas já falamos dela como se sempre tivesse estado aí. Desde o início, a noção que temos é que ela funciona como uma praça pública onde todos podem ser vistos e ouvidos da mesma maneira.

Conforme a conhecemos melhor, porém, entendemos que não é bem assim: existe uma coisa chamada “algoritmo”, que é o que decide quem realmente será visto e ouvido por quem. Daí vem o segundo erro mais comum em nossa avaliação: a crença de que algoritmos são “neutros”, “imparciais” e oferecem as mesmas chances para todo mundo. 

Atualmente, há cada vez mais mentores na internet prometendo ensinar a “dominar” algoritmos para aumentar os números de seguidores e visualizações. Mas a verdade é que não tem como garantir isso, porque o funcionamento dos algoritmos nunca foi totalmente explicado. Cada rede cria as próprias regras — mas nenhuma jamais divulgou todos os detalhes de suas regras. Elas podem ser qualquer coisa, até seletivas e com definições bem específicas do que pode ou não viralizar, por exemplo, como nas piores teorias da conspiração.

Basicamente, algoritmos não são neutros nem imparciais porque cada empresa estabelece os próprios valores para medir a qualidade e o interesse de cada postagem e decidir como será sua distribuição e alcance. Esses valores não são absolutos matemáticos, mas estão cheios de juízos de “bom e mau”, “relevante e irrelevante” etc. — que, no fim das contas, são só e simplesmente valores humanos. Mesmo quando eles sofrem a deformação das tentativas de reduzi-los a números.

Ainda assim, são essas empresas com seus algoritmos que vêm definindo quase tudo o que consumimos no dia a dia, as marcas que devemos comprar e até as pessoas com quem interagimos. É um poder muito grande que delegamos a essas empresas e aos seus próprios valores. Fechar os olhos para isso cabe muito bem nos rótulos de “alienação”, “negacionismo” ou “escapismo” que temos sido tão rápidos em aplicar em outras discussões.

Tudo isso é bastante evidente, também, quando falamos nas inteligências artificiais e nos riscos que elas oferecem. Na literatura, no cinema e, cada vez mais, no senso comum, costuma ser sempre a tecnologia em si que traz mais riscos. É ela que se torna vilã, e que, se sair do controle, pode acabar provocando a extinção da raça humana na Terra. Como se todas as suas possíveis ações não tivessem obrigatoriamente uma base em valores humanos e nas intenções das pessoas que as estão construindo.

O potencial das inteligências artificiais é imenso, mas elas dependem exclusivamente de nossas escolhas. Até o momento, o que vemos são máquinas construídas para reduzir gastos e tempo de produção, para se tornarem diferenciais em uma corrida econômica que não acaba nunca. São máquinas criadas para a competição, para esse cenário onde o importante é ser “mais”, “maior”, “melhor” que o outro.

É por isso que as discussões sobre IAs sempre citam que seria perigosa uma inteligência “maior” que a humana. Uma inteligência “maior” só é perigosa em um cenário de confronto, não de colaboração.

Nada me convence que essas novas máquinas, com tanta capacidade, potenciais e informação disponível, não poderão em breve — e  com facilidade — resolver problemas como a desigualdade social ou o aquecimento global, para citar o mínimo. Mas a pergunta aqui é: é para isso mesmo que elas estão sendo construídas? E então: qual é o rosto atrás da máquina?

Roger Dörl é escritor, com formação em teatro, e especialista na área de Letras, além de pesquisador da Filosofia, Psicologia e Espiritualidade. É autor do “Alena existe” (Ases da Literatura, 2024, 492 pág.) em que discute temas essenciais do mundo contemporâneo, como as implicações da realidade virtual e inteligência artificial em questões sociais e de saúde mental.

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Urariano Mota opina

A volta da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos
A recriação da Comissão pelo presidente Lula, com a procuradora Eugênia Augusta Gonzaga, renova a esperança de justiça histórica para as vítimas da ditadura.
Urariano Mota*/Vermelho   

Depois do anúncio da próxima prisão de Bolsonaro, a melhor notícia da semana foi a recriação, pelo Presidente Lula, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A necessária comissão havia sido destruída pelo governo fascista que dirigiu o Brasil antes do nosso governo democrata. No retorno da Comissão, teremos a volta da brava Procuradora Eugênia Augusta Gonzaga. 

Nunca será demais lembrar que a doutora Eugênia Augusta Gonzaga esteve à frente e inspirou o Grupo de Trabalho Perus, responsável por identificar ossadas de presos políticos em São Paulo. O objeto era a identificação de 1.047 restos mortais de desaparecidos políticos enterrados no cemitério de Perus. Se não houvesse feito mais que isso, já estaria qualificado para todo trabalho de justiça histórica.

Na Comissão que retorna, teremos ainda Maria Cecília de Oliveira Adão, representante da sociedade civil; Rafaelo Abritta, representante do Ministério da Defesa; e Natália Bonavides (PT-RN), deputada federal. A esta altura, alimentamos a esperança de que a Comissão não seja republicana no pior sentido, naquele da pretensa imparcialidade. Queremos dizer, a verdade tem que ser parcial, absolutamente parcial na defesa dos ex-presos políticos e punição aos criminosos assassinos da tortura. Ela não poderá jamais repetir o erro que abrigou antes um jurista pernambucano, que depois, ao fim, saiu a defender torturadores do regime, porque a anistia havia sido “para os dois lados”! Acreditem, na redemocratização ainda existiu quem defendesse um lei atravessada à força no fim da ditadura, de escárnio à justiça.  

Agora, temos a esperança ainda que sejam desenterrados os processos emperrados pelos mais torpes motivos e desculpas. Entre eles, o de Givaldo Gualberto da Silva, processo de Anistia 2010.01.67794. A razão é de urgência. O seu estado de saúde é gravíssimo. Na idade de 82 anos, tornado cego, e com outros males, como suspeita de câncer. Nomeio Givaldo porque o conheço de mais perto. Mas existem outros processos, que por demora e lentidão burocrática terão os benefícios concedidos aos herdeiros. Os injustiçados podem perder e já perderam um mínimo de dignidade no fim das suas vidas.

A nota boa e feliz desta semana foi o decreto do Presidente Lula em 04/07/2024:

“Considerando o disposto no art. 84,caput, inciso VI, alínea “a”, da Constituição, e tendo em vista o disposto nos art. 5º e art. 13 da Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, torno sem efeito o Despacho do Presidente da República, publicado no Diário Oficial da União de 30 de dezembro de 2022, Seção 1, Edição Extra A, que aprovou o Relatório Final de Atividades da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, referente ao período de dezembro de 1995 a dezembro de 2022, e declaro a continuidade das atividades da Comissão Especial, na forma prevista no art. 4º da Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995”.

Isso é poesia da vida escrita em forma de decreto. Que os recebedores de justiça se tornem poemas inesquecíveis de todos os brasileiros. Bem-vinda a volta da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos.

*Jornalista e escritor

Sylvio: desfaçatez

O deputado pastor Marco Feliciano pede aos evangélicos para não denunciarem pastores que cometem abusos sexuais contra crianças e estupros nas delegacias e sim no círculo de oração das igrejas. Um vergonhoso convite à impunidade,  que fará aumentar o número de pastores delinquentes que, somente no ano de 2023, atingiu a marca de 83.

Sylvio Belém

Minha opinião: futebol brasileiro frágil

Nosso futebol em transe 

Luciano Siqueira  

A seleção brasileira enfrenta hoje o Uruguai, pela Copa América, cercada por um misto de receio e alguma indiferença. 

Não empolga os torcedores, postos a uma distância emocional talvez maior do que a que já se estabeleceu nos últimos anos, e com o status de time em formação.

Errado é avaliar que o time entrará em campo fragilizado e dependente de lampejos ocasionais de alguns craques e hipotéticas falhas do adversário por uma razão circunstancial: o trabalho do técnico Dorival Júnior, ainda nos primeiros passos, após o fracasso do treinador temporário Fernando Diniz. 

Não é simplesmente isso, infelizmente. 

O futebol brasileiro que chegou a encantar o mundo a partir da conquista de 1958 até o final dos anos 70 perdeu a técnica, a estrutura e o encanto. 

São novos tempos, o futebol profissional elevado pela ciência e pela tecnologia sofisticadas e por conceitos gerenciais muito superiores aos de décadas passadas. 

Os europeus estão na frente por inúmeras razões e, sobretudo, pelo profissionalismo elevado ao extremo, lastreado por uma infraestrutura de ponta apoiada no chamado grande negócio do futebol. 

No Brasil, com algumas poucas exceções em grandes clubes, a improvisação ainda é a marca e o imediatismo a consequência. 

Subproduto disso é uma espécie de crise de concepção estratégica e tática dentro do campo, que tem levado grandes clubes da série A a recorrer cada vez mais a técnicos portugueses e argentinos, subestimando os brasileiros, mesmo os mais experiente e bem testados. 

Então a seleção canarinha, repito, em crise existencial, momentaneamente se vê num incômodo quarto lugar em nosso subcontinente, atrás de Argentina, Uruguai e Colômbia.

Temos chances de recuperar a aura de melhores do mundo? Talvez. Mas levará ainda muito tempo.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/01/minha-opiniao_9.html

Enio Lins opina

A fome como arma para eliminação de populações indesejáveis
Enio Lins    

No dia 27 de junho a Câmara Municipal de São Paulo aprovou, em primeira votação, projeto de lei que procura impedir a doação de alimentos a moradores de ruas e praças. Multas pesadas, na ordem de R$ 17 mil, serão aplicadas contra pessoas físicas e jurídicas flagradas no “delito” de doar alimentação aos vulneráveis. Para se habilitar da dar comida a alguém com fome, a proposta elenca rosários de exigências dificilmente capazes de serem atendidas por quem queira exercer esse gesto de solidariedade.

ÓDIO AOS POBRES

Quais razões motivariam o impedimento da milenar atitude de doar alimento a quem tem fome? Todas as religiões inscrevem em suas normas e livros sagrados a ação de solidariedade ao próximo como recomendação ou mesmo obrigação, sendo esse um dos degraus para se ascender ao paraíso na maioria das crenças. Descrentes e ateus também se lançam, historicamente, às iniciativas destinadas a amainar a fome alheia. Que tipo de ideologia aponta para o isolamento dos famintos em sua desgraça?

DESUMANIDADE MILITANTE

Fato é que pululam, cada dia com mais força e maior atrevimento, ideias baseadas na eliminação de quem seja considerado “perdedor” e/ou “incapaz”. O famigerado “darwinismo social” (denominação tremendamente injusta ao grande Charles Darwin), numa caricatura cruel das teses sobre a evolução das espécies, defende que os seres considerados “inferiores” – por raça, condição social ou de saúde – sejam excluídos da sociedade por serem “inaptos”, e para que os “aptos” possam prosperar com mais facilidade. O nazismo praticou com rigor mortal esse tipo de crença na necessidade de dar uma solução final aos indesejáveis.

SOLIDARIEDADE HUMANA

Não é a caridade solução para os problemas sociais, assim como doações de comida não resolvem a tragédia da fome. Estamos falando de paliativos, de gestos individuais ou coletivos capazes de minorar os sofrimentos de uma população marginalizada e despossuída de tudo, até da esperança. Verdade é o alerta feito por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira em “Vozes da Seca”: “Uma esmola a um homem que é são/ Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”. Sim, sim. A eliminação da fome e a inclusão social só podem ser enfrentadas para valer com políticas públicas e medidas econômicas de larga visão social. É um erro acreditar no assistencialismo como via de erradicação da miséria, mas o gesto de solidariedade humana de dar um pão a quem tem fome não pode ser in terpretado como um ato de delinquência.

SOLUÇÃO FINAL?

É essa lei em processo de aprovação pela Câmara Municipal de São Paulo um passo a mais num caminho que tem ganhado força no Brasil desde 2018, com a assunção do ideário covarde e desumano que é a marca do “mito”. Não se trata apenas de uma ação da pauliceia de extrema-direita desvairada que enxerga nas ações do Padre Lancelotti uma ameaça terrível, mas mais uma manifestação do entendimento verbalizado pelo então deputado Jair Messias, em termos transcritos no Diário da Câmara dos Deputados, em 16 de abril de 1998, e reproduzidos pelo Blog do Otávio Guedes/G1, em 16/03/2022: “realmente, a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou os índios no passado e hoje não têm esse problema no país”. Convém não e squecer que, além da bala, a fome foi a principal arma para a dizimação das populações originárias da América do Norte, tidas como “inferiores” e “vagabundas” pelos “homens de bem” do velho oeste, talkey?

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2022/05/povo-em-situacao-de-rua.html

05 julho 2024

Minha opinião/base social neofascista

No front da insegurança e do medo 

Luciano Siqueira  

Vivemos tempos difíceis, aqui e mundo afora. 

O pano de fundo é a crise do sistema econômico e social dominante, que se arrasta sem perspectiva de solução e carrega como subprodutos a ultra concentração da renda e da riqueza, transformações profundas no modo de produzir bens e serviços e na exclusão da imensa maioria dos que dependem do trabalho para sobreviver.

Do que decorre um ambiente social marcado pelo medo e pela frustração, onde vicejam ideias e comportamentos radicalmente individualistas e conservadores. 

 

Quando da ocorrência do vandalismo golpista de 8 de janeiro, em Brasília, pesquisas revelaram o perfil dominante entre os envolvidos: homens e mulheres de mais de quarenta anos, frustrados e sem perspectiva de melhoria de vida, capturados pela pregação conservadora nos costumes e extremista de direita.

 

Essa gente, ao modo de gado, como se diz, é levada a uma sensação de pertencimento a algo que lhe sensibiliza como revolta, ainda que sem perspectiva real de solucionar suas carências fundamentais.

 

Um material humano que, ao modo do antigo lumpemprolateriado, sensível à pregação da classe dominante, apesar de por ela explorado.

 

Aí vicejam a chamada guerra cultural e a ideologia do ódio, alimentando uma imensa massa de manobra sensível a fake news e a todo tipo de pregação neofascista.

 

O contraponto na base da sociedade há de ser a reestruturação dos movimentos populares inspirados na consciência de classe e num rumo político libertário.


Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/minha-opiniao-no-cafe-e-nas-redes.html