02 novembro 2025

Minha opinião

Bonequinha de louça
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65  

Estatura mediana, esguia, diria até muito magra, de alvura quase leitosa, olhos azuis, batom vermelho vivo igual ao matiz das unhas. Olhar vago, mirando a janela da aeronave como quem enxerga o nada. Mesmo quando percebeu que eu a observava e fazia comentários com meu companheiro de viagem, Tadeu, sequer um sorriso discreto, algum gesto o mais tímido que fosse.

Para completar a imagem insossa, uma boina presa com grampos aos cabelos impecavelmente grudados em gel. Uma bonequinha de louça.

Sim, tudo na aeromoça da Trip lembrava as bonecas de minha irmã, que na infância eu contemplava com certa admiração, atento ao movimento dos olhos e dos cílios e ao som que emitiam quando submetidas a distintas posições. Não sei a razão, todas as que conheci tinham olhos azuis ou esverdeados, a tez alva, lábios e unhas avermelhadas – igual àquela jovem quase robótica que tinha à minha frente.

Ao anúncio de que o serviço de bordo começaria, me animei: a bonequinha vai se mexer, talvez fale.

Falou, porém um lacônico “Senhor, aceita?” e nada mais que isso. Pior: a voz parecia gravada, que nem a que a gente ouvia do peito das bonecas da minha irmã. Um som sem vida, mecânico, falto de emoção.

Pensei: quando ela vier recolher o copo plástico, embalagens da horrível comida de bordo (lixo, sob todos os títulos), talvez eu peça água, ou um cafezinho, sei lá, algo que lhe provoque dizer mais uma frase – mesmo insípida, burocrática, contanto que me tirasse aquela má impressão. Mas quando ela veio, sacola de plástico à mão, balbuciou um mínimo “Posso?” e nem percebeu que eu a olhava nos olhos e lhe oferecia o meu sorriso cúmplice.

No desembarque, a mesma coisa. Sorri, agradeci a atenção e ela nada, o olhar vazio, a face passiva. Em silêncio.

Confesso que não me senti mal tratado. E ela me despertou um irrecusável sentimento de solidariedade – que alimento à distância, em pura abstração, pois sequer o nome da bonequinha de louça em retive. Por que aquele ar sem vida – frustração profissional? Amor fulminado pelo veneno mortal da indiferença?

Já encontrei gente de companhia aérea hospedada no mesmo hotel que o meu e pude observar a alegria no hall, a quase algazarra quando à mesa do restaurante – sinais de alguma felicidade, suponho. Fosse eu um desocupado, bem que procuraria o hotel que o pessoal da Trip frequenta no Recife e iria ao café da manhã tantas vezes quanto necessárias até encontrar, entre seus colegas, a bonequinha de louça. Juro que estaria torcendo para vê-la alegre, conversadeira, sorridente. Assim apagaria a imagem que agora me incomoda toda vez que penso em pessoas infelizes.

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Leia também: “Crise de quê?” https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/minha-opiniao_28.html

ChatGPT: manipulação da privacidade

Snowden denuncia a arapuca do ChatGPT
Opiniões políticas. Projetos criativos. Condições médicas. Segredos íntimos. Tudo o que se informa ao robô é lido, analisado e pode ser empregado ou vendido pela OpenAI – cuja parceria com a Casa Branca, a NSA e a CIA é cada vez mais notória
Jeff Xiong | Tradução: Sérgio Amadeu/Outras Palavras  

Em 13 de maio de 2025, um tribunal federal dos EUA emitiu uma ordem chocante. Exigiu que a OpenAI “preservasse e segregasse todos os registros de atividades dos usuários”, mesmo que estas pessoas ou empresas desejassem excluí-los. Esta ordem significa que, a partir daquele dia, as mais de 1 bilhão de conversas com o ChatGPT enviadas diariamente por mais de 300 milhões de usuários em todo o mundo estão sendo preservadas indefinidamente—mesmo quando os usuários clicam em “excluir”.1 

A ordem decorre de um processo envolvendo direitos autorais, movido pelo New York Times contra a OpenAI. Mas o fundamento do tribunal é perturbador: “usuários que excluem seus dados são provavelmente infratores de direitos autorais tentando apagar seus rastros.” Em outras palavras, exercer o direito de excluir—uma proteção fundamental de privacidade—está sendo tratado pelo tribunal como evidência de suspeita criminal.

O executivo-chefe da OpenAI, Sam Altman, alertou nas redes sociais que esta decisão “compromete a privacidade do usuário” e “estabelece um mau precedente”. Mas a pergunta mais perturbadora é: o que contêm essas conversas preservadas à força? Sintomas médicos que os usuários confidenciaram ao ChatGPT, dificuldades financeiras, planos de carreira, segredos pessoais—tudo isso “pode ser vendido ou doado, violado por hackers, divulgado para as forças da lei”.2

Não se trata de uma ameaça hipotética. Em 2023, funcionários da Samsung vazaram código-fonte confidencial da empresa através do ChatGPT. Os advogados da empresa coreana alertaram que esses dados são “impossíveis de recuperar, porque agora estão armazenados em servidores pertencentes à OpenAI”. Apple, Amazon, JPMorgan Chase, Goldman Sachs, Deutsche Bank… da tecnologia às finanças, da saúde ao direito, uma longa relação revela: as maiores e mais bem equipadas empresas do mundo estão restringindo o uso do ChatGPT por seus funcionários. Pesquisas mostram que quase 70% das empresas bloqueiam esta ferramenta para proteger informações confidenciais.3

Se mesmo essas corporações multinacionais com as equipes de cibersegurança mais avançadas não podem usar o ChatGPT com segurança, como poderão fazê-lo os governos e empresas do Sul Global?

A vigilância corporativa é apenas a ponta do iceberg. Quando Edward Snowden—o denunciante que expôs o programa de vigilância em massa dos EUA, o PRISM—emite um alerta, devemos perceber que o problema é muito mais sério do que vazamentos de dados empresariais.

Do PRISM ao ChatGPT: uma escalada da vigilância

Em junho de 2024, a OpenAI nomeou o general Paul Nakasone, ex-diretor da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA), para seu conselho de administração. Edward Snowden emitiu nas redes sociais um de seus alertas mais severos desde que foi obrigado ao exílio: “Eles tiraram totalmente a máscara: Nunca confiem na OpenAI ou em seus produtos. Esta é uma traição consciente e calculada dos direitos de cada pessoa no planeta. Vocês foram avisados.”4 

Snowden não fala em vão. Em 2013, com grande risco à sua própria liberdade, ele expôs o programa PRISM da NSA—um plano para coletar dados diretamente de gigantes da tecnologia como Google, Facebook e Apple, realizando vigilância em massa sem mandados judiciais. O escândalo do PRISM causou ondas de choque globais, levando muitos países a fortalecerem as leis de proteção à privacidade e a UE a introduzir o Regulamento Geral sobre a Proteção dos Dados (GDPR, em inglês).

Snowden agora alerta que o ChatGPT é uma ferramenta de vigilância mais poderosa que o PRISM. Por que? O PRISM coletava passivamente dados de comunicação; o ChatGPT faz com que os usuários forneçam ativamente seus pensamentos mais privados. O PRISM coletava principalmente metadados (quem contacta quem); o ChatGPT coleta conteúdo completo—pensamentos, planos, preocupações, segredos das pessoas. O PRISM envolvia alguns milhões de usuários; o ChatGPT tem mais de 300 milhões de usuários, com mais de 1 bilhão de mensagens diárias. Mais criticalmente, a exposição do PRISM desencadeou resistência e reformas legais; o comportamento de vigilância do ChatGPT foi divulgado publicamente, mas continua a ser amplamente aceito e usado.

Alguns comentaristas chegaram a chamar o ChatGPT de “o maior banco de dados de vigilância de todos os tempos—o banco de dados com o qual a NSA só sonhava”.

A OpenAI confessa que vigia os usuários

O alerta de Snowden não é baseado em especulação, mas em seu profundo entendimento sobre como a máquina de vigilância opera. Ainda mais perturbador é que nem precisamos de um denunciante para provar que a OpenAI monitora os usuários. Os próprios relatórios da OpenAI já admitiram isso.

Em outubro de 2025, a empresa divulgou um relatório intitulado “Bloqueando usos maliciosos da IA” [“Disrupting malicious uses of AI”. O documento anunciou com orgulho que, desde fevereiro de 2024, “bloqueou e reportou” mais de 40 redes que violavam suas políticas de uso. O relatório divulgou em detalhes que contas relacionadas ao governo chinês usariam o ChatGPT para redigir propostas de sistemas de monitoramento de mídia social em larga escala. Organizações russas tentariam, sempre segundo o texto, refinar vírus invasores para acesso remoto a sistemas e roubo de credenciais de usuários com poderes especiais. Hackers norte-coreanos teriam criaram conteúdo invasor visando atacar a Coreia do Sul.5

A OpenAI enquadra essas divulgações como conquistas no combate ao “uso malicioso”. Mas o relatório revela inadvertidamente uma verdade mais profunda: para identificar esses casos específicos de “uso malicioso”, a OpenAI deve possuir e usar sua capacidade de monitorar rotineiramente todas as conversas dos usuários.

Pense na lógica técnica: para descobrir um usuário chinês que supostamente esteja desenvolvendo um sistema de vigilância de uigures, a OpenAI precisa acessar e analisar todo o conteúdo da conversa desse usuário; implantar sistemas de monitoramento em tempo real ou quase real; ser capaz de analisar conteúdo e reconhecer padrões; conseguir associar usuários a países ou organizações específicas e, então, escolher proativamente quais casos divulgar.

A questão mais crítica é: a OpenAI só divulga casos do que considera serem “nações adversárias” (China, Rússia, Irã, Coreia do Norte). E sobre os países ocidentais? E sobre os aliados dos EUA? O relatório permanece em silêncio. Esta divulgação seletiva prova precisamente que a OpenAI pode monitorar todos os países, mas escolhe divulgar apenas as partes que se alinham com os interesses geopolíticos dos EUA. Se eles podem monitorar a China e a Rússia, podem monitorar o Brasil, a Índia, a África do Sul — e todos os países do Sul Global.

Em agosto de 2025, a OpenAI admitiu abertamente em uma postagem oficial de blog que a empresa está escaneando as conversas dos usuários no ChatGPT e reportando conteúdo à polícia. O mecanismo específico: conversas de usuários “planejando causar danos a outros” são direcionadas para canais de revisão especializados, para exame por revisores humanos treinados. Se os revisores determinarem que um caso envolve “uma ameaça iminente de dano físico grave a outros”, ele é encaminhado às forças da lei.6

Mas onde estão os padrões? O que significa “causar danos a outros”? Quem define isso? Esses padrões mudarão com o ambiente político? Hoje são “ameaças violentas iminentes”. Amanhã abrangerão a dissidência política, consultas sobre aborto, discussões sobre orientação sexual?

assombroso abismo entre as palavras e a prática

A “Política oficial de solicitação de dados de dsuários para aplicação da lei” da OpenAI afirma explicitamente: o conteúdo da conversa do usuário só será divulgado mediante o recebimento de um mandado de busca legal.7 Mas qual é a realidade? A OpenAI monitora proativamente todas as conversas dos usuários (o que foi comprovado pelos relatórios citados acima); faz seus próprios julgamentos sobre o que constitui “uso malicioso”, reporta proativamente às autoridades para a aplicação da lei (em vez de apenas responder a solicitações) e publica relatórios de inteligência de ameaças divulgando publicamente o comportamento do usuário — tudo sem qualquer processo legal. 

As autoridades regulatórias europeias perceberam isso. Em dezembro de 2024, a autoridade de proteção de dados da Itália multou a OpenAI em 15 milhões de euros por motivos que incluíam “processar informações pessoais dos usuários sem base legal adequada” e “violar o princípio da transparência”.8 O pesquisador de privacidade Łukasz Olejnik foi mais direto em uma reclamação de 17 páginas à autoridade de proteção de dados da Polônia: “A OpenAI parece aceitar que a forma como os modelos de ferramenta do ChatGPT são desenvolvidos é fundamentalmente incompatível com os requisitos do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia”.9

Não se trata um descuido da OpenAI, mas de um problema fundamental com seu modelo de negócios. A resposta da OpenAI à multa italiana expôs sua lógica: a multa é “quase 20 vezes a receita”— significando que a empresa ganha pouco dinheiro no país, mas o valor da coleta de dados é enorme. A multa é meramente o “custo” de coletar dados.

Fusão Estratégica com o governo dos EUA

O relacionamento da OpenAI com o governo dos EUA vai muito além de uma cooperação comercial comum. Da perspectiva de pessoal, o membro do conselho da OpenAI Paul Nakasone é o ex-diretor da NSA, responsável pelas operações de inteligência e guerra cibernética dos EUA. Outro membro do conselho, Will Hurd, atuou como oficial da CIA e integra o conselho da In-Q-Tel (o principal braço de investimentos da CIA).

Da perspectiva de cooperação comercial, a OpenAI lançou o ChatGPT Gov, um serviço projetado especificamente para agências do governo dos EUA. Os detalhes chocantes incluem um acordo com a Administração de Serviços Gerais dos EUA. Ele fornece o ChatGPT Enterprise para estas agências por apenas US$ 1 por agência, por ano. É essencialmente uma doação.10

Do ponto de vista da integração técnica, o ChatGPT Gov permite que agências do Estado norte-americano insiram “dados sensíveis e não públicos” nos modelos da OpenAI, realizando o processamento de dados ultrassecretos. O GPT-4o da OpenAI é integrado através do Microsoft Azure na nuvem do governo dos EUA. Significa que agências federais com responsabilidades de trabalho secretas, incluindo o Departamento de Defesa, podem usar o GPT-4o para missões não reveladas ao público.

Um duplo padrão revelador: a OpenAI sustenta que não usará os dados inseridos por funcionários federais norte-americanos para treinar seus modelos, o que fornece um “firewall de dados” para o governo dos EUA. Mas os usuários em outros países não têm tal proteção.

O preço anual de US$ 1 não é uma transação comercial, mas uma cooperação estratégica. Que conteúdo está nas 18 milhões de mensagens enviadas pelos 90 mil usuários do governo? Como essas mensagens estão sendo usadas? Enquanto isso, a CIA também está desenvolvendo sua própria versão do ChatGPT, chamada Osiris, para uso de milhares de analistas das 18 agências de vigilância dos Estados Unidos.11 A fronteira entre os grandes modelos de linguagem (LLMs) e os de espionagem está desaparecendo.

De “Vigilância em Massa” para “Espionagem em Massa”

O especialista em segurança Bruce Schneier adverte que a IA permite uma mudança qualitativa na vigilância—de “vigilância em massa” para “espionagem em massa”.12 A diferença: vigilância é coleta e armazenamento; espionagem é compreensão e exploração. A vigilância tradicional só pode realizar buscas por palavras-chave; a IA pode “entender” contexto e significados implícitos, analisando simultaneamente bilhões de conversas e identificando padrões complexos. A União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) observa que os grandes modelos de linguagem permitem “um aumento enorme no número de comunicações que são monitoradas de forma relevante”.13

Uma ameaça mais insidiosa é a contaminação dos dados de treinamento. Funcionários da Amazon contam ter visto o ChatGPT “imitando” dados internos da empresa, embora não os reproduzisse totalmente – mas de forma “convincente o suficiente”.13 Significa: mesmo que você não insira informações diretamente, o ChatGPT pode reconstruir informações sensíveis agregando as entradas de outros. Nos países do Sul Global, mesmo que os funcionários sejam proibidos de usar o sistema da OpenAI, o ChatGPT pode “aprender” seus segredos nacionais, desde que terceiros (agências de inteligência estrangeiras, corporações multinacionais) o empreguem.

A Crise de Soberania Digital do Sul Global

A China baniu completamente o ChatGPT. Em 29 de janeiro de 2025, o ministério das Finanças da Índia emitiu um comunicado restringindo o uso de ferramentas de IA como ChatGPT e DeepSeek no trabalho oficial por funcionários do governo, argumentando que essas ferramentas dependem de servidores no exterior para armazenar e processar dados, tornando o governo incapaz de controlar o uso de informações sensíveis.14 Pesquisadores brasileiros apresentaram uma petição à autoridade de proteção de dados para investigar as violações da LGPD pelo ChatGPT, apontando que a OpenAI chega a fornecer números de CPF de figuras públicas brasileiras.15

Mas a vigilância não equivale à capacidade de resposta. A Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) observa que os países do Sul Global enfrentam “um novo ciclo de colonialismo digital”. Um triplo dilema: perda de soberania de dados, dependência tecnológica (chips, modelos, serviços de nuvem controlados por algumas empresas) e valores impostos (valores do Vale do Silício incorporados globalmente através da IA).16 Construir uma nova IA é extremamente dispendioso, e o acesso a chips é controlado de forma estrita. Mesmo com investimento maciço, “você ainda não pode eliminar a dependência de países estrangeiros”.

Um alerta de Colonialismo

A desigualdade de poder na era da IA recria padrões coloniais históricos: os países do Sul Global fornecem dados (matérias-primas). Estes dados fluem para servidores dos EUA para serem processados e explorados. O Norte controla a capacidade de processamento e depois vende serviços de IA (produtos acabados) para o Sul. Os lucros e o controle permanecem no Norte. Não é uma metáfora, mas a realidade econômica. A pesquisa do autor mostra que o Google, sozinho, acrescentou a seu ativo, em 2024, dados de usuários avaliados em 36 bilhões de dólares. Ainda assim, a discussão internacional sobre contabilização do valor dos dados, determinação de direitos e distribuição de benefícios é quase inexistente.

O colonialismo mais profundo é ideológico. A análise quantitativa mostra que mesmo os grandes modelos domésticos exibem níveis moderados a altos de viés ideológico ocidental—porque os acervos de treinamento dependem fortemente de conteúdo em inglês, com fontes de informação controladas pelo Ocidente recebendo peso excessivamente alto.

Outro Caminho: Cooperação Soberana com a China

A janela histórica para os países do Sul Global construírem independentemente sistemas completos de tecnologias de informação e comunicação por meio da autossuficiência está fechada. A realidade : China e EUA investem em Pesquisa & Desenvolvimento de IA na ordem dos trilhões de dólares, enquanto o projeto IndianAI da Índia é de apenas US$ 1,25 bilhão.17 Mas isso não significa desespero. O Sul Global tem duas escolhas: continuar usando a infraestrutura norte-americana, submetendo-se a extração de dados, doutrinação ideológica e ameaças à segurança; ou estabelecer cooperação tecnológica com a China, em condições que mantenham e fortaleçam a soberania digital.

De acordo com as avaliações do Índice de Soberania Digital (DSI), a China é o único país além dos Estados Unidos com soberania digital completa, com uma pontuação DSI de 4,25.18 Caminhos específicos de cooperação incluem: primeiro, co-construir infraestrutura digital através de modelos como BOT; segundo, desenvolvimento cooperativo de elementos de dados, quantificando o valor do ativo de dados e negociando mecanismos mutuamente benéficos; terceiro, aprendizado mútuo de experiências de governança; quarto, cultivo conjunto de talentos, incorporando transferência de tecnologia e capacitação.

Chegou a Hora de Agir

Em maio de 2025, um tribunal dos EUA ordenou que a OpenAI preservasse indefinidamente todas as conversas dos usuários. Poucos dos mais de 300 milhões de usuários em todo o mundo perceberam que suas consultas médicas, planejamentos financeiros, ansiedades de carreira, segredos pessoais agora estão armazenados de modo compulsório nos servidores da OpenAI, possivelmente “para serem vendidos ou doados, violados por hackers ou divulgados para as forças da lei”.

Quando um engenheiro da Samsung abriu o ChatGPT em 2023 buscando ajuda com código, ele pensou estar apenas empregando uma ferramenta conveniente. Não percebeu que os segredos de sua empresa estavam “agora tecnicamente nas mãos da OpenAI” e eram “impossíveis de recuperar”. A Samsung pode banir o ChatGPT, a Apple pode desenvolver suas próprias ferramentas de IA, o banco Goldman Sachs pode bloquear este serviço. Mas e as pequenas empresas do Sul Global? E seus departamentos governamentais? As instituições de pesquisa? Eles têm os recursos da Samsung? As capacidades técnicas da Apple?

Quando Edward Snowden diz que a OpenAI é uma “traição consciente dos direitos de cada pessoa no planeta”, ele não está exagerando. Emite este alerta com base em um profundo entendimento da máquina de vigilância norte-americana. Quando o especialista em segurança Bruce Schneier diz que estamos passando de “vigilância em massa” para “espionagem em massa”, ele revela uma mudança na natureza da vigilância: não apenas coletar dados, mas entender, processar e explorar dados.

Para os países do Sul Global, isso não é apenas uma questão de privacidade, mas de soberania. Os dados são o novo petróleo, a IA é a nova infraestrutura. Entregar o controle de dados e IA para empresas norte-americanas é como historicamente entregar o controle de recursos naturais e infraestrutura a colonizadores.

A janela histórica pode ter fechado, mas a janela de escolha permanece aberta. Os países do Sul Global podem escolher continuar aceitando passivamente o colonialismo digital americano, ou podem escolher cooperar com países como a China para adotar tecnologia avançada, mantendo e fortalecendo sua própria soberania digital. A estrutura do Índice de Soberania Digital (DSI) fornece ferramentas para avaliação e acompanhamento. Quatro recomendações específicas fornecem um caminho para a ação. O que falta não é um plano, mas determinação.

Quando funcionários do governo usam o ChatGPT para redigir documentos oficiais; quando empresas usam o ChatGPT para planejamento de negócios; quando seus pesquisadores o empregam para pesquisa investigativa, é preciso estar ciente: essas conversas podem estar sendo monitoradas, analisadas pela OpenAI e compartilhadas com agências de inteligência dos EUA.

A lição da ordem judicial de maio de 2025 é: mesmo que você clique em “excluir”, os dados ainda podem ser preservados à força. A lição do caso Samsung é: uma vez que carregados, os dados são “impossíveis de recuperar”. A lição para os países do Sul Global deveria ser: uma vez que a soberania digital é perdida, é difícil resgatá-la.

1Malwarebytes, “OpenAI forced to preserve ChatGPT chats”, June 2025, https://www.malwarebytes.com/blog/news/2025/06/openai-forced-to-preserve-chatgpt-chats

2Electronic Frontier Foundation, “Copyright Cases Should Not Threaten Chatbot Users’ Privacy”, June 2025, https://www.eff.org/deeplinks/2025/06/copyright-cases-should-not-threaten-chatbot-users-privacy

3TechCrunch, “Samsung bans use of generative AI tools like ChatGPT after April internal data leak”, May 2, 2023, https://techcrunch.com/2023/05/02/samsung-bans-use-of-generative-ai-tools-like-chatgpt-after-april-internal-data-leak/

4Decrypt, “Calculated Betrayal: Snowden Slams OpenAI NSA Ties”, June 2024, https://decrypt.co/235490/calculated-betrayal-snowden-slams-openai-nsa-ties

5OpenAI, “Disrupting malicious uses of AI”, October 7, 2025, https://openai.com/global-affairs/disrupting-malicious-uses-of-ai-october-2025/

6 Futurism, “OpenAI Scanning ChatGPT Conversations, Reporting to Police”, August 2025, https://futurism.com/openai-scanning-conversations-police

7OpenAI, “Law Enforcement User Data Request Policy”, July 2024 version, https://cdn.openai.com/trust-and-transparency/openai-law-enforcement-policy-v2024.07.pdf

8he Hacker News, “Italy Fines OpenAI €15 Million for GDPR Violations Over ChatGPT Data Handling”, December 2024,

9TechCrunch, “ChatGPT-maker OpenAI accused of string of data protection breaches in GDPR complaint filed by privacy researcher”, August 30, 2023, https://techcrunch.com/2023/08/30/chatgpt-maker-openai-accused-of-string-of-data-protection-breaches-in-gdpr-complaint-filed-by-privacy-researcher/

10OpenAI, “Introducing ChatGPT Gov”, February-August 2025, https://openai.com/global-affairs/introducing-chatgpt-gov/

11Bloomberg, “CIA Builds Its Own Artificial Intelligence Tool in Rivalry With China”, September 26, 2023, https://www.bloomberg.com/news/articles/2023-09-26/cia-builds-its-own-artificial-intelligence-tool-in-rivalry-with-china

12Bruce Schneier, “AI and Mass Spying”, Schneier on Security, December 2023, https://www.schneier.com/blog/archives/2023/12/ai-and-mass-spying.html

13ACLU, “Will ChatGPT Revolutionize Surveillance?”, 2023, https://www.aclu.org/news/privacy-technology/will-chatgpt-revolutionize-surveillance

14Gizmodo, “Amazon Warns Employees to Beware of ChatGPT”, January 26, 2023, https://gizmodo.com/amazon-chatgpt-ai-software-job-coding-1850034383

15Business Today, “Govt employees asked to stop using AI tools like ChatGPT, DeepSeek on official devices”, February 5, 2025, https://www.businesstoday.in/technology/news/story/govt-employees-asked-to-stop-using-ai-tools-like-chatgpt-deepseek-on-official-devices-heres-why-463483-2025-02-05

16MediaNama, “Why ChatGPT does not comply with the Brazilian Data Protection Law”, May 2023, https://www.medianama.com/2023/05/223-chatgpt-brazilian-data-protection-law-ai-regulation/

17Al Jazeera, “Digital colonialism is threatening the Global South”, March 13, 2019, https://www.aljazeera.com/opinions/2019/3/13/digital-colonialism-is-threatening-the-global-south

18Al Jazeera, “Digital colonialism is threatening the Global South”, March 13, 2019, https://www.aljazeera.com/opinions/2019/3/13/digital-colonialism-is-threatening-the-global-south

[Ilustração: Sébastien A. Krier]

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A polarização e a radicalização do debate público é a essência do modelo de negócio das redes sociais https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/o-brasil-e-as-big-techs.html?m=1

Inconsequência

"Antes da partida contra o Racing, já era discutido em alguns programas esportivos se Filipe Luís seria dispensado caso o Flamengo fosse eliminado, o que não fazia nenhum sentido. É a sociedade do espetáculo, lacradora, radical, apressada, inconsequente, que procura heróis e vilões a cada semana."

Tostão, na Folha de S. Paulo 

“Uma ausência que ninguém sente” https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/guerra-cultural.html 

01 novembro 2025

Palavra de poeta

empatia
Cida Pedrosa    

O bem-te-vi que canta na minha janela
sabe do concreto
Muros
Armadilhas e arames
O bem-te-vi que canta na minha janela
tem a absoluta certeza do espaço nada
dessa cidade que me afoga
em margens de incertezas

O bem-te-vi que canta na minúscula janela do banheiro
sabe que eu
sentada neste espaço 1x2 tenho uma ausência de ninho
tão grande quanto a dele

Leia também: "O cheiro da tangerina", Ferreira Gullar https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/palavra-de-poeta_20.html

Boa notícia

Brasil gera 1,7 milhão de empregos com carteira assinada em 2025
Saldo de 9 meses teve acréscimo de 213 mil vagas formais em setembro. Sob o governo Lula, são 4,8 milhões novos postos e patamar recorde de vínculos ativos: 48,9 milhões
Murilo da Silva/Vermelho  

O Brasil continua a avançar na geração de empregos sob o governo Lula. Dados do Novo Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), divulgados na quinta-feira (30), mostram que em setembro o Brasil registrou a criação de 213 mil vagas de trabalho formais, o que totaliza um saldo de 4,8 milhões de vagas criadas desde janeiro de 2023. No acumulado de 2025, 1,7 milhão de empregos com carteira assinada foram criados em nove meses.

Conforme o governo federal, com os resultados, foi alcançado o patamar recorde de 48,9 milhões de vínculos formais ativos.

Segundo o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, os números de setembro contrariaram analistas, que previam um saldo menor de contratações. “Nosso saldo de setembro talvez contrarie os especialistas do mercado, que eu não sei se são tão especialistas assim, porque eles projetaram no máximo 175 mil e o número é de 213 mil”, disse.

O saldo do mês ficou positivo em 213.002 postos formais. Foram 2.292.492 admissões contra 2.079.490 desligamentos.

Nas redes sociais, o presidente Lula destacou as marcas conquistadas: “Alcançamos, em setembro, a marca de 1,7 milhão de empregos com carteira assinada gerados em 2025. Resultado de muito trabalho e de uma economia forte, gerando oportunidade e renda para as famílias em todo o país.”

Setores

O grupamento que liderou a alta foi o de Serviços, com 106.606 postos. Na sequência, vieram os setores da Indústria (43.095), do Comércio (36.280), da Construção (23.855) e da Agropecuária (3.167).

Nestes segmentos, entre janeiro e setembro, o saldo é de:

  • Serviços: 773.385 novos postos;
  • Indústria: 273.231;
  • Construção: 194.545;
  • Comércio: 153.483; e
  • Agropecuária: 107.297.

Jovens trabalhadores

É destaque no Caged o número de jovens trabalhadores. Mais da metade das vagas criadas em setembro foram preenchidas por jovens entre 18 e 24 anos, ao ocuparem 110.953 postos.

Junto aos adolescentes até 17 anos, que ficaram com 31.105 vagas, os grupos correspondem a 67% dos empregos formais criados no mês.

Estados

Entre os estados que mais geraram oportunidades em setembro estão São Paulo (49.052), Rio de Janeiro (16.009) e Pernambuco (15.602). Quando se consideram as variações relativas, com base no tamanho do mercado de trabalho, as maiores altas no mês foram em: Alagoas (+3%), Sergipe (+1,7%) e Paraíba (+1,1%).

Ao se considerar os primeiros nove meses do ano, o acumulado de vagas criadas mantém à frente o estado de São Paulo (485.726 vagas), seguido por Minas Gerais (164.634) e Paraná (121.291).

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Leia tambem: Maior investimento social da História https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/boa-noticia_20.html

Uma crônica de Ruy Castro

Vendem-se prisões residenciais
Construtoras pensam em novos projetos adequados a políticos presos em casa. Collor cumpre pena em seu dúplex para que seu ronco não incomode companheiros de cela
Ruy Castro/Folha de S. Paulo 

Quem diria, a lei pode começar a influir no mercado imobiliário de Brasília. O número de civis e militares condenados por tentativa de golpe de Estado e tendo suas sentenças amenizadas para prisão domiciliar abriu uma oportunidade para as construtoras. Elas já planejam seus novos condomínios em função das necessidades de sentenciados. Até agora, as prisões domiciliares vinham sendo cumpridas nos endereços particulares de cada um —perfeitos talvez para conspirações, mas não para o cumprimento da pena.

Certas instalações que até os valorizavam ficaram ociosas. A churrasqueira, por exemplo, perdeu a utilidade —por determinação da Justiça, o condenado é impedido de promover rega-bofes para seus asseclas, digo, correligionários. Donde, nos amplos espaços para os forrobodós de outrora, a residência poderá dispor de uma academia particular, equipada com esteiras, espaldares, estações de musculação, mesas flexoras e cadeiras extensoras, para que o prisioneiro mantenha, mesmo confinado, uma vida fit.

Impedido de sair à rua para prevenir possíveis fugas ou obstrução da Justiça, o condenado não pode manter sua antiga vida social. Carreatas, motociatas e jet-skíadas estão fora de cogitação, claro. Comícios, nem pensar, nem mesmo discursos em cercadinhos, já que o condenado está proibido de se dirigir ao mundo exterior. Toleram-se, no máximo, papos ocasionais com carteiros, técnicos da Net e entregadores de pizza.

As construtoras sabem que suas residências prisionais não se comparam a algumas já atualmente em uso, como a do ex-presidente Collor. Ele cumpre prisão domiciliar em seu duplex à beira-mar na praia de Jatiúca, em Maceió, avaliado em R$ 9 milhões, com 600 metros quadrados, quatro suítes, adega, piscina e cascata artificial com filhote de jacaré. Collor foi obrigado a esse sacrifício por sofrer de apneia do sono, isto é, roncar. Não seria justo para seus companheiros de cela tê-lo roncando a noite inteira.

Imagine os de Bolsonaro tendo de aturar os seus soluços.

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Leia também: Terror midiático https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/minha-opiniao_24.html 

Minha opinião

O crivo viciado das redes 
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65 

A gente critica — em geral com razão — a excessiva importância dada às redes sociais no tempo presente. 

Porém se faz institucionalizada uma espécie de retroalimentação permanente dessa questionável importância. Qualquer fato relevante, de certa repercussão, enseja a que, dois a três dias após, a mídia dominante dedique espaço à aferição da chamada "repercussão nas redes".

Ou seja, quantas menções positivas ou negativas o aludido fato obteve — sem necessariamente levar em conta a distorção de versões e mesmo fake news.

A coisa se tornou tão importante na paisagem social e política do país que até os mais simples viventes cuidam de documentar a cena, celular à mão, através de vídeos e fotos em que quem fotografa ou filma se faz também personagem. 

Daí em diante, o produto é posto no Instagram e em outras redes e logo em seguida o dito cujo contabiliza quantas visualizações, curtidas e comentários obteve.

Uma espécie de narcisismo mórbido onde pouco se distingue entre o fato e a versão do internauta.

Foi assim que no fatídico 8 de janeiro de 2023, em Brasília, centenas de invasores dos edifícios dos três poderes da República produziram contra si mesmos provas documentais através de selfies em que descreviam os acontecimentos de viva voz e de imediato postavam nas redes. Muitos cumprem pena de reclusão na Papuda.

E a verdade? Ora, entre o que acontece e o que se interpreta nas redes a verdade pouco importa. Ou não?

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Assim age o controle social automágico https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/07/vida-digitalizada.html 

Fotografia

 

Luciano Siqueira

Leia: Uma simpática baleia azulzinha assusta os tubarões monopolistas https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/enio-lins-opina_30.html 

Postei nas redes

Vem aí a Keeta, ostentando 770 milhões de usuários na China, tecnologia avançada e pronta para desbancar o Ifood. Se eu pudesse, confesso, comeria no restaurante mesmo. 

"História estranha", Luis Fernando Veríssimo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/uma-cronica-de-luis-fernando-verissimo.html 

Uma crônica de Antônio Maria

A noite é uma lembrança
Antônio Maria  

BOA VIAGEM, FEVEREIRO. É de principiante isto de o cronista escrever que está numa janela de hotel, vendo a noite e fumando um cigarro. Mesmo havendo mar e sendo Boa Viagem um encontro muito desejado, não gosto da sem-cerimônia com que me faço personagem de mais uma crônica, como se eu, a noite e o cigarro ainda fôssemos novidade.

Entretanto, alguns acontecimentos espirituais do homem podem ser contados e explicados, desde que esse homem seja capaz de transmitir a alguém a beleza de sua solidão. Que ninguém se queixe de falta de ocorrências para escrever melhor. E sim de incapacidade para gritar o seu grande mundo interior.

Eu vim à janela porque conheci uma moça e estou preocupado em como a venho pensando, há um enorme tempo. O cabelo, os olhos, a boca, as mãos e o silêncio. Também a palavra vagarosa, que perguntava de vez em quando sobre uma verdade já velha ou sobre uma mentira mais em moda. Se confiasse em cada um de nós, explicaria à sua maneira o Homem, o Amor, o rio Capibaribe e o compositor João Sebastião Bach. Mas para isso, além de ser preciso confiar, teria que pedir a palavra e se imponentizar de tal maneira que nos assustaria à sua volta, após assustar-se consigo mesma. O que dizia eram curtas perguntas. O que fazia era pouco e casual. Mesmo assim eu a adivinhava sábia e corajosa.

Mais das vezes se escreve assim de uma mulher quando por ela se sente uma dessas súbitas emoções, muito parecidas com o chamado amor à primeira vista. Mas, em meu caso, essas impressões já não me confundem. Uma mulher me empolga assim que a sinto gente; e nela me perco, de descoberta em descoberta, sem me consentir a mínima desconfiança de estar amando-a, em qualquer das maneiras antigas ou atuais de amar alguém. Uma mulher-gente nos atrai aos seus mistérios e, no tempo em que procuramos desvendá-los, só acrescentamos dúvidas à nossa ignorância inicial.

Apesar disso, é dever do homem-gente deixar que o seu pensamento se demore nas lembranças de sua conhecida recente. Amor é outra coisa. Amor a gente espera, como o pescador espera o seu peixe, ou o devoto espera o seu milagre: em silêncio, sem se impacientar com a demora. E o amor a gente não conta pelo jornal a não ser quando quando o sentimento trai a frase, juntando palavras que deviam estar sempre separadas.

Cá estou, porém, nesta janela que não me deixa mentir, em frente à noite de que sou uma espécie de filho de criação, a repassar lembranças de uma moça que, de mim, se muito recordar, recordará meu nome. Eu também a esquecerei, mas daqui a duas ou três mulheres importantes. Agora, faz-me bem, inclusive, sofrê-la um pouco. É tarde. Deveria ir para a cama. Todavia, não seria  direito. Numa moça, a gente pensa na janela.

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Leia também: “Vivos, lúcidos e ativos" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/minha-opiniao_18.html

31 outubro 2025

Abraham Sicsu opina

Cuidado: o porta-aviões está chegando
Abraham B. Sicsu  

Eventos marcam. Em épocas diferentes. Fazem refletir, repensar posições nada simples, nada cômodas. As supermáquinas pontuam momentos políticos de impasses, de indefinições. Os porta-aviões chegam.

Governo de João Goulart, 1962. Estava acabando o primário e tinha dois colegas de classe sobrinhos de artista famoso. Éramos moleques, metidos a intelectuais, acreditando que fazíamos a revolução.

Seu tio, um músico sátiro, muito dotado, extremamente inteligente: Juca Chaves. Fez uma música que nos foi apresentada em encontro, acredito, na casa dos sobrinhos. A música fez sucesso e marcou época. Um trecho dizia:

“Brasil, terra adorada
Comprou porta aviões
Oitenta e dois bilhões
Brasil, oh pátria amada
Que Palhaçada.”

Crítica feroz ao gasto público em um bem que não se via sentido. Pelo menos, para ele e seus admiradores, e para as crianças que éramos.

A embarcação se chamou Minas Gerais, Foi o primeiro porta-aviões da Marinha Brasileira. Velho, verdade, seria usado na Segunda Guerra, mas nem isso foi, ficou um tempo com a Austrália e compramos de segunda mão.

Tinha sido adquirido em 1956, bem antes do governo da época da música, não importava para os críticos, do governo britânico e ficou na ativa até 2001 quando virou sucata, após muitas tentativas frustradas de venda. Podia levar até 20 aeronaves entre aviões de combate e helicópteros. À época impressionavam os números. Mais de mil pessoas envolvidas em sua operação. Símbolo de orgulho nacional, diziam nossas autoridades engalanadas. Finalmente tínhamos um.

Os críticos, ao contrário, questionavam. Um equipamento cuja explicação era pouco convincente. Uma plataforma de aviões em pleno mar, para quê? Aproximar as aeronaves por mar de quê objetivo?  Ter por ter fazia algum sentido?

A galera delirava e escarnecia de um Governo que já era frágil. Não se sabia o caos que estávamos apoiando e que estava sendo armado.

Agora, no jornal da sexta feira, dia 24 de outubro de 2025, uma notícia chama a atenção. Os Estados Unidos da América autorizam uma missão militar junto com o governo de Trinidad e Tobago. O maior porta-aviões do mundo será deslocado para a região. Mais precisamente para as ilhas em frente à Venezuela.

O Gerald Ford é uma monstruosidade. Movido por um gerador de energia nuclear. Segundo a CNN, tem envolvidos em sua tripulação cerca de cinco mil pessoas, uma mini cidade, e pode transportar noventa aviões. Além, de mísseis balísticos e armamentos ultrassofisticados. É acompanhado por uma frota de navios e equipamentos de guerra de tecnologia avançadíssima e aeronaves ultramodernas.

A justificativa desse deslocamento para o Mar do Caribe não é apenas treinamento militar, envolve um clima de mistérios pouco desvendados. Além de uma posição política assumida, de acusações antes dos fatos serem provados.

Quer-se combater o narcotráfico, sem provas até agora de que este se reconcentra na região norte do continente sul-americano, mais precisamente em dois países andinos. Até já, como teste, atiraram umas bombinhas que afundaram dez embarcações pequenas, sob o dito pretexto, e levaram à morte de 37 pessoas.

A poucos quilômetros da Venezuela, o arquipélago de Trinidad e Tobago, vai receber fuzileiros navais americanos para exercícios de preparação militar. No domingo, 26 de outubro, chegou o USS Gravely, um navio de guerra lançador de mísseis, ancorado a cerca de 10 quilômetros da Venezuela.

Procuram-se os reais alvos. Parece que dois personagens e dois países estão na mira, Petros e Maduro, Colômbia e Venezuela. Implicitamente, para avisar a China e a Rússia que aqui não devem se meter, o território é deles. Não há concessão ou discussão.

Colômbia que foi o principal aliado americano no combate aos cartéis e ao narcotráfico recentemente. Colômbia onde foi anunciado, em conjunto com os americanos, o fim dos grandes cartéis das drogas. Mas, isso não é relevante.

O dito Imperador do Mundo não sabe o que é soberania, não aceita a autodeterminação dos povos, para ele, Sul América é quintal americano, tem que se submeter a seus desejos.

Nos últimos meses os “yankees” inventaram uma nova guerra. Não teórica, mas real, mobilizando caças, submarinos e embarcações em operações de combate às drogas na região.

Mesmo sem ter muita certeza de que os barcos e lanchas atacados tinham efetivamente ligação com o narcotráfico. Nenhuma prova concreta apresentada. Sem limite territorial, nos mares do Caribe e do Pacífico. 

Trump tem o discurso na ponta da língua. Maduro e Petros são líderes de movimentos de narcotraficantes. E deu uma ordem explícita. A CIA tem que atacar os dois países. Mais, mobilizou o comando antiterroristas que matou Bin Laden no sentido de repetir a façanha com os dois dirigentes deste continente.

Evidentemente, tal atitude gera reações. Reservistas estão sendo convocados e exercícios militares são diuturnos no litoral da nossa vizinha Venezuela.

O presidente colombiano também se manifesta. Diz jamais ficar de joelhos. Reafirma a posição contra narcotraficantes. Afirma que se está criando uma guerra para desestabilizar a região e, assim, como afirma também Maduro, se apoderarem das reservas minerais, inclusive do petróleo, na região.

Não tenho nenhuma simpatia por Maduro e suas atitudes antidemocráticas. Mas, impossível aceitar que uma superpotência utilize sua força como mecanismo de impor um projeto personalista de dominação.

O mundo não é e nem deve ser propriedade de uma nação. Criar guerras é uma temeridade que pode custar milhões de vida, simplesmente por um capricho de querer delimitar um continente como sendo seu.  Um senhor, Falso Imperador, que diz querer ser Prêmio Nobel da Paz contradiz a lógica, o bom senso.

Dia 27, os Presidentes do Brasil e dos Estados Unidos se reúnem. Muita mídia, assunto esperado e desejado por quase todos. A pauta é basicamente econômica. Esperemos que venham os resultados.

 O que causa estranheza, pelo menos no que foi veiculado na imprensa, é que os temas Soberania e Autodeterminação dos Povos aparecem marginalmente. Num momento em que mais do que ameaças existem, em que há o risco concreto de intervenção militar nos países que são nossos vizinhos. Algo que mexe profundamente com a geopolítica da região e pode desestabilizá-la, pior, entrar numa guerra cruel e devastadora, talvez sem controle. O máximo que se fala é que o Brasil se dispõe a mediar a crise no norte do continente. Por que não exigir que seja evitada e interrompida? Por que não pedir aos americanos respeito às soberanias nacionais?

Parece que a preocupação única é melhorar nossas relações comerciais, conseguir mercados, mesmo que com o tarifaço já tenhamos provado que o Brasil pode entrar em novas áreas comerciais, que os impactos foram bem menores dos que os anunciados.

Antes que o porta-aviões chegue, bom refletirmos qual deve ser nossa postura frente às crises internacionais, qual o respeito que teremos se continuarmos declarando que somos o país líder na América do Sul, mas nos abstermos de uma posição firme frente ao todo poderoso Senhor das Bravatas, que anuncia invasão sem argumentos sólidos, que desrespeita os povos e sua autodeterminação.

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Leia também: “Catabil sobre o Índico” https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/04/minha-opiniao_13.html