31 março 2025

Postei no Threads

Donald Trump antecipou ontem o seu propósito de renovar o atual mandado por mais quatro anos, mesmo tendo que mudar a Constituição dos Estados Unidos para que isso possa acontecer. A extrema direita não tem limites. 

Leia também: Trump tira EUA da OMS e atinge saúde pública mundial https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/trump-contra-oms.html

Uma crônica de Urariano Mota

O partido mandou me chamar
No compasso do frevo e da memória, um escritor cruza o samba com a revolução e encontra no afeto e na história o impulso para entrar no Partido Comunista.
Urariano Mota  

Se a vida pudesse ter a imagem de um ponto da curva, de inflexão num só instante, eu diria que me aconteceu um no sábado de carnaval de 2018.  Estávamos eu e Francêsca no Mercado da Boa Vista, ali por volta de uma da tarde, sentados a uma mesa, quando vi na multidão que ondulava as pessoas de Alanir Cardoso e Nevinha. O quê, eram eles?

A sua visão transmitia um sentido bom que acenava para o melhor da gente na tarde: casal de militantes comunistas, cabelos brancos, provados e sobreviventes da ditadura. Então nós os convidamos para que dividissem um pequeno espaço da mesa onde estávamos, espremidos na multidão que sorria e gritava e bebia.

“Me segura senão eu caio”, entre muitos frevos estrondava, e bêbados, ou quase bêbados, mulheres e homens davam impulsos brincalhões na mesa como se estivessem a cair. Ali não era nem seria ambiente de se discutir política, revolução, história, onde já se viu? O barulho e a ocasião impediam. Mas como se pode pedir a um escritor e a um presidente do PCdoB em Pernambuco, que não falem sobre a ponte de um militante que partira ainda outro dia? Então me veio à conversa como um raio do qual não se escapa: ali, naquele mesmo espaço eu estivera com Marco Albertim a rir e sorrir para a diversidade humana no Mercado da Boa Vista, em alguns sábados.  Nós não precisávamos mais, no mercado, pedir lata de sardinha com cachaça, enquanto o dono do boteco me torturava com a música de Waldick Soriano, eu não sou cachorro n&a tilde;o, como numa noite desesperada. Ali, no mercado, na última vez, Marco Albertim ia até um boxe e de lá voltava com um prato de frios, queijo do reino, salaminho, mais uns queijos finos, e podíamos beber uísque. Que diferença das sardinhas com aguardente à noite sob a ditadura.

Eu lembrava isso e Alanir, com voz muito baixa, abafada pelos clarins da banda que circulava pela multidão, respondia, mas dele só me chegavam palavras isoladas e sua expressão, que, traduzidas por Nevinha e Francêsca se traduziam em síntese neste convite:

– Por que você não entra para o Partido?

No Mercado da Boa Vista, então começaram a cantar o compositor e cronista Antônio Maria:   

“Sou do Recife
Com orgulho e com saudade
Sou do Recife
Com vontade de chorar
E o rio passa
Levando barcaça
Pro alto do mar
E em mim não passa
Essa vontade de voltar
Recife mandou me chamar
Capiba e Zumba
Esta hora onde é que estão?
Inês e Rosa
Em que reinado reinarão?
Ascenso me mande um cartão
Rua antiga da Harmonia
Da Amizade, da Saudade e da União
São lembranças noite e dia
Nelson Ferreira toque aquela introdução”

– Por que você não entra para o Partido?

Respondi ao convite com ressalvas, mas eu já estava alcançado e ferido na sensibilidade. Esses sábados de carnaval, esses frevos, essas memórias do que passamos, esses lugares hoje de felicidade coletiva, como fugir do seu irresistível apelo? Eu olhava de lado, me furtava.  Então expus razões substantivas, pois haveria um programa partidário a seguir, havia conflitos na política prática do partido com governos aliados, que não me deixavam à vontade. Como viver sob a disciplina partidária?   

Eu me lembrava do que Graciliano Ramos falou um dia em 1946, na célula comunista Teodoro Dreiser:

“Não somos, entretanto, contrários ao desempenho de quaisquer tarefas intelectuais, e, muito menos, ao de tarefas práticas. Gostaríamos, apenas, de que a execução destas e daquelas nos deixassem margem para a confecção de nossos contos e romances… Apenas desejamos resguardar um pouco nossas horas e de nossa solidão para gastá-lo em nossa literatura, em nossa incoercível necessidade de criar nossos personagens e nossa histórias – coisa que muitos de nós nunca mais conseguiram, desde que se filiaram ao Partido. O horário de trabalho dos demais militantes, operários, camponeses, funcionários públicos…é estritamente respeitado pelo Partido. Gostaríamos, nós também, de dispor de alguns momentos para nossa literatura. Mesmo as ‘duas horas pela manhã’ que um companheiro dirigente ofereceu a Jorge Am ado seriam bem recebidas por alguns de nós, que têm a sua espera, na gaveta, um romance de que só falta alinhavar o último capítulo…”

É claro que cito Graciliano Ramos assim enquanto escrevo, mas na hora eu estava com o sentimento do que li, sabia dos conflitos que houve entre um mestre da literatura brasileira e a direção partidária. Então Alanir, como se fosse uma lembrança da fala de Graciliano Ramos, falou a mim, em tudo tão diferente do clássico, eu que sou menor e menor. Então ele falou a este escritor medíocre:

– Você terá respeitada sua liberdade de pensamento e opinião.

Isso eu ouvi. Já antes desse sábado de carnaval, lembro que os camaradas me haviam feito uma recepção calorosa em São Paulo, na Fundação Maurício Grabois, quando fui lançar o romance “A mais longa duração da juventude”. Depois, no Recife, a UJS Pernambuco ocupou a livraria no lançamento do romance. Foi comovente saber que a linda bebê do presidente da UJS e companheira se chama Helenira. Depois, a brava juventude ergueu o braço e gritou que era herdeira do Araguaia. Não sei mais o que falar sobre tão humanas recepções. 

Mas sei que a frase “você terá respeitada sua liberdade de pensamento e opinião” foi decisiva. E se assim era, pensei, por que não ia me integrar às filas, às fileiras de companheiros vivos e falecidos? Cada vez mais, tenho a compreensão de que sou memória. E quero estar com os companheiros que vi e vejo, estou com eles, porque assim manda o coração. E respondi que sim, que iria à sede do partido assinar minha ficha. Ao falar dessa maneira, eu pensava que iria preencher e assinar um cartãozinho, feito cartão de autógrafos de abertura de firma em cartório. E teria que reconhecer meu garrancho depois. Mas o partido está informatizado, sem fichários de lata cheios de cartõezinhos como antes. O certo é que respondi “vou lá assinar”. 

Mais adiante, no outro dia, refleti: na atual conjuntura reacionária, como o chamado mundo literário irá reagir a um escritor que se filia ao Partido Comunista do Brasil?  No mínimo, de um ponto de vista de prêmios, isso não é exatamente uma recomendação literária. O julgamento de estetas e cultores da pura estética não premia filiação ao partido comunista. Não bastasse o que escreve, ainda entrou no partido! Mas acreditem, amigos, poucas vezes me senti tão feliz com a perda de prêmios que um dia talvez quem sabe eu viesse por hipótese remotíssima ganhar. O prêmio que importa é este: socialistas e camaradas, estamos juntos. Na felicidade e na tristeza. Na saúde e na doença.  

Eu, que tanto penso em literatura, nos romances, no mundo da cultura, nos amigos e nas mulheres heroicas da luta socialista, fui me encontrar com um comunista que só pensa na revolução. É no que dá um encontro de sábado de carnaval. Entrei no Partido na sexta-feira 16 de fevereiro deste 2018. Entrei atrasado, porque deveria ter entrado bem antes, mas há muito eu já estava em pensamento com os bravos e fundamentais companheiros de geração.

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Leia também: Os muitos reencontros no Encontro do PCdoB https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/minha-opiniao_23.html 

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Cortes do governo Trump na ciência atingem inclusive pesquisadores brasileiros que trabalham nos Estados Unidos. Estragos do negacionismo não conhecem limites. 

Leia: Para onde vai a guerra na Ucrânia? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/ucrania-e-agora.html 

Por que o PCdoB é indispensável?

PCdoB aos 103 anos: partido indispensável à luta por um Brasil soberano e justo
Debate no Entrelinhas Vermelhas reúne dirigentes do PCdoB para discutir desafios, perspectivas e a relevância do partido em meio à crise política e social. Particparam Leila Márcia, Luciano Siqueira, Renê Vicente e Walkiria Nictheroy
Cezar Xavier/Vermelho
 

Na edição desta quinta-feira (27) do programa Entrelinhas Vermelhas, a editora Guiomar Prates mediou um debate com importantes figuras do Partido Comunista do Brasil (PCdoB): Luciano Siqueira, ex-deputado estadual e ex-vice-prefeito do Recife; Leila Márcia Santos, presidenta do PCdoB em Ananindeua (PA); Renê Vicente, presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) em São Paulo; e Walquíria Nictheroy, subsecretária de governo de Niterói (RJ). O encontro abordou a necessidade do PCdoB na atualidade, seus desafios e perspectivas para o futuro.

“O PCdoB ainda é indispensável após 103 anos?” A pergunta que guiou o debate foi respondida com unidade pelos entrevistados ao defender a relevância do partido. Luciano afirmou que o PCdoB continua indispensável por se orientar pelo marxismo-leninismo, sendo uma força política histórica guiada pela consciência socialista. Leila destacou que nenhuma outra organização no Brasil acumulou tanta experiência em lutas sociais e possui uma visão estratégica de longo prazo. Já Renê ressaltou que o PCdoB é fundamental para a luta pela emancipação humana e a construção de uma sociedade justa. Walquíria reforçou que, diante da crise global, o partido é necessário como contraponto ao capitalismo e como ferramenta de organização para a juventude. 

A discussão avançou para os desafios enfrentados pelo PCdoB no momento atual. Leila Márcia Santos destacou a necessidade de o partido se aproximar mais do povo, especialmente nas periferias, criando campanhas próprias para ampliar sua visibilidade.

Para Renê Vicente, o maior desafio é derrotar a extrema-direita e o fascismo, dialogando com a classe trabalhadora para expor os limites do capitalismo. Walquíria Nictheroy enfatizou a importância de oferecer serviços e acolhimento à população, criando laços de confiança que fortaleçam a consciência política. Já Luciano Siqueira apontou a necessidade de atualizar o pensamento programático do partido, especialmente no que diz respeito a reformas estruturais.

Futuro do Brasil: soberania, igualdade e internacionalismo

Quando questionados sobre a visão do partido para o futuro do Brasil, os debatedores expressaram esperanças e desafios.

A visão do PCdoB para o país foi traçada com otimismo crítico. Renê Vicente projetou um país soberano, com valorização do trabalho e redução da desigualdade, com o PCdoB liderando a retomada do desenvolvimento nacional. Walquíria Nictheroy defendeu que o partido deve resistir e se consolidar como alternativa às forças conservadoras, enquanto Leila vinculou o projeto partidário à integração com movimentos progressistas globais, como o BRICS. Luciano destacou a importância de células ativas nos bairros e escolas para “influenciar a grande política a partir da base”.

Os debatedores compartilharam suas experiências pessoais ao ingressar no partido. Compartilharam motivações distintas, mas convergentes. Walquíria destacou a clareza teórica do PCdoB e sua capacidade de reinvenção, especialmente na luta antirracista. Renê Vicente mencionou a influência de militantes históricos do partido. Leila ressaltou a busca por justiça social e a sensação de pertencimento a uma organização que luta por uma sociedade igualitária. Luciano Siqueira apontou a trajetória de resistência do partido durante a ditadura e sua capacidade de unir teoria e prática política.

Como atrair novos militantes?

Por fim, a editora Guiomar Prates perguntou como cada um convida pessoas a se filiarem ao partido. A estratégia de filiação foi tema de consenso. Luciano defendeu o diálogo baseado em “pertencimento e solidariedade”, enquanto Walquíria usou sua trajetória para mostrar que “o PCdoB permite enxergar a realidade criticamente”. Leila enfatizou a unidade entre campo e cidade na luta contra desigualdades, e Renê apontou os deputados do partido como exemplo de defesa dos trabalhadores.

Guiomar encerrou o debate destacando a urgência de “materializar a esperança” em um país marcado por crises. Os entrevistados concordaram que, apesar dos obstáculos, o PCdoB mantém sua relevância ao combinar resistência histórica com projetos transformadores. Como afirmou Rene Vicente, em tempos de guerra cultural, é preciso demonstrar que o verdadeiro partido que é antissistema é o PCdoB. “Porque esse sistema é um sistema capitalista, que oprime, que explora, que esmaga o trabalhador a trabalhadora. E o verdadeiro partido que se coloca contra esse sistema é o Partido Comunista do Brasil”.

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Leia: Os muitos reencontros no Encontro do PCdoB https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/minha-opiniao_23.html

30 março 2025

Palavra de poeta

CANÇÃO DO OUTONO
Paul Verlaine*  

Os longos sons
dos violões,
pelo outono,
me enchem de dor
e de um langor
de abandono.

E choro, quando
ouço, ofegando,
bater a hora,
lembrando os dias,
e as alegrias
e ais de outrora.

E vou-me ao vento
que, num tormento,
me transporta
de cá pra lá,
como faz à
folha morta.

*Tradução de Onestaldo de Pennafort

[Ilustração: Richard Diebenkorn]

Leia também: 'A menina', poema de Cida Pedrosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/palavra-de-poeta-cida-pedrosa_24.html 

Juridicamente encurralado

Teses frustradas de um réu
Como o STF rebateu as contestações de Bolsonaro e fez dele o primeiro ex-presidente a responder por crimes contra a democracia
Rafael Mafei/Piauí 

Dois anos atrás, Donald Trump se tornou o primeiro ex-presidente americano a ser indiciado criminalmente. No Brasil, não se trata de um acontecimento tão raro: de Sarney a Lula, assistimos a indiciamentos, denúncias, condenações e até prisões de ex-presidentes. Nenhum deles, contudo, foi a julgamento por um crime tão grave quanto tentativa de golpe de Estado. Só por esse motivo, o processo que o Supremo Tribunal Federal iniciou nessa quarta-feira (26) contra Jair Bolsonaro já pode ser considerado histórico. Um marco civilizacional em um país que não costuma julgar crimes contra sua democracia.

Houve poucas surpresas na sessão de julgamento, iniciada na terça-feira (25). A Primeira Turma do STF – formada por Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flavio Dino e Luiz Fux – aceitou a denúncia contra Bolsonaro e outros sete acusados que, segundo a Procuradoria-Geral da República, formavam o núcleo central da trama golpista. Inesperada mesmo, só a presença de Bolsonaro na primeira fileira do plenário, em um tribunal que ele sempre atacou e que seus seguidores vandalizaram no 8 de janeiro. Do lado de dentro, o ex-presidente se portou exemplarmente. Não perturbou os trabalhos e recusou até um copo d’água. Do lado de fora, já como réu, repisou numa coletiva de imprensa os seus bordões e voltou a colocar em dúvida, sem provas, o sistema eleitoral.

O recebimento dessa primeira denúncia é uma luz no fim do túnel para um tribunal que há tempos anda tumultuado com investigações complexas. Inquéritos, mesmo os mais complicados, devem caminhar para uma conclusão, como frisou recentemente o ministro Luís Roberto Barroso ao tratar da investigação sobre a disseminação de fake news, aberta pelo Supremo em 2019 e ainda não concluída. O recebimento das denúncias contra os núcleos golpistas pode ser o pontapé inicial nesse sentido.  

As questões jurídicas que se discutem em sessões desse tipo costumam ser diferentes daquelas que virão à tona durante o julgamento. Tratam de assuntos preliminares ao processo, e não de provas, culpados e inocentes. Os embates a que assistimos esta semana, no entanto, esclareceram pontos importantes e tiraram do caminho reclamações frequentemente ouvidas contra o Supremo. Cabe analisá-los com atenção. 

Nesse primeiro momento, o que interessava aos acusados eram as questões de natureza processual. Em primeiro lugar, discutiu-se a adequação formal da denúncia – isto é, se ela apresentava fatos e crimes bem delineados, assim como seus respectivos responsáveis e provas. Não havia dúvidas de que a peça apresentada pelo procurador-geral Paulo Gonet passaria por esse crivo. O segundo ponto dizia respeito àquilo que, no jargão do direito, se chama “juiz natural”. Toda ação penal deve ser julgada no foro adequado, por um juiz (ou mais de um, como é o caso) que tenha independência e imparcialidade.

Esse segundo ponto foi o mais debatido, por conta do foro por prerrogativa de função, mais conhecido como foro privilegiado, uma eterna bola dividida na Justiça. A discussão principal era se o Supremo poderia julgar pessoas que, por lei, não mais dispõem do foro, mas que dispunham dele quando praticaram os crimes dos quais agora são acusadas. É o caso de Bolsonaro, que era presidente da República e usou seus poderes para praticar os atos caracterizados na denúncia como crimes, mas deixou o cargo há dois anos.

Trata-se de um daqueles imbróglios jurídicos para o qual uma aparente solução sempre acarreta um novo problema, e assim por diante. Os problemas com a prerrogativa de foro, de tão antigos, renderam o primeiro embate entre a ditadura militar e o Supremo. O golpe contra João Goulart foi desencadeado no dia 31 de março, uma terça-feira; na sexta-feira da mesma semana, o STF aprovou uma súmula aparentemente banal, estabelecendo a tese de que a prerrogativa de foro se prolongava além do tempo de exercício da função pública. Ou seja, pessoas que um dia foram autoridades e tiveram direito ao foro continuariam a tê-lo. O tribunal se preparava para o que vinha pela frente, pois ninguém duvidava, desde a primeira semana, que o novo governo cassaria opositores e tentaria julgá-los nas auditorias militares. 

O Supremo, apesar do embate, manteve essa interpretação da lei durante a ditadura. Ela mais tarde foi consolidada na Constituição de 1988, que trouxe, porém, uma inovação: deputados e senadores, que antes não tinham foro no STF, passaram a tê-lo. Com um Ministério Público fortalecido pela Constituinte e dotado de liberdade e orçamento para investigar, o número de casos que chegavam ao tribunal disparou. Por isso, a partir de 1999, o Supremo começou a adotar uma nova interpretação da lei. Os ministros concluíram que, terminado o exercício do cargo público, o político não teria mais direito ao foro por prerrogativa de função.

Nada resolvido, porque surgiram então novos desafios: parlamentares passaram a renunciar aos seus mandatos às vésperas dos julgamentos, deslocando o processo abruptamente para a primeira instância para forçar atrasos e, com alguma sorte, a prescrição. Pintaram também novas dúvidas: se a autoridade mudasse de cargo e, com isso, de foro (digamos, passando um tribunal estadual para o STF), o que deveria acontecer com seus processos? Cairiam para a primeira instância ou, pelo contrário, subiriam para a instância superior? Profissionais do direito deram a essa barafunda o apelido de “elevador processual”. 

Esse era o primeiro ponto a ser esclarecido no que dizia respeito a Bolsonaro e outros acusados. A resposta do Supremo, fixada em outros julgamentos recentes, foi categórica: o foro privilegiado se estende a ex-autoridades, com a condição de que o crime julgado tenha sido praticado no exercício do cargo e seja relacionado a ele.  

A essa discussão, somou-se outra: por que a ação deveria transcorrer na Primeira Turma do Supremo, e não no plenário, onde todos os onze ministros podem se manifestar? Como a Constituição não impõe quórum qualificado para o julgamento de ações penais, o regimento do tribunal permite que se opte por uma opção ou pela outra. Quanto se trata de presidentes e outras poucas autoridades no exercício do cargo, o regimento exige análise do plenário. Sobre ex-autoridades, ele nada diz. 

A praxe de julgar toda e qualquer ação penal no plenário se mostrou disfuncional no caso do mensalão. Na época, o mais importante órgão do Supremo ficou mais de seis meses praticamente paralisado por um único processo. Distribuir as ações entre as turmas, solução adotada logo em seguida, resolveu o problema, mas criou outro: como os ministros-relatores dispõem de um poder quase imperial de remeter casos da turma ao plenário, justificando-se com um genérico “relevância jurídica do caso”, o destino de muitas questões penais passou a ser definido por conveniência ou estratégia dos relatores. Estabeleceu-se um sistema imprevisível, abrindo margem a incertezas que as regras de competência processual deveriam evitar. Talvez por isso os integrantes da Primeira Turma, com exceção de Fux, tenham optado pela interpre tação de que ao plenário cabem estritamente as ações penais previstas de forma taxativa no regimento do STF. Nada de ex-autoridades no plenário, portanto.

O terceiro ponto discutido foi a alegada suspeição de Alexandre de Moraes, invocada à exaustão por Bolsonaro e já rechaçada, também à exaustão, pelo Supremo. Para a melhor compreensão desse ponto, convém destrinchar o bordão segundo o qual Moraes “é vítima, investigador e juiz ao mesmo tempo”. Não é bem assim.

O ponto mais fraco dessa tese está na classificação de Moraes como vítima, porque juridicamente ele não o é. Em graus diferentes, todos os ministros do STF foram, individualmente, atingidos pela violência bolsonarista. Barroso e Edson Fachin foram verbalmente atacados por Bolsonaro diversas vezes enquanto presidiam o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O relatório da Polícia Federal que embasou a denúncia mostra que, além de Barroso, Fux também foi alvo do chamado gabinete do ódio. Conteúdos mentirosos o associavam a um banco que tem participação acionária em uma empresa que fabrica urnas eletrônicas. O objetivo era insinuar que Fux tinha interesse financeiro na preservação das urnas. O mesmo Fux, na sessão de quinta-feira (26), relembrou que sua mesa e seus documentos foram incendiados no 8 de janeiro. Até mesmo Andr&eacu te; Mendonça e Kássio Nunes, indicados pelo agora réu Bolsonaro, tiveram seus locais de trabalho invadidos e destruídos pela turba – afinal, foram vandalizadas as salas de julgamento, os corredores e os salões que ambos frequentam cotidianamente. Se considerarmos que os ataques ao Supremo se estendem a seus integrantes, sobrará algum ministro apto a julgar os golpistas?

É verdade que Moraes concentrou mais ataques que os colegas, constando até mesmo entre os alvos que seriam assassinados no plano Punhal Verde e Amarelo. Quando isso ocorreu, no entanto, sua relatoria nessa matéria já estava estabelecida havia muito tempo, após debates e decisões no tribunal. Não convém que um investigado possa, por ato exclusivo seu, ensejar a suspeição de um juiz que ele decidiu atacar. Isso o permitiria manipular a escolha do magistrado. O Código de Processo Penal diz que o juiz não deve julgar a causa de quem seja seu “inimigo capital”. Não fala em adversário, desafeto, nem de mero inimigo. O adjetivo “capital” serve justamente para restringir o alcance da suspeição. Ao menos essa interpretação tem permanecido estável na jurisprudência do Supremo: até 2018, segundo uma pesquisa da FGV Direito SP, nunca houve situação em que o tribunal tivesse reconhecido a suspeição de um ministro contra a vontade dele próprio.

Por último, a reclamação de que Moraes atua como “investigador e juiz ao mesmo tempo” tem alguma pertinência. A regra, no sistema processual penal brasileiro, é que o juiz que julga não tenha sido o mesmo que supervisionou o inquérito. Essa importante garantia, que ajuda a preservar a imparcialidade dos magistrados, não é oferecida a quem responde a uma ação diretamente no STF. Esse, aliás, não é o único direito mitigado para os réus do tribunal: ao contrário dos acusados em outras instâncias, eles não dispõem de um órgão recursal ao qual possam apelar.

Mas esse problema, que é real e deveria ser resolvido por uma reforma legal e regimental, está longe de ser uma novidade. O mesmo acontece em todos os julgamentos do Supremo – treze anos atrás, ouvimos reclamações sobre a suposta parcialidade de Joaquim Barbosa e a impossibilidade de recorrer das decisões do julgamento do mensalão. Quem pede estabilidade e previsibilidade, que até há pouco faltavam nas decisões sobre competência e prerrogativa de foro, pode ao menos ter como consolo o fato de que, nesse ponto, tudo continuará como sempre foi. 

O desenrolar do processo contra Bolsonaro e seus aliados é difícil de prever, mas o encerramento da sessão de quarta-feira (26) sugeriu que o tribunal pode encampar uma discussão mais aprofundada sobre a dosimetria das penas pelo 8 de janeiro. Fux, embora tenha aceito integralmente a denúncia apresentada pela PGR, comentou que a pena imposta à cabeleireira Débora Santos (que pichou a estátua da Justiça em frente ao tribunal) lhe causou “sensação de injustiça” e que, por isso, abrirá divergência nesse quesito. O incômodo não é só dele. É mesmo questionável, juridicamente, que a cumulação dos crimes de tentativa de abolição do estado democrático de direito e de golpe de Estado seja aplicável a todos os invasores.

Mas vale notar que, nesse ponto específico, a situação de Bolsonaro e dos outros sete réus julgados com ele não é a mesma da turba do 8 de janeiro. Ao contrário de Débora, por exemplo, o ex-presidente e seus aliados atuaram continuamente, ao longo de meses, contra a Justiça Eleitoral, contra as eleições democráticas e contra o governo Lula já eleito, com plena consciência do que faziam. Ao estimularem e viabilizarem a invasão, inclusive garantindo a omissão das forças de segurança que facilitou o ataque à Praça dos Três Poderes, eles buscavam criar condições para a deposição do governo já empossado. Daí porque uma eventual reconsideração das penas em favor de um ou outro acusado do 8 de janeiro não significa que o mesmo será feito com os principais réus da trama golpista, caso sejam condenados.

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Leia: Apenas pirotecnia https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/minha-opiniao_28.html

Arte é vida

Luciano Pinheiro

George Câmara opina

As cidades, a infraestrutura urbana e as chuvas
“Com a chegada das chuvas, a água empoçada e os alagamentos trazem doenças e outras mazelas para as pessoas e para o meio ambiente”
George Câmara/Vermelho  

As políticas públicas no contexto das cidades, também chamadas de políticas públicas do urbano ou políticas públicas urbanas, compreendem um conjunto articulado de ações no território das cidades, algumas das quais com repercussão em âmbito metropolitano.

Estão aí incluídas as políticas de produção direta do espaço construído – transportes, saneamento, habitação – mas também a regulação estatal sobre ações privadas, como o licenciamento de empreendimentos. Comportam também ações do Estado que influenciam a sociabilidade urbana, embora sem produzir diretamente o ambiente construído.

O Professor Eduardo Cesar Leão Marques* (2017) define a política do urbano como:

“As ações, as negociações, as alianças e os conflitos acerca das políticas públicas urbanas e do poder das (e nas) instituições políticas da cidade, assim como as próprias instituições. (…) Políticas públicas urbanas incluem as ações do poder público que incidem sobre o tecido urbano, seus territórios e a vida urbana” (MARQUES, 2017, p. 2). 

Para atender ao interesse público e em observância ao princípio da função social da cidade e da propriedade urbana, conforme previsão constitucional, cabe ao poder público, no âmbito do município, definir sua política de ordenamento urbano, o uso e ocupação do solo e a preservação do meio ambiente, para assegurar às pessoas o DIREITO À CIDADE.

Tratando da Política Urbana, o artigo 182 da Constituição Federal define que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

A Lei 10.257, de 10/07/2001 – Estatuto da Cidade – que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal (Política Urbana), em seu artigo 1º, parágrafo único, “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.

As políticas públicas que compõem a estrutura do Ministério das Cidades, como a habitação, o saneamento básico, o transporte e mobilidade urbana, entre outras, são de responsabilidade da gestão municipal. No saneamento, quatro políticas setoriais se destacam: abastecimento de água, esgotamento sanitário, resíduos sólidos e drenagem urbana.

Em geral, os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário (coleta e tratamento) são executados pela companhia estadual de águas e esgotos, mediante contrato de concessão assinado entre esta e cada município, para a operação dos respectivos sistemas: de água e de esgoto.

Nos resíduos sólidos, a prestação dos serviços de coleta, transporte, tratamento e disposição final do lixo gerado é de responsabilidade direta do próprio município, que opera os serviços (no todo ou em parte) por meio de uma empresa municipal, ou por consórcio, ou ainda de forma terceirizada, por contrato com empresa (s) privada (s), mediante remuneração das atividades.

Quanto à drenagem urbana e manejo de águas pluviais, o serviço é de inteira responsabilidade da gestão municipal, que geralmente o executa por meio de uma secretaria municipal, na estrutura da administração direta: a secretaria de obras ou similar. Esta, ao pavimentar uma rua, está obrigada a cuidar do manejo das águas e do seu adequado escoamento.

Se nas demais políticas setoriais do saneamento a responsabilidade da gestão municipal é compartilhada com o prestador do serviço, no caso da drenagem urbana é exclusiva do município.

Cabe, portanto, um alerta: com a chegada das chuvas, a água empoçada e os alagamentos trazem doenças e outras mazelas para as pessoas e para o meio ambiente. Por essa razão, é necessário perguntar para o prefeito ou a prefeita de sua cidade: vossa excelência está cuidando das pessoas e da cidade para evitar o pior?

*MARQUES, Eduardo Cesar Leão. Em busca de um objeto esquecido: a política e as políticas do urbano no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais. 2017. Vol. 32, Nº 95.

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Leia: Quem defende o quê? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/minha-opiniao_27.html

Seleção brasileira: furos

A experiência é relativa
Como disse Pedro Nava, a experiência é um farol de automóvel virado para trás; à frente continua escuro
Tostão/Folha de S. Paulo 

Enfim, até os ufanistas e os que adoram escalar muitos atacantes descobriram o óbvio: que não dá para enfrentar fortes seleções, como a da Argentina, com apenas dois jogadores no meio-campo, isolados, desconectados do ataque e da defesa. Essa formação costuma funcionar contra adversários bastante inferiores e que só vão se defender para tentar contra-atacar.

As partidas contra a Colômbia e a Argentina mostraram mais uma vez algumas deficiências individuais da seleção; nas laterais, no meio-campo e na posição de centroavante. O consolo é que todas as outras grandes seleções possuem problemas.

A história se repete. O 4x1 é parecido com o 7x1 contra a Alemanha. O Brasil tinha também muitos atacantes e apenas dois no meio-campo, perdidos, sem marcar e sem construir. Se a Argentina tivesse Messi e não ligasse para o olé da torcida, poderia ter feito mais três gols. Alemanha e Argentina, com muitos meio-campistas, passearam em campo. As duas seleções trocavam passes, ficavam com a bola e avançavam em bloco.

A história se repete. O Brasil foi eliminado da Copa do Mundo de 2022 pela Croácia porque teve um apagão no final do jogo, falhou na cobrança de pênaltis e porque, durante a partida, assistiu à Croácia trocar passes com seus brilhantes meio-campistas contra apenas dois jogadores do Brasil no meio-campo. Além disso, Paquetá ia para o ataque e deixava Casemiro sozinho.

Naquela Copa, ao eliminar a Croácia, a Argentina usou a mesma formação que teve contra o Brasil na terça-feira passada (25), com um volante centralizado e uma linha de três meio-campistas à frente do volante, além de Messi entre os quatro e o centroavante. Contra o Brasil, Almada substituiu Messi.

Aliás, uma das qualidades da Argentina é variar o desenho tático desde o primeiro jogo da Copa de 2022, de acordo com o momento e o adversário. Já a seleção do Brasil, assim como a maioria dos times brasileiros, joga quase sempre no mesmo esquema, com dois volantes, um meia ofensivo centralizado, dois pontas e um centroavante.

Os treinadores brasileiros, desde as categorias de base, procuram pelos meias de ligação (camisa 10) e pelos pontas rápidos e dribladores e esquecem de formar os meio-campistas que atuam de uma intermediaria à outra, que marcam, constroem e atacam. Confundem os meio-campistas com os meias ofensivos. Como os grandes times europeus são compactos, não há necessidade de ter o meia de ligação apenas para criar jogadas. Os meio-campistas marcam como volantes e avançam como meias.

A seleção e os times brasileiros ainda não conseguem fazer de rotina, durante toda a partida, a pressão em todo o campo sobre quem está com a bola e sobre quem vai recebê-la. A seleção não jogou e deixou a Argentina jogar.

Está na hora de a seleção mudar. É preciso reinventar novos caminhos. A experiência é relativa. Repetir durante anos os mesmos conceitos e condutas é um vazio, um atraso.

Parafraseando o escritor Pedro Nava, a experiência é como um farol de um automóvel voltado para trás. À frente continua tudo escuro.

Há muitas boas opções para comandar a seleção brasileira. Prefiro o conhecimento técnico e o inconformismo do jovem Filipe Luís.

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Arte é vida: desenho de Alice https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/arte-e-vida-desenho-de-alice_28.html 

29 março 2025

Palavra de poeta

SONETO
Carlos Pena Filho  

Por seres bela e azul é que te oferto
a serena lembrança desta tarde:
tudo em torno de mim vestiu um ar de
quem não te tem mas te deseja perto.


O verão que fugiu para o deserto
onde, indolente e sem motivos, arde
deixou-nos este leve e vago e incerto
silêncio que se espalha pela tarde.


Por seres bela e azul e improcedente
é que sabes que a flor, o céu e os dias
são estados de espírito somente,


como o leste e o oeste, o norte, e o sul.
Como a razão por que não renuncias
ao privilégio de ser bela e azul.

[Ilustração: Alexa Meade]

Leia também um poema de Mario Benedetti https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/palavra-de-poeta-mario-benedetti.html

Editorial do 'Vermelho'

Organização criminosa liderada por Bolsonaro no banco dos réus
O núcleo central da organização criminosa, com Bolsonaro à cabeça, vai a julgamento no STF. Que a punição seja exemplar.
Editorial do Vermelho

 

A decisão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, de tornar réu o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete pessoas por envolvimento na trama golpista denunciada pela Procuradoria Geral da República (PGR) representa a aplicação das normas do Estado Democrático de Direito. Participaram da decisão, além do ministro Alexandre de Moraes – o relator do caso –, Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e o presidente do colegiado, Cristiano Zanin.

Responderão criminalmente também o ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) Alexandre Ramagem, o almirante e ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, o general da reserva e ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional Augusto Heleno, o tenente-coronel e o ex-ajudante de ordens da Presidência da República Mauro Cid, o general e ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira e o general da reserva e ex-ministro da Casa Civil Walter Braga Netto. De um total de quatro, esse é o núcleo central, o grupo que comandava a trama golpista.

Duas questões principais marcaram as sessões da 1ª Turma do STF. A primeira foi o cumprimento rigoroso dos ritos do devido processo legal, com destaque para o exercício do amplo direito de defesa. O primeiro dia foi dedicado a ouvir os advogados de defesa, cujos questionamentos foram, à luz da legislação brasileira, metodicamente demonstrados improcedentes. Apenas um questionamento não foi deliberado por unanimidade: o ministro Luiz Fux recorreu a detalhes do regimento da corte para defender a premissa de que a denúncia deveria ser analisada pelo plenário e não por uma das turmas.

A segunda foi o conjunto de provas. Conforme explicou Alexandre de Moraes, Bolsonaro é o líder de uma organização criminosa, de acordo com “os elementos de provas colhidos na investigação da Polícia Federal”. O elenco comprobatório abarca cópias de documentos, entre eles, a “minuta do golpe” e “o punhal verde e amarelo” que contêm o plano de sequestro e assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes. Somam-se áudios, mensagens de texto, grupos de aplicativos, agendas oficiais, depoimentos, entre outros.

O ex-presidente e seus cúmplices são acusados pela PGR de formar organização criminosa armada, de golpe de Estado, de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, de dano qualificado pela violência, de grave ameaça contra patrimônio da União e de deterioração de patrimônio tombado.

Com o recebimento da denúncia, inicia-se a fase de instrução processual, a coleta de provas e depoimentos pelo STF para a análise do mérito do processo. Diante de mais esse passo da Justiça, a extrema-direita vai intensificar seus ataques às instituições, sobretudo aos ministros do STF, com a tradicional ocupação das redes sociais pelas milícias digitais e mais mobilizações de rua. Bolsonaro logo depois da decisão do STF fez longo pronunciamento que soou à bases da extrema-direita como um grito de guerra.

O objetivo é fazer guerra psicológica, produzir discursos falaciosos e disseminar informações falsas – as chamadas fake news –, um movimento calculado para pressionar a corte. Em outra frente, a extrema-direita se movimenta para intensificar a obstrução aos trabalhos da Câmara dos Deputados, mais um ato de pressão para impor a tramitação do projeto da anistia aos golpistas.

Os bolsonaristas buscam também apoios nos Estados Unidos. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do ex-presidente, foi bater na porta do trumpismo, na busca de apoio do poder do presidente estadunidense Donald Trump para, segundo ele mesmo, impor “sanções aos violadores de direitos humanos” no Brasil. Na prática, o deputado adota atitude de traição nacional. Ele pleiteia um conjunto de medidas para punir Alexandre de Moraes, num processo no Departamento de Justiça sobre medidas do ministro como sanções a empresas de redes sociais, entrega de informações de usuários e suspensão de contas.

É um ato de covardia, uma fuga da realidade brasileira às voltas com suas instituições se defendendo das práticas e dos planos golpistas, tão bem demonstrados e detalhados na consistente peça de acusação do procurador-geral da República, Paulo Gonet. No curso dos debates de 25 e 26 de março, quando a 1ª Turma do STF analisou as denúncias para tornar réu o primeiro escalão do bando criminoso que tentou ceifar a democracia, esses fatos foram expostos de maneira didática, sem deixar margem para dúvidas sobre as reais intenções bárbaras das hordas bolsonaristas.

A constatação inevitável é de que esse novo cenário exige das forças democráticas e populares mais mobilização e combatividade. A defesa da democracia e da punição aos golpistas com o rigor dos fundamentos do Estado Democrático de Direito reveste-se de importância especial nesse momento.

É um julgamento histórico de grande relevância à causa democrática. A punição exemplar, garantido o amplo direito de defesa, ao golpismo de Bolsonaro será antídoto contra novas investidas visando por abaixo o regime democrático. No contexto do crescimento da extrema-direita no mundo, esse julgamento tem uma importância internacional. As forças democráticas de dezenas de países estarão de olho nele.

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Leia também: Os muitos reencontros no Encontro do PCdoB https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/minha-opiniao_23.html 

Você leu?

Dois textos interessantes acerca da guerra Rússia x Ucrânia: um artigo de José Luís Fiori https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/ucrania-na-encruzilhada.html e outro de Luís Antônio Paulino https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/ucrania-e-agora.html Considerações de natureza geopolítica válidas para a compreensão do cenário geopolítico mundial.

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Leia também: China, desenvolvimento em favor de globalização mutuamente vantajosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/china-paz-e-progresso.html

Chico Buarque: João e Maria

Minha opinião

Esperneando como pode 
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65  


Quando presidente da República, Jair Bolsonaro nunca se inibiu de atentar contra as instituições e difundir que poderia não acatar decisões do STF e que algo poderia acontecer de extraordinário. "— Com o apoio do meu Exército", dizia.

Agora, na incômoda e desgastante situação de réu perante o mesmo STF que sempre atacou, o ex-presidente ensaia campanha pública cujo cerne parece ser a auto-vitimização e a defesa prévia (!?) de uma anistia.

Parece disposto a percorrer o país para mobilizar seus apoiadores e fazer repercutir cada gesto e cada palavra através das redes sociais, estas como sempre difusoras de uma realidade paralela destinada a enganar incautos. 

Para Bolsonaro e seu grupo, significa mobilizar seu próprio capital político, que imagina ainda existir, desembocando no próximo episódio eleitoral. 

Entre a fantasia e a realidade, veremos o que vai predominar.

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Leia: Quem defende o quê? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/minha-opiniao_27.html

Humor de resistência

 

Quinho

Leia: IA, nem inteligente, nem artificial https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/ia-o-que-e.html 

Sylvio: novo tempo

Depois do período de trevas e vergonha vivido no governo anterior, é gratificante ver o Brasil de volta ao protagonismo mundial e a figura do grande estadista Lula ser exaltada pela imprensa internacional.

Sylvio Belém 

Postei no X

É a própria agência de avaliação de riscos norte-americana Moody's que adverte sobre o risco de deterioração fiscal nos Estados Unidos em razão da expansão da dívida pública na esteira das medidas adotadas por Trump. Em casa de ferreiro, espeto de pau... 

Leia: Trump e a “destruição inovadora” https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/eua-em-curva-decadente.html

Palavra de poeta

Cântaro
Cida Pedrosa 

a primeira vez que vi o amor
ele veio manso e me pegou desprevenida.
então, passei a colher da mata
o sumo das alvoradas.

a segunda vez que vi o amor
ele veio aceso e me pegou desprevenida
então passei a cavalgar o sonho
e achar doces as invernadas.

hoje, não estou bem certa
mas o amor é como um cântaro
a verter a sede dos desesperados.

[Ilustração: Moisés Kisling]

Leia também um poema de Mário Quintana https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/palavra-de-poeta-mario-quintana.html

28 março 2025

Minha opinião

Apenas pirotecnia 
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65 

Politicamente acuado e na iminência de uma pesada condenação pelo Superior Tribunal Federal, o ex-presidente Jair Bolsonaro ocupa parte do seu tempo praticando mera pirotecnia como que para disfarçar a angústia de réu envolvido até o pescoço. 

Dentre várias afirmações desconexas, diz que gostaria de ter um debate frente a frente com o ministro Alexandre de Moraes a propósito das acusações que pesam contra ele. 

Obviamente, algo impensável. 

Afinal, não se trata de arenga entre torcidas de futebol. Trata-se da provável punição de um ex-presidente da República por haver ostensivamente atacado as instituições e liderar atabalhoada trama golpista. 

Agora, cabe ao réu defender-se judicialmente e não alimentar a ridícula pretensão de reeditar o "cercadinho", de onde dizia diatribes quando presidente.

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Leia: Parece cena de ópera bufa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/minha-opiniao_25.html

EUA em curva decadente

Reagan, Trump e a “destruição inovadora”
A década de 70 do século passado, os EUA sofreram uma série de reveses militares, econômicos e geopolíticos: foram derrotados na Guerra do Vietnã; surpreendidos pela Guerra do Yom Kippur e pela criação da OPEP e a subida dos preços internacionais do petróleo; e foram surpreendidos uma vez mais pela Revolução do Aiatolá Khomeini, no Irã, em 1979; seguida pela “crise dos reféns” americanos que foram mantidos presos durante 444 dias na embaixada dos EUA em Teerã, culminando com a invasão soviética do Afeganistão, em dezembro de 1979.
José Luís Fiori/Observatório Internacional do Século XXI 

Muitos analistas falaram naquele momento de uma “crise final da hegemonía americana”. Frente a essa situação de declínio relativo de poder, entretanto, os EUA destruíram a ordem mundial que haviam criado depois da Segunda Guerra Mundial e adotaram uma nova estratégia internacional, com o objetivo de manter sua primazia mundial.

Primeiro, aceitaram a derrota, renderam-se e assinaram um acordo de paz com o Vietnã; ao mesmo tempo, abandonaram o padrão-dólar que haviam imposto ao mndo em Bretton Woods, em 1944; em seguida, pacificaram e reataram relações com a China; e enterraram definitivamente seu projeto econômico desenvolvimentista, impondo uma abertura e desregulação financeira da economia internacional, enquanto iniciavam uma nova corrida armamentista, conhecida como a 2ª. Guerra Fria, que culminou com a derrocada da União Soviética.

Um verdadeiro tufão conservador e neoliberal, que começou no governo de Richard Nixon e alcançou sua plenitude durante o governo de Ronald Reagan, mudando radicalmente o mapa geopolítico do mundo e transformando de forma irreversível a face do capitalismo mundial.

Agora de novo, na segunda e terceira décadas do século XXI, os EUA vêm sofrendo novos e sucessivos reveses militares, econômicos e geopolíticos. Foram derrotados no Afeganistão e obrigados a uma retirada humilhante da cidade de Cabul, em agosto de 2021; estão sendo derrotados de forma inapelável na Ucrânia; sofreram uma perda significativa de credibilidade moral em todo mundo, depois do seu apoio ao massacre israelense dos palestinos da Faixa de Gaza; vêm sofrendo um processo acentuado de desindustrialização e sua moeda, o dólar vem sendo questionado por seu uso como arma de guerra contra países concorrentes ou considerados inimigos dos seus interesses; e por fim, os EUA têm perdido posições importantes na sua competição tecnológico-industrial e espacial com a China, e na sua disputa tecnológico-militar com a Rússia.

Neste momento, uma vez mais, o governo norte-americano de Donald Trump está se propondo refazer sua primazia através de uma nova mudança radical de sua estratégica internacional, combinando doses altíssimas de destruição, com algunas propostas disruptivas e inovadoras no campo geopolítico e econômico, partindo de uma posição de força e sem pretensões éticas ou missionárias, e orientando-se apenas pela bússola dos seus interesses nacionais.

A principal consigna de campanha de Donald Trump -“fazer a América grande de novo”- já é por si mesma, um reconhecimento tácito de que os EUA estão enfrentando uma situação de crise ou declínio que precisa ser revertida. E suas primeiras medidas são todas de natureza defensiva: seja no caso da sua política econômica mercantilista, seja no caso da “barreira balística” que ele está se propondo construir em torno do território americano. E o mesmo se pode dizer de suas agressões e ameaças verbais, que tem sido dirigidas contra seus vizinhos, aliados e vassalos mais próximos e incondicionais.

De qualquer maneira, o mais importante tem sido o ataque avassalador e destrutivo de Donald Trump e seus auxiliares mais próximos, contra as regras e instituições próprias da orden internacional constru ída pelos EUA, como resposta à sua crise dos anos 70 do século passado. E contra os últimos vestígios da orden mundial do pós-Segunda Guerra, como no caso das Nações Unidas e do seu Conselho de Segurança.

Com ênfase particular no ataque e destruição americana do multilateralismo e do globalismo econômico que se transformaram na principal bandeira americana do pós-Guerra Fria. Neste capítulo das “destruições”, deve-se sublinhar também o ataque seletivo e estratégico do governo Trump contra todas as peças de sustentação interna -dentro do próprio governo americano- do que eles chamam de deep state, a verdadeira base de sustentação e locus de planejamento das guerras norte-americanas.

No plano internacional, entretanto, a grande revolução -se prosperar- será efetivamente a mudança da relação entre os EUA e a Rússia, que vem sendo proposta pelo governo de Donald Trump.

Uma inflexão muito profunda e radical, muito mais do que foi a reaproximação entre os EUA e a China, na primeira metade dos anos 70. Porque, de fato, no século XX, os EUA herdaram uma inimizade, competição e polarização geopolítica construída pela Grã Bretanha contra a Rússia, desde o momento em que se consagrou a vitória dos russos e dos ingleses contra a França de Napoleão Bonaparte, no Congresso de Viena, de 1815.

Desde então, os russos foram transformados pelos ingleses em seus “inimigos necessários”, e serviram como princípio organizador da estratégia imperial inglesa. Uma realidade histórica que foi depois consagrada pela teoria geopolítica do geógrafo inglês Halford Mackinder, segundo a qual o país que controlasse o coração da Eurásia, situado entre Moscou e Berlim, controlaria o poder mundial.

Por isso, os ingleses lideraram a Guerra da Criméia, entre 1853 e 1856, contra os russos; e de novo lideraram a invasão da Rússia depois do fim da Primeira Guerra Mundial; e cogitaram fazer o mesmo logo depois da Segunda Guerra. Uma obsessão de Winston Churchill que acabou cedendo lugar ao projeto de construção da “cortina de ferro” e da OTAN.

Essa obsessão inglesa foi repassada aos norte-americanos depois da Segunda Guerra Mundial e esteve na origem da Guerra Fria. A partir de então, os EUA e a GB (junto com seus aliados da OTAN), construíram uma gigantesca infraestrutura militar -material e humana- destinada a “conter os russos” e, se possível, derrotá-los estrategicamente. A última tentativa foi feita agora na Guerra da Ucrâniae fracassou uma vez mais.

E se o projeto atual de Donald Trump de aproximação da Rússia prosperar, ele estará sucateando toda essa infraestrutura junto com todas as demais alianças americanas construídas a partir de 1947, com vistas à esta “guerra final” contra os russos.

Nao e pouca coisa muito pelo contrário, e muitos líderes euro-atlânticos que tentaram romper essa barreira ficaram pelo caminho. Podendo-se prever, inclusive, a possibilidade de algum tipo de atentado ou auto-atentado, a partir do próprio mundo anglo-saxão, com o objetivo de barrar esta mudança de rumo norte-americana.

Sim, porque está sendo rompida e enterrada a aliança estratégica anglo-saxônica, que foi fundamental para a dominação ocidental do mundo, desde a Segunda Guerra Mundial, desmontando-se ao mesmo tempo, como um castelo de cartas, o projeto da OTAN, o G7, e talvez a própria União Europeia.

Mas nada disto encerra a competição interestatal pelo poder global. O projeto de Trump diminui a importância da Europa e diminui a importancia da fronteira europeia da Rússia, deslocando as linhas de fratura da geopolítica mundial para o Ártico e para o Sul do Pacífico. Mas a própria cobiça de Trump com relação ao Canadá e à Groenlândia explicita seu projeto de construção de uma grande massa territorial equivalente à russa, justo em frente à fronteira norte e ártica da própria Rússia.

E ao mesmo tempo, o projeto de negócios conjuntos entre russos e norte-americanos, que vem sendo insistentemente anunciado, sobretudo na região do Polo Norte, aponta para um possível distanciamento futuro e “pelo mercado” da Rússia com relação à China, para não permitir que se consolide uma aliança estratégica inquebrantável entre Rússia e China, ou mesmo entre Rússia e Alemanha. Porque a China seguirá sendo no Século XXI, o principal competidor e adversário dos EUA, neste planeta e no espaço sideral.

A estratégia americana de “destruição inovadora” terá -desta vez- o mesmo sucesso que teve no século passado, com Richard Nixon e Ronald Reagan?

É difícil de saber, porque não se sabe quanto tempo durará o projeto de poder de Donald Trump e seus seguidores. E em segundo lugar não se conhece o impacto mundial de uma política econômica mercantilista e defensiva, praticada pela maior economia do mundo. O nacionalismo econômico foi sempre uma arma dos países que se propõem “subir” na hierarquia internacional, e não de um país que não quer “descer”.

De qualquer  maneira, do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China, como também pode estar apontando para o nascimento de uma nova ordem multipolar que lembra, de certa forma, a história europeia do século XVIII.

Com a grande diferença que agora o “equilíbrio de forças” do sistema envolvería uma competição entre potências atômicas de grande dimensão, quase impérios, como é o caso dos EUA, da China, da Rússia, da Índia, e da própria Uniao Europeia , caso ela consiga se reorganizar e rearmar sob a liderança da Inglaterra ou da Alemanha. E, em menor escala, da Turquia, do Brasil, da Indonésia, do Irã, da Arábia Saudita e da África do Sul.

Um mundo difícil de ser administrado, e um futuro impossível de ser previsto.

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Leia: As tarifas aduaneiras de Trump salvarão os EUA? https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/trump-e-guerra-tarifaria.html