09 março 2025

Palavra de poeta: Ana Bailune

NA ALMA
Ana Bailune  

É só na alma,
Na branca paz da alma,
Na calma,
Ou na calda quente,
Fervente da alma,
Que desabrocham,
Ascendem,
Revelam-se…

É só no sangue,
No vermelho mais rubro,
No escuro,
Na luz viva
E ativa
Da alma,
Que eu me desaguo.

Não é o número
Dos meus passos,
Ou de minhas sílabas
Que determinam
O que me determina!
É só a alma,
Aquela parte de mim
Que está entre o ir
E o ficar,
O dizer

E o calar,
O morrer
E o viver,
O acordar
E o sonhar.

Sempre no meio,
Um pé no chão,
Outro na lua,
Um pensamento cúbico,
Outro pensamento súbito,
Uma nesga de treva
E outra nesga de luz.
E tudo vem da alma,
Esse lago que não seca,
Que não seca jamais.
É de lá que eles vem:
Os meus poemas,
E de nenhum outro lugar
Que tu ou qualquer
um queiram nomear!

[Ilustração: Amedeo Modigliani]

08 março 2025

Como surgiu o Dia Internacional da Mulher

Dia Internacional da Mulher: como a luta de operárias russas por paz e pão marca o 8 de Março
Conheça a origem do 8 de março e sua relação com os protestos das mulheres em Petrogrado por pão, paz e direitos trabalhistas em 1917, que não só marcaram a data, mas também foram o estopim da Revolução Russa
Ana Prestes/Portal Grabois www.grabois.org.br

 

O Dia Internacional da Mulher tem suas raízes em uma luta contra a guerra e pela paz. Vou contar um pouco dessa história que, embora não seja tão difundida, foi fundamental para que o 8 de março se tornasse um marco de celebração e reivindicação dos direitos das mulheres.

Primeiro, é importante dizer que não houve um dia específico, uma única reunião em que as mulheres disseram: “Vai ser o dia 8 de março, o Dia Internacional da Mulher”. Foi um processo que começou no final do século XIX e início do século XX, por iniciativa de mulheres que lutavam pelo socialismo, pelos direitos trabalhistas e pelo sufrágio feminino. O impacto da Revolução Industrial sobre as mulheres era forte, e a necessidade de organização e mobilização crescia a cada dia.

Duas figuras foram importantíssimas: Alexandra Kollontai, revolucionária russa, e Clara Zetkin, militante socialista e comunista alemã. Mas foram as mulheres anônimas de Petrogrado (atual São Petersburgo) que, em 8 de março de 1917, desempenharam um papel decisivo na história do Dia Internacional da Mulher.

Naquele março de 1917, o planeta enfrentava a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A Rússia já havia sacrificado muitos homens nas frentes de batalha, e as mulheres que permaneceram no país assumiram a árdua tarefa de sustentar a economia, cuidar das famílias e sobreviver.

Um milhão de mulheres trabalhavam na Rússia. A guerra foi um empurrão para que elas assumissem os mais diversos postos de trabalho. Além disso, cuidavam de feridos e das crianças. Mesmo assim, eram superexploradas e recebiam metade do salário dos homens.

A situação formou um caldeirão de insurreição social. O inverno foi rigoroso e o transporte de alimentos disputava espaço nos vagões das linhas férreas com armamentos e soldados. A dificuldade para comprar pão mantimentos básicos e o anúncio da autoridade local de Petrogrado, então a capital Russa, de que haveria um racionamento ainda maior gerou revolta na sociedade, especialmente nas mulheres, que passaram a realizar ações espontâneas contra a guerra, pela paz e pela garantia da sobrevivência básica, como o acesso ao pão e à comida.

No dia 8 de março de 1917, mulheres das fábricas têxteis de Petrogrado pararam as atividades e saíram às ruas. Na zona industrial, convenceram operários metalúrgicos, que também tinham programado uma greve, mas só para o 1º de maio, a aderirem ao protesto. O movimento seguiu até a praça onde ficava a estátua do Czar Alexandre III. Estudantes e comerciantes também se juntaram ao protesto, que reuniu cerca de 150 mil pessoas. A derrocada do regime czarista da família Romanov, que dirigia o país, começou por causa da iniciativa de mulheres que pediam pão e paz para o seu povo naquele 8 de março.

Estava deflagrada a Revolução de Fevereiro, considerada o estopim da Revolução Russa. E aqui cabe uma explicação: na época, o país adotava o calendário juliano, que tem 13 dias de defasagem em relação ao nosso calendário gregoriano. Assim, o dia 23 de fevereiro de 1917, data do início da revolução, corresponde, para a maioria dos países, inclusive para a Rússia atualmente, ao dia 8 de março. 

É importante dizer que, anos antes, mulheres em diferentes partes do mundo já se reuniam em torno de datas próximas ao início de março para reivindicar seus direitos. Isso ocorreu desde 1910, quando Clara Zetkin apresentou, no 2º Congresso Internacional das Mulheres Socialistas, a proposta de um Dia Internacional da Mulher nesse período, ainda sem uma data fixa.

Nos Estados Unidos, por exemplo, ocorreram greves e protestos, como o trágico incêndio na fábrica Triangle Shirtwaist, em 1911, que matou centenas de mulheres. Então, a definição do Dia Internacional da Mulher foi resultado da convergência de diversas iniciativas, principalmente entre 1910 e 1917, que impulsionaram a realização de atividades e manifestações nessa época do ano.

O 8 de Março nasce absolutamente associado à luta contra a guerra, encampada pelas mulheres russas. Deixo aqui minha homenagem a essas mulheres de Petrogrado, que nos inspiram a seguir lutando por paz, por pão e por justiça social.

Ana Prestes é pesquisadora do Observatório Internacional, Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois, e Secretária de Relações Internacionais do PCdoB. Todas as sextas-feiras, comanda o programa Conexão Sul Global, exibido pela TV Grabois.

[Ilustração: Trabalhadoras das fábricas das fábricas têxteis no primeiro dia da Revolução de Fevereiro em Petrogrado (Rússia), 8 de março (23 de fevereiro no calendário juliano) de 1917. Foto: Domínio Público]

Leia: Feminismo e luta de classes Leia: Feminismo e luta de classes https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/luta-pela-igualdade.html

Postei no X

Europa calcula o custo de se defender sem os EUA: 300 mil soldados e 250 bilhões de euros a mais sob a hipótese improvável de ataque russo e momentaneamente deserdada pelos EUA. O mundo gira — e muda. 

Leia: Trump e o caos em ordem https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/minha-opiniao_6.html 

Minha opinião

Tentativa de “apropriação” de Haddad 
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65

É um jogo tático que todos praticam. Na luta revolucionária coleciona sucessos ao longo da história. Lênin o praticou com maestria. 

Quem disse que a direita também não tenta? 

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não há sombra de dúvida, é um preposto (no bom sentido) do presidente da República. Igualmente seus colegas de Esplanada. 

Haddad tem a dura missão de enfrentar cotidianamente as pressões do mercado financeiro no sentido de preservar o equilíbrio fiscal a todo preço — mesmo que isso signifique quase impossibilidade de efetuar políticas sociais compensatórias, tão necessárias num país em que a maioria sofre da pobreza e até da miséria; assim como investimentos públicos em infraestrutura que possibilitem o incremento de atividades industriais. 

O governo tem feito concessões ao mercado. Não por convicção, mas por necessidade política tendo em vista a correlação de forças em presença. 

Nessas situações, o executor é o ministro da Fazenda, do que se valem os arautos do mercado para tentar incensá-lo em certos momentos, sem deixar de combatê-lo duramente na maioria das vezes, entretanto vorazes no intuito de usá-lo como uma cunha capaz de dividir o governo. 

Agora mesmo com a assunção da deputada Gleisi Hoffmann à condição de ministra chefe da Secretaria de Relações Institucionais, ensaia-se uma espécie de "defesa" do ministro da Fazenda em razão de que quando presidente do PT (cargo de que acaba de se afastar em razão da sua ida para o governo) Gleisi se pronunciou muitas vezes contra as pressões do mercado, que segundo o tratamento da mídia, parecia combate ao ministro Haddad. 

Mas a manobra tática de agora — o Estadão, por exemplo, afirma é editorial que a postura do ministro da Fazenda em defesa da política fiscal ficará mais difícil — não dará resultados. 

Nem Gleisi Hoffmann assumirá a condução da política econômica, nem Fernando Haddad fará nada que não seja em consonância ou sob a orientação do próprio presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

Leia: O principal problema do governo é político, mas será superado”, diz líder do PCdoB https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/palavra-de-renildo.html

Postei no Threads

Uma lição que só não aprende quem não quer: a precipitação é irmã gêmea do erro. 

Leia: Quem brinca com a Inteligência Artificial?
https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/enio-lins-opina_22.html

Luta pela igualdade

Feminismo socialista e a luta de classes no Dia Internacional da Mulher
O Dia Internacional da Mulher surgiu da luta operária e foi impulsionado pela Revolução Russa. Feministas socialistas alertam para a mercantilização da data
Lucas Toth/Vermelho  

O Dia Internacional da Mulher tem suas raízes fincadas no chão de fábrica, na greve, na fome e na revolução. Nasceu das lutas operárias do início do século XX, cresceu com a Revolução Russa de 1917, atravessou o século como um símbolo da resistência feminina e, hoje, vê-se ameaçado pelos artífices do liberalismo. Transformaram o 8M em peça de marketing. 

O que nasceu como um dia de combate contra a opressão de gênero e de classe segue sendo um marco de luta, mas o capitalismo tenta transformá-lo em um festival de mensagens vazias, flores no escritório e discursos genéricos sobre “empoderamento”.

A cena se repete ano após ano: grandes corporações vestem suas redes sociais de roxo, influencers fazem postagens melancólicas, CEOs distribuem brindes às funcionárias. Tudo muito bonito – até que chega o dia 9 de março e as mesmas empresas seguem pagando salários menores às mulheres, abafando denúncias de assédio e perpetuando a exploração da força de trabalho feminina. 

A burguesia, que transformou o 1º de Maio num inofensivo “Dia do Trabalho”, agora tenta fazer o mesmo com o 8 de Março.

Mas o 8M nunca foi sobre isso. O dia remonta ao 2º Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, realizado em 1910, na Dinamarca. Foi ali que Clara Zetkin, militante comunista, propôs uma data para unificar a luta das mulheres operárias. A reivindicação central? Direitos políticos e trabalhistas. 

O voto feminino era pauta, sim, mas sempre ligado à luta contra a exploração. Nada tinha a ver com a ascensão de “girlbosses” no mercado financeiro ou de executivas em bancos que seguem sugando o suor da classe trabalhadora.

A data só se consolidaria em 1917, quando as operárias de Petrogrado saíram às ruas exigindo “pão e paz”. Eram costureiras, tecelãs, trabalhadoras exaustas da guerra, da miséria e da fome. Foram elas que, no 23 de fevereiro do calendário russo (8 de março no Ocidente), incendiaram a revolta que derrubou o czar e abriu caminho para a Revolução de Outubro.

A União Soviética, ao contrário dos liberais que gostam de reescrever a história, não ignorou a luta das mulheres. Foi lá que o aborto foi legalizado pela primeira vez no mundo, que creches públicas foram criadas em massa e que as mulheres conquistaram avanços que no Ocidente só viriam décadas depois. Foi a Revolução Russa que fez do 8 de Março um dia oficial de luta da classe trabalhadora, e não um feriado corporativo.

Mas a história é seletiva. Quando a ONU oficializou a data em 1975, o fez já sob uma ótica esvaziada de seu conteúdo revolucionário. O discurso predominante passou a focar na “igualdade de gênero” sem tocar no capitalismo patriarcal que perpetua a desigualdade. Vieram os tapinhas nas costas, os eventos institucionais e o feminismo higienizado para caber nos discursos de CEO.

Clara Zetkin já alertava para esse risco. Em 1894, ela escreveu que “o feminismo burguês e o movimento de mulheres proletárias são fundamentalmente distintos.” Para as trabalhadoras, a luta é contra o patrão e contra o machismo, mas as feministas da burguesia querem apenas seu próprio espaço dentro do sistema – um lugar na mesa, mesmo que a mesa siga sustentada pelo suor de milhões de trabalhadoras invisíveis.

E aqui estamos. O 8 de Março chegou, preparado pelas grandes empresas e suas campanhas. Falarão sobre “empoderamento”, sobre “lugar de fala”, sobre “mulheres no topo”. Mas não falarão sobre as operárias que costuram suas roupas em Bangladesh por centavos, nem sobre as trabalhadoras precarizadas do Brasil, nem sobre as mulheres camponesas que seguem sendo assassinadas por defenderem a reforma agrária.

Resta saber: vamos resgatar a vocação revolucionária do 8M, ou vamos assistir, inertes, à sua conversão definitiva em um espetáculo publicitário?

A história já deu sua resposta. As operárias de Petrogrado não pediram flores. Pediram revolução.

Leia também: 8 de Março: a verdadeira origem da data que celebra as mulheres https://lucianosiqueira.blogspot.com/2022/03/8-de-marco.html 

Palavra de poeta: Lara de Lemos

PENÉLOPE
Lara de Lemos  

No tear pequeno
teço os fios
da minha vida
teço o tédio.
 
No tear do tempo
teço teia in-
consistente
teço o verso.
 
No tear do Universo
teço o verbo
solitário
teço o poema.
 
No tear do medo
teço o pano
derradeiro
teço o sudário.

[Ilustração: Moisés Kisling]

07 março 2025

Futebol: quem é o quê?

Artilheiros e craques artilheiros
É preciso separar uma coisa da outra; o que encanta não é só o número de gols
Tostão/Folha de S. Paulo 

"Ainda Estou Aqui", o melhor filme internacional conta com enorme sensibilidade, simplicidade e emoção, sem espetacularização e efeitos especiais, a vida de uma família decente e humana, atormentada pela ditadura. Vendo o filme parece que estamos dentro da casa. Talento é tornar simples o que é complexo.

Lembrei-me da época, 1971, um ano depois da conquista da Copa do Mundo e um ano antes da Copa das Confederações, quando o Brasil ganhou a final contra Portugal por 1 x 0, no Maracanã. Eu, que joguei improvisado de centroavante na copa de 1970, atuei na posição de Pelé, que já tinha se despedido da seleção, que era a mesma posição que eu atuava no Cruzeiro.

A seleção se hospedava no Hotel das Paineiras, perto do Cristo Redentor. Treinávamos, com frequência, na Urca, onde foi filmado "Ainda Estou Aqui". Nas folgas, descia de bondinho que passava atrás do hotel até o bairro Santa Tereza. Daí ia passear no Leblon, onde ficava a casa que não existe mais da família Paiva. Gostava de andar pelo Arpoador para ver o pôr do sol e quem sabe encontrar os meus ídolos literários, como Fernando Sabino e outros, que costumavam se encontrar no bar Barril.

Entre os anos de 1969 e 1972, dei uma entrevista no Pasquim, quando critiquei a ditadura e a falta de liberdade. Pouco tempo depois, alguém que não conhecia, me telefonou, disse que era meu admirador e no final me alertou para ter cuidado com o que dizia. Como mineiro, até hoje desconfio que fosse um aviso do poder.

Viajo no tempo e chego ao mundo atual. Impressiona-me as altíssimas quantias nas contratações, vendas e salários do futebol brasileiro. Os melhores jogadores de outros países sul-americanos que não estão na Europa atuam no Brasil. As equipes são seleções do continente. A língua é o portunhol, acompanhada pelo português de Portugal, devido à presença de tantos treinadores portugueses. 

De onde vem tanto dinheiro? São várias as fontes, especialmente das casas de apostas, que invadiram o futebol brasileiro. Craques, ex-craques e até jornalistas se tornaram garotos propagandas das casas de apostas. Só falta o presidente da CBF gravar um comercial.

Basta um clique no celular para fazer apostas. Por causa da ilusão de que vai lucrar, o apostador gasta o dinheiro que seria essencial para pagar as contas e viver. Mais grave ainda é o aumento dos viciados no jogo, influenciados pela propaganda, que pode ter graves consequências.

Alguns clubes brasileiros passaram a contratar até jogadores que estão na Europa. O Palmeiras, que arrecadou uma fortuna com a venda de vários jovens para a Europa, pagou quase R$ 200 milhões para trazer o centro avante Vitor Roque. Ele poderá ser um ótimo reforço, mas não há nenhuma certeza.

Vitor Roque foi mal no Barcelona e no Betis, da Espanha. Diferentemente de Endrick, que está na reserva do Real Madrid, mas que Ancelotti aposta que se tornará um craque, o Barcelona não teve essa esperança com Vitor Roque e preferiu negociá-lo com o Palmeiras.

Endrick e Vitor Roque são artilheiros. Ainda não são craques. É preciso separar os artilheiros dos craques artilheiros. O que encanta não é só o número de gols.

Leia também: Quando os veteranos perdem a ambição https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/futebol-gloria-passageira.html

Minha opinião

Nem tudo depende do presidente 
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65  

Lula é uma espécie de alvo universal e permanente por parte da ampla, diversificada e agressiva oposição e também, ainda que de modo discreto, pelos partidos que com ele governam. 

Tudo bem. A crítica é ingrediente cotidiano da convivência democrática. 

Mas é preciso identificar não apenas em possíveis ou reais equívocos do presidente da República as dificuldades atuais do governo. Tampouco em ministros e ocupantes de outras funções estratégicas. 

Cabe um olhar ao espelho da parte dos partidos políticos e de segmentos organizados da luta social. Nesse terreno há como que uma espécie de dissimulação das próprias deficiências, expressão rasteira de fuga da realidade concreta.

A luta política envolve o governo e todos os demais segmentos instituídos da sociedade — em ambos os campos, o oposicionista e o que apoia o presidente. 

O fato dramático é que a situação política evolui convivendo com uma ausência extremamente danosa: no campo democrático e popular, há como que uma semiparalisia associada a um distanciamento das massas do povo.

Sim, o governo precisa melhorar em muitos aspectos. 

Mas a parte organizada de sua base social e política tem que fazer a função que lhe cabe: esclarecer e mobilizar o povo — uma empreitada que não se resolve apenas pela comunicação digital, exige envolvimento direto no cotidiano da maioria, olhos nos olhos. Presencialmente, como se diz.

Leia: O principal problema do governo é político, mas será superado”, diz líder do PCdoB https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/palavra-de-renildo.html

Revolução Pernambucana de 1817

A Revolução Pernambucana e a tradição de luta do povo brasileiro
A Revolução Pernambucana defendeu a instalação de um governo de tipo republicano, como o que havia se estabelecido nos Estados Unidos
Thiago Modenesi/Vermelho  


Desde o Império nosso país começou a viver um conjunto de sublevações que questionavam as forças dominantes e nuances do poder estabelecido, faz parte da nossa História, os brasileiros são um povo de luta, carregado de indignação e inconformismo, e a Revolução Pernambucana foi um importante marco, já que se tornou a primeira revolta a sair do papel, da fase conspiratória contra o Império, antes da proclamação da nossa independência, diferente da Inconfidência Mineira e da Conjuração Baiana.

Na soma da seca profunda com o aumento de impostos que a coroa portuguesa fazia para custear os luxos da família real, algo que vinha desde sua transferência para as nossas terras em 1808, criou-se a tempestade perfeita para dar materialidade ao já famoso espírito de revolta das elites pernambucanas. Já registravam nas suas lutas a expulsão dos holandeses (1654) e a Guerra dos Mascates (1710), em que se aventou a proclamação da independência da cidade de Olinda.

A revolta separatista acontece em 1817, abarcando Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte, até tenta ganhar o apoio da Bahia, mas o padre emissário enviado nessa missão é fuzilado assim que chega à capital daquela província.

Os revolucionários tomam o poder e o mantém por 75 dias, servindo para ali estabelecer alicerces importantes no questionamento ao governo central e alimentar o processo que levaria a nossa independência mais adiante, bem como para dar alcance as ideias iluministas e liberais que chegavam da Europa. Essas já circulavam por aqui, mas apenas entre maçons e intelectuais, com a revolta de Pernambuco chegam a mais setores da sociedade.

Cabe destaque a tentativa do novo governo em estabelecer uma estrutura democrática, com um colegiado provisório, liberdade de imprensa (algo impensável para a época), convocação de uma assembleia constituinte ainda na segunda metade do primeiro mês a frente do poder, a separação dos três poderes, abolição de impostos sobre o comércio, mas manteve a escravidão.

Apesar de possuir apoio popular, se tratava de uma revolta capitaneada pelas elites, que não vislumbravam que para romper efetivamente com Portugal e proclamar uma República era fundamental abolir a escravatura no Brasil, como a História provou, tal fato virá a ocorrer tardiamente, já que fomos o último país das Américas a fazê-lo.

A Revolução Pernambucana defendeu a instalação de um governo de tipo republicano, como o que havia se estabelecido nos Estados Unidos, e posteriormente acabaria por ocorrer por todo continente.

O novo governo também manteve o catolicismo como religião oficial, visto o amplo apoio que tinha de setores da igreja local, tanto que a Revolução Pernambucana também é conhecida como “Revolta dos Padres”. O Padre Miguelinho, Frei Caneca e o Vigário Tenório foram responsáveis inclusive pelo trabalho administrativo do novo governo.

Além de tudo isso, a Revolução Pernambucana deu aumento ao soldo dos soldados e criou uma nova bandeira, que viria a ser retomada por Pernambuco em 1917 e mantida até hoje, nela se fazem presentes as cores azul, branca, vermelha e amarela, com uma estrela encima e um sol abaixo, esse representa a união dos pernambucanos, já no interior temos a cruz, que simboliza a fé na justiça.

A falta da ampliação do apoio, sem a adesão de mais províncias, a forte reação das tropas portuguesas com um cerco de oito mil homens, o bloqueio do porto do Recife e outras nuances mais, em que a batalha decisiva se deu em Ipojuca, as tropas portuguesas entram em Recife em 19 de maio e o governo provisório se rende no dia seguinte.

A coroa pune duramente os revoltosos, com enforcamento, decepação de cabeças de seus principais líderes, separação das províncias de Alagoas e Pernambuco, valorizando a fidelidade dos proprietários de terra alagoanos a coroa.

Anos mais tarde veríamos a conquista da nossa independência de Portugal, mas não do fim da monarquia, mesmo as ideias liberais e iluministas estando intrinsicamente ligadas à ideia de uma República.

Em 1822 formou-se um governo monárquico, graças aos interesses das elites do período e a tentativa de manter a escravidão (como aqui dissemos) a economia de tipo agrário e o latifúndio. Muita luta pela frente até a construção da República, que só se fará possível com o fim da escravidão e com mais dezenas de revoltas que vão fortalecendo esse ideário e ajudando a construir o Brasil que temos hoje.

[Ilustração: Execução de líderes da Revolução Pernambucana (Tela: Antônio Parreiras)]

Nada é por acaso https://bit.ly/3Ye45TD 

06 março 2025

Crônica de carnaval: Clarice Lispector

Restos de carnaval
Clarice Lispector 

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu c obrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma e spécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça — eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável — e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no fi gurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga — talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja , ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel — resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usa ríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas — à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha — mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge — minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa — mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil — fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fa das que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim signifi cava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

Leia: Carnaval: rebeldia e prazer https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/meu-artigo-para-o-portal-grabois-4.html

Minha opinião

Apelo patético
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65  

Em contraponto à euforia pela conquista do Oscar pelo filme "Ainda estou aqui", que envolveu multidões em pleno carnaval, articulistas da grande mídia dominante (poucos, é verdade) apelam à extrema direita para que também comemore.

Patético!

Como não se trata de ingenuidade, revela-se a um só tempo incômodo pela postura preconceituosa e retrógrada e pura e ridícula desfaçatez.

Pretender que Bolsonaro e gente como Tarcísio de Freitas e Romeu Zema, por exemplo, enalteçam contundente denúncia da ditadura militar ultrapassa os limites da ingenuidade e mergulha em deslavada oportunismo.

Como se a extrema direita tivesse algo a ver com a civilização, quando na verdade se inspira na essência do nazifascismo.

Leia: Um caso entre inúmeros https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/minha-opiniao_28.html

Palavra de poeta: Wisława Szymborska

Feira dos milagres
Wisława Szymborska 

Um milagre comum:
isso de acontecerem muitos milagres comuns.

Um milagre normal:
no silêncio da noite
o latido de cães invisíveis.

Um milagre entre tantos:
uma nuvenzinha etérea e pequena
que consegue ocultar a lua grande e pesada.

Vários milagres em um:
um amieiro refletido na água
estar virado da esquerda para a direita,
crescer ali com a copa para baixo
e não atingir nunca o fundo,
embora a água seja rasa.

Um milagre na ordem do dia:
vento leve a moderado,
tempestuoso nas tormentas.

Um primeiro milagre melhor:
as vacas são vacas.

Um outro não pior:
este e não outro pomar
desta e não outra semente.

Um milagre sem fraque nem cartola:
pombas brancas levantando voo.

Um milagre — pois como chamá-lo:
o sol hoje nasceu às três e catorze
e vai se pôr às vinte mais um minuto.

Um milagre que não causa tanto espanto quanto devia:
há na verdade menos de seis dedos na mão,
porém mais de quatro.

Um milagre, é só olhar em volta:
o mundo onipresente.

Um milagre extra, como extra é tudo:
o inimaginável
é imaginável.

[Ilustração: imagem gerada por IA]

Leia: O Carnaval morreu. Viva a Quaresma! https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/cronica-de-carnaval-machado-de-assis.html 

Trump e o Estado norte-americano

Um Estado sob o controle de Donald Trump
Como garantir que a máquina governamental esteja totalmente alinhada com os projetos presidenciais? Segundo Donald Trump, nomeando aliados para cargos estratégicos, dando um peso significativo à segurança e colocando instituições e círculos de conselheiros mais ou menos informais em concorrência entre si. A abordagem disruptiva e original do ocupante da Casa Branca pode, no entanto, encontrar limites rapidamente
Por Martin Barnay/Le Monde Diplomatique  

 

As declarações de Donald Trump sobre a Groenlândia, o Panamá e o Canadá mais uma vez destacaram sua concepção negocial das alianças, inclusive as transatlânticas. Seu ex-conselheiro de segurança nacional, o general Herbert Raymond McMaster, a resumiu sem rodeios em 8 de janeiro passado, diante do Council on Foreign Relations: Trump considera a União Europeia “acima de tudo como um concorrente econômico”.[1]

O respeito às normas diplomáticas não faz parte da visão trumpista. O estranho passeio do filho do presidente norte-americano, Don Jr., pela Groenlândia – recebido por figurantes usando bonés MAGA (“Make America Great Again”), aparentemente recrutados com a promessa de uma refeição quente – ou ainda o envio a Israel, logo após a posse, de seu velho aliado Steven Witkoff – magnata do setor imobiliário de Nova York sem experiência em assuntos internacionais – para supervisionar o cessar-fogo entre Tel Aviv e o Hamas são exemplos disso.

As primeiras nomeações para seu gabinete parecem obedecer à mesma lógica de ruptura, privilegiando figuras polêmicas e sem experiência governamental, inclusive para a gestão das relações internacionais. Diferentemente do primeiro mandato de Trump, em que algumas de suas escolhas foram rejeitadas pelo Congresso, o processo de confirmação ocorreu desta vez sem dificuldades, com os senadores aprovando quase por unanimidade todos os indicados.

Um detalhe chamou a atenção dos analistas no caso da Groenlândia e do Panamá: o presidente dos Estados Unidos justificou suas ameaças tarifárias em nome da “segurança nacional”. Não é a primeira vez que esse conceito é invocado em um contexto que parece estar mais ligado ao comércio exterior do que à defesa. Já em 2017, Trump, seguido por Joe Biden, utilizou essa justificativa para legitimar o viés protecionista da economia norte-americana, apoiando-se em uma cláusula pouco explorada do antigo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt) – precursor da Organização Mundial do Comércio (OMC) – que autoriza um Estado-membro a adotar “todas as medidas que considerar necessárias para a proteção de seus interesses essenciais de segurança”. Rara continuidade entre as duas administraç&otil de;es, esse desvio dos princípios de livre comércio veio acompanhado do bloqueio do órgão de resolução de disputas da OMC. Desde 2019, Washington impede a nomeação de novos juízes para seu tribunal de apelação.

Pilar do discurso político norte-americano, a expressão “segurança nacional” surgiu no pós-Segunda Guerra Mundial, mas seu uso se consolidou durante a Guerra do Vietnã. Por trás desse conceito, distinto da segurança interna (homeland security), que ele engloba parcialmente, desenha-se a visão expansionista dos Estados Unidos sobre seu papel na ordem mundial. Sob sua égide, organizam-se as principais instâncias de formulação da política externa e de defesa, tendo no centro o Conselho de Segurança Nacional (NSC).

Criado no início da Guerra Fria pelo mesmo ato que instituiu a CIA, o NSC depende diretamente da Casa Branca. Seus contornos jurídicos permanecem imprecisos: trata-se de um conselho ministerial restrito cuja frequência das reuniões varia conforme o período e a administração, reunindo o presidente, o vice-presidente, alguns membros do gabinete (ou seja, do governo), o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e o diretor de inteligência. 

A caixa-preta da política externa

Na prática, o funcionamento do NSC baseia-se em mais de uma centena de colaboradores, divididos em setores geográficos e temáticos, encarregados da coordenação interagências. No comando, o assessor de segurança nacional ocupa um posto estratégico, embora pouco definido, sendo frequentemente visto como um alter ego do presidente para assuntos internacionais – Henry Kissinger sob Richard Nixon, Zbigniew Brzezinski sob Jimmy Carter, Jake Sullivan sob Biden.

A escolha do assessor de segurança nacional indica a orientação de uma administração. A sucessão de titulares no primeiro mandato de Trump – Michael Flynn, H. R. McMaster, John Bolton, Robert O’Brien – refletia certa hesitação entre pragmatismo e intervencionismo assumido, entre um viés pró-Otan e um foco na região do Pacífico. A substituição do diplomata Jake Sullivan pelo indicado de Trump, Michael Waltz, ex-integrante das Forças Especiais, sinaliza um endurecimento da postura, contrastando com os discursos isolacionistas do candidato Trump.

Deputado pela Flórida na Câmara dos Representantes, onde presidiu o grupo de amizade com a Índia, Waltz havia chefiado o setor da África no NSC durante a primeira administração Trump. Desde então, construiu uma reputação de republicano “independente”, diferenciando-se da ala MAGA ao reconhecer a vitória de Biden em 2020 e votar a favor da ajuda militar à Ucrânia – ao contrário do vice-presidente James David Vance e do secretário de Estado, Marco Rubio.

Instituição pouco conhecida, até mesmo nos Estados Unidos, o NSC funciona como uma caixa-preta na formulação da política externa norte-americana. Sua importância variou ao longo do tempo, conforme o perfil dos presidentes e a natureza de sua relação com a administração. Durante a presidência de John Kennedy (1961-1963), permaneceu em segundo plano, pois ele preferia comitês ad hoc liderados por pessoas de confiança. Já sob Richard Nixon (1969-1974), o conselho ganhou papel central com o todo-poderoso Henry Kissinger. Transformando a Casa Branca no epicentro da política externa, Kissinger converteu o NSC em um canal diplomático paralelo, gerenciando os assuntos mais sensíveis – a começar pelas negociações secretas para a reaproximação com a China.

O papel do NSC aumentou consideravelmente após os atentados de 11 de setembro de 2001, tornando-se uma espécie de conselho de guerra permanente. Sua expansão, semelhante às tensões na França entre o gabinete do presidente e o Ministério das Relações Exteriores, gerou controvérsias, especialmente dentro do Departamento de Estado e do Pentágono, cujos dirigentes, sob Barack Obama (2009-2017) em particular, criticavam seu envolvimento excessivo no acompanhamento de operações militares.

O corpo de funcionários do conselho é conhecido por reunir a elite do Capitólio, com membros recrutados entre assessores do Congresso e de grandes agências federais (Departamento de Estado, Pentágono, Tesouro). De menos de cinquenta funcionários sob George H. W. Bush (1989-1993), cresceu para quatrocentos sob Obama e Biden. Símbolo do que alguns chamam de governo permanente ou de “Estado profundo”, suas equipes geralmente são mantidas de um mandato para outro. Com um orçamento modesto – cerca de US$ 15 milhões – em comparação com sua influência, o NSC tornou-se um alvo privilegiado de esforços de lobby, especialmente de delegações estrangeiras, às quais proporciona um acesso muito mais direto aos circuitos de decisão do que as agências federais.

Os presidentes às vezes demonstraram certa desconfiança em relação à instituição, criticando sua falta de compreensão das realidades políticas e seu distanciamento das restrições do poder. Os recorrentes vazamentos de informações também representam um problema: Lyndon Johnson (1963-1969) evitava cuidadosamente as reuniões do NSC, comparando-o a uma “peneira”. Trump foi particularmente afetado por isso: em 2019, dois funcionários do conselho, irmãos gêmeos de origem ucraniana, vazaram para a imprensa o conteúdo de sua conversa telefônica com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, na qual solicitava uma investigação sobre Hunter Biden, filho de seu antecessor. O episódio desencadeou o primeiro processo de impeachment contra Trump, no qual ex-membros do NSC testemunharam contra ele.

Na véspera de sua posse, Waltz anunciou a demissão de todos os funcionários de carreira – mais de 150 pessoas, a maioria destacada de outras agências por um ou dois anos – para garantir a “total lealdade” do NSC à agenda do novo presidente.[2] Os democratas expressaram preocupação de que essa demissão privasse a instituição de parte essencial de sua expertise. De fato, a nova equipe tem um perfil altamente ideológico, dominada por veteranos da primeira administração Trump e assessores vindos das fileiras republicanas no Congresso. Ao contrário dos cargos ministeriais e das nomeações de embaixadores, os chefes de setor não precisam de aprovação parlamentar.

Os dirigentes do NSC, no entanto, terão de lidar com uma equipe de emissários especiais nomeados por Trump que respondem diretamente ao Salão Oval, cada um com recursos próprios e encarregado de defender a linha presidencial em áreas estratégicas. No caso do Oriente Médio, o dispositivo será denso, contando com Steven Witkoff, além de Massad Boulos, sogro de Tiffany Trump – filha do presidente –, nomeado assessor pessoal da presidência para assuntos do Oriente Médio. A esses dois aliados de Trump se soma Mike Huckabee, pastor batista e ex-governador do Arkansas, figura central da direita evangélica e agora embaixador dos Estados Unidos em Israel.

Já os escritórios da Ásia Oriental e de Assuntos Tecnológicos do NSC, confiados respectivamente a Ivan Kanapathy e Dave Feith – dois fervorosos neoconservadores anti-Pequim –, terão de coexistir com o inevitável Elon Musk, codiretor do novo Departamento de Eficiência Governamental (Doge), que mantém laços comerciais importantes com a China.

Trump pretende, assim, duplicar ou até triplicar os cargos responsáveis pela política externa. Dezenas de representantes da presidência foram nomeados para a América Latina, a África, o Reino Unido, a Rússia e a Ucrânia. Esse tipo de nomeação tem a vantagem de não exigir a confirmação do Senado. Algumas designações permanecerão simbólicas – como a dos atores Sylvester Stallone, Jon Voight e Mel Gibson para o cargo de embaixadores em Hollywood –, mas outras podem ocupar o centro das atenções, como a de Jared Kushner, genro do presidente, que durante o primeiro mandato se impôs em vários assuntos importantes – a renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e dos Acordos de Abraão –, para desgosto dos diplomatas de carreira.[3]

Waltz também anunciou que a administração Trump reintroduziria uma ordem executiva de 2020 que facilita a demissão de funcionários federais. Uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos trabalhadores afetados, mas também um sinal para os parceiros internacionais – China, União Europeia, membros da Otan – do esperado alinhamento da máquina estatal norte-americana com a estratégia presidencial.

Essa pressão presidencial demonstra uma Casa Branca determinada a garantir os meios para alcançar suas ambições. Até o momento, ela mal encontrou resistência – e por um motivo claro: o método Trump, testado durante seu primeiro mandato, fortaleceu o domínio econômico e militar dos Estados Unidos sobre o restante do mundo, especialmente sobre os antigos aliados europeus e japoneses.

No entanto, diante dessa composição heterogênea – um gabinete composto de catorze bilionários sem experiência política –, é difícil não se lembrar do precedente Nixon. O modo de exercício do poder do atual presidente remete, de fato, à abordagem heterodoxa de seu antecessor republicano, especialista em golpes ardilosos. Ambos construíram sua presidência em torno de figuras fora do convencional, muitas vezes alheias à esfera política. A nomeação de Elon Musk, grande doador da última campanha de Trump (US$ 288 milhões), como “carrasco da máquina estatal” ilustra isso perfeitamente. Os expurgos conduzidos pelo Doge na função pública federal lembram o início do segundo mandato de Nixon, quando, em 1973, no dia seguinte à sua reeleição, ele exigiu a demissão de cerca de 2 mil altos funcionários. Já fragilizado internamente, seu unilateralismo – deixando de lado o Velho Continente para se concentrar quase exclusivamente em Moscou e Pequim – acabou por isolá-lo no cenário internacional. Paralisado pelos déficits herdados de seus antecessores, sua combatividade política – quase paranoica – o deixou indefeso diante das revelações do Watergate.

Trump não está imune a um destino semelhante ao de Nixon. Os focos de instabilidade, especialmente os geopolíticos, permanecem numerosos: uma possível suspensão das sanções contra a Rússia, ou até mesmo contra o Irã, ou a retomada do consumo na China poderiam reequilibrar os termos de troca em detrimento dos Estados Unidos. Soma-se a isso o risco de um evento imprevisto – uma escalada em Israel ou em Taiwan – que obrigaria Washington a intervir… ou, ao contrário, a se manter à margem. Apesar de sua habilidade em cultivar a ambiguidade e a saturação de anúncios frequentemente contraditórios, Trump não poderá jogar indefinidamente em todos os tabuleiros.

A estabilidade continua sendo o principal desafio da administração. Durante seu primeiro mandato, Trump teve quatro conselheiros de segurança nacional, o mesmo número de chefes do Estado-Maior e cinco diretores de comunicação, e realizou catorze substituições em seu gabinete – uma taxa de renovação sem precedentes entre seus seis antecessores.

[Ilustração: Galvão Bertazzi]

Leia: China + Rússia no contexto global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/china-russia-no-contexto-global.html

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Válida como iniciativa de governo, a reunião com produtores agroindustriais e o setor varejista no intuito de controlar a inflação certamente não dará maiores resultados. O empresariado vive uma fase de extrema ganância muito própria das contradições atuais do capitalismo dominante no mundo em crise. 

Leia: "Ajude um entregador a ter seu 13º salário" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/trabalho-informal.html