29 abril 2025

Governo Lula: a essência e a aparência

O futuro está sendo construído e Lula esconde
O curioso é que Lula acompanha de perto, com interesse, todos os avanços estruturais, como ocorre com a área de ciência e tecnologia.
Luís Nassif/Jornal GGN 

O grande problema de países com déficit de informação, como o Brasil, é a pouca atenção que se dá a medidas estruturantes. De Temer a Bolsonaro, houve uma implosão, no setor público, de sistemas fundamentais para o desenvolvimento, como o de ciência e tecnologia, das empresas públicas, depenadas para gerar dividendos.

Hoje em dia tem-se o futuro sendo construído em várias instâncias, e um presidente da República que tem o mérito de abrir espaço para essas reconstruções, mas que padece de uma cegueira absoluta sobre os fatores de estímulo da opinião pública.

Há uma enorme demanda por alguém que aponte o futuro. Este está sendo construído em várias frentes – a Nova Indústria Brasil, do Ministério de Indústria e Comércio, a Transição Energética, da Fazenda, os financiamentos do BNDES em energias alternativas, da Finep (Financiadora de Estudos e Pesquisa) no aparelhamento dos laboratórios, da Petrobras no renascimento da indústria naval.

Nada disso ganha visibilidade. Do lado da mídia, porque já está empenhada no trabalho diuturno de desgastar o governo e há muito aboliu o conceito de relevância da cobertura. Da parte do governo por uma cegueira incompreensível. O presidente se esfalfa em inaugurações, em entrevistas para rádios do interior, para falar em pequenos benefícios para a população, e deixa de lado os fatores fundamentais de desenvolvimento.

O curioso dessa história é que Lula acompanha de perto, com interesse, todos esses avanços estruturais, como ocorre com a área de ciência e tecnologia. Mas só se tornará um fator determinante de futuro, entendido pela opinião pública, quando se tornar peça central dos discursos do presidente.

Tem muita coisa avançando, por exemplo, do lado da ciência e tecnologia.

O conteúdo abaixo é de uma entrevista com a Ministra Luciana Santos, de Ciência, Tecnologia e Inovação, e foi organizado usando uma plataforma de Inteligência Artificial.

1) Sucesso da Conferência e Discurso de Lula

§  Impacto do Discurso de Lula (00:00:13)

▫ O discurso de Lula animou os participantes da 5a Conferência Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação (5a CNCTI), mas foi percebido como direcionado a um público específico.

▫ Lula pediu aos cientistas que elaborassem um plano para ciência e tecnologia, destacando a necessidade de um plano abrangente para o Brasil.

▫ A conferência foi vista como um sucesso, destacando a importância da ciência e tecnologia na soberania nacional.

§  Desafios Geopolíticos e Tecnológicos

▫ A disputa tecnológica é um dos pilares da geopolítica mundial, com a China ampliando sua capacidade de inovação.

▫ A China está avançando em áreas disruptivas como 5G, espaço e fusão nuclear.

§  Participação e Contribuições na Conferência

▫ A conferência não ocorria há 14 anos, com uma participação significativa de 2.500 a 3.000 pessoas presencialmente.

▫ O uso de inteligência artificial para sistematizar contribuições, com o livro Lilás e Violeta destacando estratégias e políticas públicas.

▫ A importância da participação regional e municipal na ciência e tecnologia, com exemplos de secretarias municipais pioneiras.

2) Políticas Públicas e Investimentos em Ciência e Tecnologia

§  Recomposição do Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia (00:12:04)

▫ A recomposição integral do fundo foi uma das decisões estruturantes para resgatar a relevância da política pública de ciência e tecnologia.

▫ O fundo é financiado por cadeias dinâmicas da economia, como recursos hídricos e petróleo.

▫ A importância de aumentar a capacidade de investimentos, com propostas para que big techs e o agro contribuam com o fundo.

§  Desafios e Soluções para a Inovação

▫ A burocracia e o medo de interpretações erradas do TCU (Tribunal de Contas da União) inibem a liberação de recursos para inovação.

▫ A necessidade de flexibilidade e uso do marco legal da ciência e tecnologia para estimular a inovação.

▫ A importância de programas como encomenda tecnológica e transferência tecnológica para aquecer a inovação.

§  Programas Estratégicos e Parcerias Internacionais

▫ Programas estratégicos incluem áreas como espacial e ciência nuclear, com projetos no PAC.

▫ A parceria com a China avança em áreas como mecanização da agricultura familiar e inteligência artificial.

▫ O desenvolvimento de soluções de IA para monitoramento ambiental e combate à fome, em colaboração com Embrapa e INPE.

3)      Iniciativas e Projetos Inovadores

§  Atração de Talentos e Combate à Fuga de Cérebros

▫ O programa Conhecimento Brasil visa atrair de volta cérebros brasileiros no exterior, com 2.500 interessados. Cerca de mil ficarão nos seus países atuais, mas trabalhando em temas brasileiros.

▫ A importância de infraestrutura sofisticada para fixar talentos no país, uma das prioridades do MCTI.

▫ Planos para atrair cientistas dos EUA e Argentina, aproveitando contradições políticas internacionais.

§  Desenvolvimento de Infraestrutura de Pesquisa

▫ Expansão de infraestrutura de pesquisa com novos laboratórios e estações de luz.

▫ O laboratório NB4 será único no mundo, ligado a linhas de luz para manipulação de patógenos.

▫ A importância de infraestrutura avançada para antecipar pandemias e reduzir custos de extração de petróleo.

§  Inovação e Sustentabilidade no Setor Automotivo

▫ A Ceitec[i], reativada, muda sua rota tecnológica para o setor automotivo, focando em dispositivos de potência,.

▫ A transição para carbeto de silício como insumo para chips, visando eficiência e mercado latino-americano.

▫ A importância de reestruturar a radiofarmácia pública para garantir acesso a radiofármacos pelo SUS.

4)      Influência da Inteligência Artificial)

§  Impacto Global e Local

▫ A Inteligência Artificial (IA) é uma tecnologia transversal que influencia diversas cadeias globais.

▫ Iniciativas como o DeepSeek[ii] demonstraram a viabilidade de reduzir custos de infraestrutura em até dez vezes.

▫ O modelo colaborativo é destacado como uma alternativa ao modelo de concentração de recursos.

§  Soluções de IA para o Setor Público

▫ O plano é entregar 30 soluções de IA para o setor público até o final do ano.

▫ Essas soluções visam atender metas de curto e médio prazo, melhorando a eficiência dos serviços públicos.

§  Capacitação e Centros de Competência

▫ O Brasil possui centros de competência em IA, como o CGI[iii] e o NIC,[iv] que financiam pesquisas e capacitações.

▫ Pernambuco abriga dois centros importantes: o Porto Digital[v] e o César[vi], que são referências em inovação tecnológica.

▫ A formação de profissionais em TI é crucial para suprir o déficit de 500 mil vagas no setor.

5)      Desafios e Oportunidades na Tecnologia

§  Formação e Mercado de Trabalho

▫ A Brascom [vii]estima um déficit significativo de profissionais em áreas como IA, IoT, e segurança cibernética.[viii]

▫ Cursos de capacitação, como o de segurança cibernética, têm formado milhares de profissionais para o mercado.

§  Iniciativas para Mulheres na Ciência

▫ A participação feminina em áreas de engenharia e TI ainda é baixa, com apenas 16% de representação.

▫ Lançamos editais específicos, como o de 100 milhões do CNPq, incentivando a pesquisa e inovação lideradas por mulheres.

▫ A promoção da igualdade de gênero na ciência é uma prioridade, com foco em áreas estratégicas.

§  Desenvolvimento Regional e Inovação

▫ A desigualdade regional na infraestrutura de pesquisa é um desafio a ser enfrentado.

▫ Políticas assertivas são necessárias para estimular o desenvolvimento tecnológico no Nordeste.

▫ Iniciativas como o fortalecimento de universidades e institutos federais têm contribuído para o desenvolvimento regional.

6)      Cooperação Internacional e Sustentabilidade

§  Exploração e Preservação dos Oceanos

▫ O Brasil foi reconhecido pela UNESCO por sua cultura oceânica e iniciativas de pesquisa marinha.

▫ A exploração sustentável dos oceanos é vista como uma oportunidade econômica e científica.

▫ Projetos como a Olimpíada Oceânica promovem a educação e conscientização sobre a importância dos oceanos.

§  Parcerias Tecnológicas Internacionais

▫ A cooperação com países como França e Reino Unido é fundamental para o desenvolvimento de tecnologias avançadas.

▫ A transferência de tecnologia, como no caso do submarino nuclear, é um exemplo de parceria estratégica.

▫ A colaboração internacional fortalece a capacidade tecnológica e de inovação do Brasil.

§  Energia Renovável e Sustentabilidade

▫ A energia eólica offshore é uma área de crescente interesse e investimento no Brasil.

▫ Parcerias com empresas como a Petrobras são essenciais para o desenvolvimento de energias renováveis.

▫ A sustentabilidade é um foco central nas políticas de desenvolvimento tecnológico e econômico.


[i] ​A CEITEC S.A. (Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada) é uma empresa pública federal brasileira vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), especializada no desenvolvimento e fabricação de semicondutores, como circuitos integrados (chips).

[ii] A DeepSeek AI é uma empresa chinesa de inteligência artificial fundada em 2023 por Liang Wenfeng, também fundador do fundo de hedge High-Flyer, que financia integralmente a empresa. Sediada em Hangzhou, a DeepSeek AI é reconhecida por desenvolver modelos de linguagem de grande escala (LLMs), como o DeepSeek-R1, que competem com modelos ocidentais como o GPT-4 da OpenAI.​WIRED+4

[iii] O CGI.br é o Comitê Gestor da Internet no Brasil, uma entidade responsável por coordenar e integrar todas as iniciativas de serviços de Internet no país. Ele foi criado em 1995 por meio de uma portaria interministerial e é vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

[iv] O NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR) é uma entidade civil sem fins lucrativos que atua como o braço operacional do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil). Ele é o responsável direto por implementar as decisões e políticas definidas pelo CGI.br.

[v] O Porto Digital é um dos principais parques tecnológicos e ambientes de inovação do Brasil, localizado no centro histórico do Recife. Fundado em 2000, surgiu como uma iniciativa para revitalizar a economia local e reter talentos na área de tecnologia. Sua atuação se concentra nos setores de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC)Economia Criativa (como games, design, música e audiovisual) e Tecnologias Urbanas.

▫ [vi] CESAR (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife)

CESAR é um centro de inovação, pesquisa e desenvolvimento fundado em 1996 por professores do Centro de Informática da UFPE. Sediado no Recife, atua em todo o ciclo de inovação, oferecendo soluções tecnológicas, educação e apoio ao empreendedorismo.

[vii] A Brasscom (Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais) é uma entidade que representa o setor de TIC no Brasil.

[viii] ·  IA (Inteligência Artificial) – Tecnologias que simulam capacidades humanas, como reconhecimento de voz, visão computacional e tomada de decisão automatizada.

·  IoT (Internet das Coisas) – Rede de dispositivos físicos conectados à internet, que coletam e compartilham dados (ex: sensores, eletrodomésticos inteligentes, carros conectados).

·  Segurança Cibernética – Conjunto de práticas e tecnologias para proteger sistemas, redes e dados contra acessos não autorizados, ataques ou danos.

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Leia também: Forças políticas ativas na frente ampla https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/minha-opiniao_27.html 

Luiz Manfredini opina

A esquerda, a razão e o sentimento
A esquerda perde terreno na comunicação de massa ao ignorar o poder dos sentimentos, enquanto a extrema-direita domina redes sociais com emoção e fake news.
Luiz Manfredini*/Vermelho 


Debate-se, hoje em dia, pela mídia e pelas redes sociais, sobre a surra que a extrema-direita vem aplicando na esquerda em termos de comunicação de massa. Uma das questões que se coloca a respeito é que a direita, além de dominar os instrumentos das redes e de sua linguagem, ocupa-se prioritariamente do sentimento em suas mensagens, enquanto a esquerda, além de não ter dominado tais instrumentos, ocupa-se prioritariamente da razão.

Na atualidade, a extrema-direita mundial parece ter substituído a opção pelos tradicionais golpes militares, ou golpes de força de um modo geral (judiciários ou parlamentares) para galgar o poder, pelo domínio das mentes através de vastíssima cadeia de informações decuplicada pelas redes sociais e pelas manipulações das grandes empresas de tecnologia. Como não pode tratar da verdade, que a condena, vale-se das “fake news” para veicular suas mentiras e da exploração de sentimentos em sua estratégia de ganhar corações e mentes para seus propósitos. A luta ideológica ganha, assim, “status” de inéditas proporções.

Em seu livro “Sob o céu de junho – As manifestações de 2013 à luz do materialismo cultural”, o jornalista Fábio Palácio, professor adjunto do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão, menciona como, contemporaneamente, “na luta ideológica, a emoção e o sentimento se sobrepõe à razão”. Por isso mesmo, as “fake news”apelam essencialmente para a emoção, a violência, o medo”, algo que se afeta principalmente a juventude.

O pensador socialista Raymond Willians, citado por Fábio Palácio, atualizou o pensamento do marxista italiano Antônio Gramsci quanto à guerra cultural. Afirmou que nas condições atuais, a luta ideológica se dá mais pelo sentimento do que pela razão.

O tema volta à tona com o livro “Domínio das mentes”, publicado em 2024 pela Editorial Kotter, do ex-deputado constituinte Aldo Arantes. Estudioso, de longa data, das questões referentes à luta ideológica e à guerra cultural, Arantes afirma: “A esquerda, em geral, foca muito na razão, subestimando o sentimento. É evidente que é através da razão que se pode explicar um programa de lutas. Todavia, há que se levar em conta que, através do sentimento, atinge-se milhões de pessoas. Há, assim, que combinar a razão com o sentimento. Em determinadas camadas sociais, o apelo ao sentimento atinge mais do que o apelo à razão”. Para Aldo, subestimar a importância da luta ideológica e suas características atuais coloca a esquerda na defensiva diante dos avanços da extrema-direita.

Quando penso nisso, recordo-me sempre de uma peça da propaganda eleitoral de Lula, nas eleições de 2002, obra do talentoso Duda Mendonça. Dezenas de mulheres grávidas, espalhadas em linha horizontal, descendo por uma colina ao som do Bolero de Ravel. Vestindo batas brancas, expondo as barrigas, sorrindo, felizes, algumas com crianças no colo. Vão se aproximando. Quase ao final do vídeo, Chico Buarque fala em off, lentamente, intimista, dirigindo-se ao coração de quem o assiste: “Você não pode escolher se seu filho será menino ou menina. Não pode escolher sua altura nem a cor dos seus olhos. Muito menos o que ele vai ser quando crescer. Mas uma coisa você pode escolher: que tipo de país você quer para ele”. Então Chico urge em on dizendo: “Se você não muda, o Brasil também não muda”. Emoção pura, contagiante a serviço da ideia de um novo Brasil, esperançoso, justo e solidário, em mensagem que nenhum discurso racional poderia alcançar.

A jornalista Sara Goes, âncora da TV247, vem insistindo nessa questão do simbólico e dos sentimentos. No início de fevereiro último, publicou o artigo “O boné, budejo e uma esquerda que não sabe ser feliz”, em que registrou como um simples boné azul (“O Brasil é dos brasileiros”, criação de Sidônio Palmeira em resposta ao trumpista “America great again”) “conseguiu gerar um volume impressionante de discussões, análises e, claro, reclamações”.

Sara Goes afirma que, para a esquerda, “qualquer ação precisa passar por um escrutínio interminável, como se fosse possível atingir um estado de pureza ideológica e estética antes de ser validada. Enquanto isso, a direita age com pragmatismo: não perde tempo debatendo a tonalidade de um boné ou o design de uma fonte. Veste a camisa – ou o boné – e parte para a batalha comunicacional sem grandes angústias”.

Eu diria que a esquerda sempre esteve mergulhada numa espécie de “tesismo”, expressão que criei para caracterizar essa propensão pela extrema racionalidade, mergulhada em discussões infindáveis até mesmo sobre questões as mais prosaicas, incapaz de perceber que suas teses, bandeiras, palavras-de-ordem podem – e devem – ser traduzidas, para efeito da comunicação de massa, em pensamentos breves, simples, de apelo afetivo e fácil compreensão popular. Isso parece, a essa esquerda, uma vulgarização, uma simplificação condenável do seu “refinado” pensamento. Ora, enquanto não compreender as novas realidades da sua tão decantada luta de classes, onde a comunicação de massa alcança níveis dominantes, enquanto não se especializar no uso das redes sociais e perceber que a razão não b asta, capturando a estratégica dimensão dos afetos, perderá sempre daqueles – em particular a extrema-direita – que compreenderam os sinais dos novos tempos, e usam à larga os instrumentos que, pela internet, difundem suas mentiras a partir dos sentimentos  no afã de ganhar corações e mentes.

[Ilustração: Denis Esteves]

*Jornalista a escritor paranaense, autor, entre outros livros, dos romances "As moças de Minas", "Memória e Neblina" e "Retrato no entardecer de agosto".

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Postei no X

As tarifas estão prejudicando a economia e o apoio popular a Trump está caindo. A confiança do consumidor já despencou e as empresas estão reduzindo seus investimentos. As ações, os títulos e o dólar estão todos em baixa - lamenta The Economist. Para onde vai esse barco furado? 

Simpósio da Grabois debate desenvolvimento e desafios do Brasil no cenário global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/fundacao-grabois-debate.html

28 abril 2025

Palavra de poeta

Canção do exilado
José Almino de Alencar  

 
Se eu voltar a lamber as botas do passado,
Se eu voltar a chorar a memória da memória:
que me seque a mão direita!
Quando o teu calor vier
pelo vento tardio, deste verão tão puro
e corromper o meu tato;
e o roçar da tua nuca, me fizer tremer.
Se eu assobiar a tua mínima canção,
se eu procurar a tua boca
e o ruído das tuas ruas estrangular o meu coração:
que me cole a língua ao paladar!
Ó devastadora filha de Babel,
feliz quem devolver a ti
o mal que me fizeste!
Não pedirei mais
perdão às virtudes do passado.
Repetirei, em desassombro 
se eu lembrar de ti, Jerusalém 
com os que diziam: 
"Arrasai-a!
Arrasai-a até os alicerces!"


Elemento novo na Europa

Uma Alemanha remilitarizada?
À medida que a influência americana diminui, ela criará vazios políticos e de segurança que outros competem para preencher
ANDREW KORYBKO*/A Terra é Redonda 

Foreign Affairs alertou que uma Alemanha fortalecida e remilitarizada pode representar mais um desafio à estabilidade europeia. A agência está convencida de que a “Zeitenwende” – ou ponto de virada histórico – do ex-chanceler Olaf Scholz “é real desta vez”, no sentido de que seu sucessor, Friedrich Merz, agora conta com o apoio parlamentar e popular para transformar seu país em uma grande potência. Embora isso supostamente beneficiasse a Europa e a Ucrânia, não estaria isento de três sérios riscos.

Segundo os dois autores do artigo, isso implica em: (i) a Rússia travando mais guerras híbridas contra a Alemanha; (ii) a ascensão da Alemanha possivelmente provocando mais nacionalismo nos países vizinhos (ii) e isso potencialmente levando a uma explosão de ultranacionalismo na Alemanha.

O catalisador para tudo isso é o gradual desligamento dos EUA da OTAN, provocado pela repriorização da região Ásia-Pacífico pelo governo de Donald Trump. À medida que a influência americana diminui, ela criará vazios políticos e de segurança que outros competem para preencher.

Certamente, o artigo em si visa mais promover as supostas vantagens da implementação tardia pela Alemanha da “Zeitenwende” de Olaf Scholz, que os autores elogiam como algo há muito esperado e uma resposta natural ao catalisador mencionado, visto que a Alemanha já é a líder de fato da União Europeia. Ao mesmo tempo, abordar os riscos reforça sua credibilidade aos olhos de alguns leitores, permite-lhes lançar sutilmente uma sombra sobre Donald Trump e apresenta os autores como previdentes caso qualquer um dos casos acima ocorra.

Começando pelo primeiro dos três, é previsível que a Alemanha e a Rússia realizariam mais operações de inteligência uma contra a outra se a primeira desempenhar o papel de liderança do continente na contenção da segunda, que, naturalmente, consideraria uma ameaça latente por razões históricas óbvias. O artigo omite qualquer menção à forma como o novo papel da Alemanha prejudicaria os interesses russos e deturpa qualquer resposta de Moscou como agressão não provocada.

Eles são mais justos em relação ao segundo risco de os países vizinhos se tornarem mais nacionalistas em reação a uma Alemanha fortalecida e remilitarizada, mas não entram em detalhes. A Polônia é provavelmente a candidata mais provável, visto que tais sentimentos já estão em ascensão neste país. Isso é uma reação à coalizão liberal-globalista governante em geral, à sua suposta subserviência à Alemanha e às preocupações de que uma Alemanha possivelmente liderada pela AfD possa tentar recuperar o que a Polônia considera seus “Territórios Recuperados”.

O último risco se baseia no que os autores expressaram como o pior cenário de “um exército alemão fortalecido primeiramente por governos politicamente centristas e pró-europeus [caindo] nas mãos de líderes dispostos a relitigar as fronteiras da Alemanha ou a renunciar à deliberação no estilo da União Europeia em favor da chantagem militar”. É essa consequência potencial que é a mais importante a ser avaliada, já que se espera que as duas primeiras sejam características duradouras dessa nova era geopolítica na Europa, enquanto a última é incerta.

Espera-se que o resultado das eleições presidenciais polonesas no próximo mês determine em grande parte a dinâmica futura das relações polaco-alemãs. Se o candidato conservador cessante for substituído pelo candidato liberal, a Polônia provavelmente se subordinará ainda mais à Alemanha, contará com a França para equilibrar a situação com os EUA ou se voltará para a França. Uma vitória dos candidatos conservadores ou populistas, no entanto, diminuiria a dependência da Alemanha, equilibrando-a com a França ou repriorizando os EUA.

Prevê-se que a França tenha um papel mais proeminente na política externa polonesa, de qualquer forma, devido à sua parceria histórica desde a era napoleônica, bem como às preocupações contemporâneas compartilhadas sobre a ameaça que uma Alemanha fortalecida e remilitarizada poderia representar para eles.

Os franceses, em geral, estão menos preocupados com a possibilidade de a Alemanha relitigar suas fronteiras do que alguns poloneses e estão muito mais preocupados com a possibilidade de perder a chance de liderar a Europa, total ou parcialmente, após o fim do conflito ucraniano.

França, Alemanha e Polônia competem entre si nesse aspecto, com os resultados mais prováveis sendo a hegemonia alemã por meio da visão da “Zeitenwende“, com a França e a Polônia frustrando isso conjuntamente na Europa central e oriental, ou um “Triângulo de Weimar” revitalizado para um governo tripartite sobre a Europa.

Enquanto a livre circulação de pessoas e capitais na União Europeia for mantida, o que – obviamente, não pode ser considerado garantido, mas é provável – as chances de uma Alemanha liderada pela AfD reconsiderar sua fronteira com a Polônia são baixas.

Isso porque alemães com ideias semelhantes poderiam simplesmente comprar terras na Polônia e se mudar para lá se quisessem, ainda que sujeitos às leis polonesas, que não diferem em nenhum sentido significativo das leis alemãs para todos os efeitos no que diz respeito ao seu cotidiano. Além disso, embora a Alemanha de fato planeje passar por um reforço militar sem precedentes, a Polônia já está no meio do seu próprio reforço e tem se mostrado mais bem-sucedida nisso depois de se tornar a terceira maior força militar da OTAN no verão passado.

Também é improvável que os EUA se retirem completamente da Polônia, muito menos de toda a Europa central e oriental, portanto suas forças provavelmente permanecerão lá para sempre, como um impedimento mútuo contra a Rússia e a Alemanha. Nenhum dos dois tem a intenção de invadir a Polônia, então essa presença seria principalmente simbólica e com o propósito de tranquilizar psicologicamente a população polonesa, historicamente traumatizada quanto à sua segurança. De qualquer forma, a questão é que o pior cenário que os autores abordaram é muito improvável de se concretizar.

Em resumo, isso se deve ao seguinte: a Polônia ou se subordinará à Alemanha após as próximas eleições ou dependerá mais da França para equilibrar a situação (se não priorizar os EUA em detrimento de ambos); o livre fluxo de pessoas e capitais na União Europeia provavelmente permanecerá por algum tempo; e os EUA não abandonarão a Europa central e oriental. Consequentemente, esses fatores: apaziguarão ou equilibrarão uma Alemanha possivelmente ultranacionalista (liderada pela AfD); idem; e dissuadirão qualquer potencial revisionismo territorial alemão (seja por meios legais ou militares).

Chegando ao fim, pode-se concluir que a nova ordem que está tomando forma na Europa provavelmente não levará a uma restauração dos riscos entre guerras, como as Relações Exteriores alertaram ser o pior cenário, mas à criação de esferas de influência sem tensões militares. Quer a Polônia se mantenha fortemente por conta própria, parceira da França ou subordinada à Alemanha, nenhuma mudança de fronteira é esperada na direção ocidental ou oriental, com todas as formas de futura competição germano-polonesa permanecendo administráveis.

*Andrew Korybko é mestre em Relações Internacionais pelo Instituto Estadual de Relações Internacionais de Moscou. Autor do livro Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes (Expressão Popular). [https://amzn.to/46lAD1d] Tradução: Artur Scavone.

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Leia editorial do 'Vermelho' sobre a guerra tarifária https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/tarifas-de-trump-idas-e-vindas.html

China: robótica como diferencial

China tem um exército de robôs movidos por IA ao seu lado na guerra comercial com os EUA e outros países
Fábricas estão sendo automatizadas em toda o país a um ritmo acelerado
The New York Times/O Globo 

A arma secreta da China na guerra comercial é um exército de robôs industriais, movidos por inteligência artificial, que revolucionaram a manufatura. As fábricas estão sendo automatizadas em toda a China a um ritmo acelerado.

Com engenheiros e eletricistas cuidando de frotas de robôs, essas operações estão reduzindo os custos de produção ao mesmo tempo em que melhoram a qualidade. Como resultado, as fábricas chinesas conseguirão manter o preço de muitos de seus produtos de exportação mais baixos, oferecendo uma vantagem na disputa da guerra comercial e nas tarifas elevadas do presidente Donald Trump. 

A China também enfrenta novas barreiras comerciais impostas pela União Europeia e por países em desenvolvimento que vão do Brasil e Índia à Turquia e Tailândia.

As fábricas estão agora mais automatizadas na China do que nos Estados Unidos, Alemanha ou Japão. Segundo a Federação Internacional de Robótica, a China possui mais robôs industriais por 10.000 trabalhadores da manufatura do que qualquer outro país, exceto Coreia do Sul e Cingapura.

O avanço da automação na China tem sido guiado por diretrizes do governo e sustentado por enormes investimentos. E à medida que os robôs substituem os trabalhadores, a automação posiciona a China para continuar dominando a produção em massa, mesmo com o envelhecimento da força de trabalho e a redução do interesse por empregos industriais.

He Liang, fundador e CEO da Yunmu Intelligent Manufacturing, uma das principais produtoras chinesas de robôs humanóides, afirmou que a China busca transformar a robótica em um setor totalmente novo da economia.

— A expectativa para os robôs humanóides é criar outra indústria como a dos carros elétricos.. Sob essa perspectiva, trata-se de uma estratégia nacional — disse Liang.

Os robôs estão substituindo trabalhadores não apenas em fábricas de automóveis, mas também nas milhares de oficinas espalhadas pelos becos da China.

A oficina de Elon Li, à beira da calçada em Guangzhou, o centro comercial do sudeste chinês, tem 11 funcionários que cortam e soldam metal para fabricar fornos baratos e equipamentos para churrasco. Agora, ele está se preparando para pagar US$ 40.000 a uma empresa chinesa por um braço robótico com câmera.

O dispositivo usa inteligência artificial para observar como um trabalhador solda os lados de um forno e, em seguida, reproduz a ação com mínima intervenção humana.

Apenas quatro anos atrás, o mesmo sistema só estava disponível por meio de empresas estrangeiras de robótica e custava quase US$ 140.000. “Antes, eu nunca imaginaria investir em automação”, disse Li, acrescentando que um funcionário “só pode trabalhar oito horas por dia, mas uma máquina pode funcionar 24 horas.”

Empresas maiores apostam muito mais na automação.

Em Ningbo, uma enorme fábrica da Zeekr, montadora chinesa de carros elétricos, tinha 500 robôs quando foi inaugurada quatro anos atrás. Agora são 820, e muitos outros estão nos planos. 

Assobiando animadamente músicas de Kenny G para alertar pessoas próximas, carrinhos robóticos transportam lingotes de alumínio até um elevador automatizado, que leva os blocos de metal até uma fornalha no topo de uma máquina chinesa de 12 metros de altura. Uma vez derretido, o alumínio é moldado em painéis de carro e outros componentes. Mais carrinhos robóticos — e ocasionalmente um humano dirigindo uma empilhadeira — levam os componentes até o armazém.

Outros robôs transportam os painéis até a linha de montagem, onde centenas de braços robóticos, trabalhando em equipes de até 16, executam uma dança complexa para soldá-los formando carrocerias. A área de soldagem é chamada de “fábrica escura”, ou seja, os robôs operam sem trabalhadores e no escuro. 

As fábricas da China ainda empregam legiões de trabalhadores. Mesmo com a automação, eles são necessários para verificar a qualidade e instalar algumas peças que exigem destreza manual, como os chicotes de fios. Há tarefas que câmeras e computadores ainda não conseguem executar sozinhos. Antes de os carros serem pintados, trabalhadores ainda passam as mãos enluvadas sobre eles para lixar imperfeições.

Mas até mesmo algumas das últimas etapas de controle de qualidade também estão sendo automatizadas com a ajuda da inteligência artificial. 

Perto do fim da linha de montagem da Zeekr, uma dúzia de câmeras de alta resolução tira fotos de cada carro. Computadores comparam as imagens com um banco de dados extenso de veículos corretamente montados e alertam a equipe se encontrarem alguma discrepância. A tarefa leva apenas alguns segundos.

— A maioria dos trabalhos dos nossos colegas envolve sentar em frente a um monitor de computador — disse Pinky Wu, funcionária da Zeekr.

A Zeekr e outras montadoras chinesas também estão usando inteligência artificial para projetar carros e seus recursos de forma mais eficiente.

Carrie Li, designer que trabalha no novo prédio de escritórios da Zeekr em Xangai, usa IA para analisar como diferentes superfícies internas se intersectam em um carro. 

—Tenho mais tempo livre para abrir minha mente e explorar por conta própria quais tendências da moda incluir nos interiores dos carros — contou Li.

Fábricas de automóveis nos Estados Unidos também utilizam automação, mas grande parte dos equipamentos vem da China. A maioria das fábricas de montagem de carros construídas no mundo nos últimos 20 anos foi na China, e uma indústria de automação surgiu ao redor delas.

Empresas chinesas também compraram fornecedores estrangeiros de robótica avançada, como a Kuka, da Alemanha, e transferiram grande parte de suas operações para a China. Quando a Volkswagen inaugurou uma fábrica de carros elétricos em Hefei, há um ano, havia apenas um robô vindo da Alemanha e 1.074 robôs fabricados em Xangai.

O rápido avanço da China em robótica industrial foi impulsionado de cima para baixo. A iniciativa “Made in China 2025”, lançada há uma década por Pequim, definiu 10 setores nos quais a China buscava ser competitiva globalmente. A robótica era um deles.

Para forçar a indústria automobilística a pensar em como usar robôs humanoides com dois braços e duas pernas, por exemplo, autoridades governamentais em Pequim disseram, no ano passado, às principais montadoras que alugassem robôs e enviassem vídeos deles realizando tarefas em suas linhas de montagem.

Os vídeos exigiram várias tentativas até ficarem corretos. Os robôs realizaram apenas tarefas básicas, como separar peças de automóveis em um armazém. Mas a iniciativa ajudou a impulsionar as montadoras nesse caminho.

Como parte da demonstração do impulso à automação, o governo municipal de Pequim realizou, no sábado passado, uma meia-maratona com 12.000 corredores e 20 robôs humanoides. Apenas seis robôs completaram a prova, e o mais rápido deles levou quase três vezes mais tempo que os corredores mais velozes. Mas o evento ajudou a atrair atenção para os robôs. 

No mês passado, o primeiro-ministro Li Qiang, segundo oficial mais importante da China, disse em seu relatório anual ao Legislativo que os planos do país para este ano incluíam um esforço para “desenvolver vigorosamente” robôs inteligentes. A principal agência de planejamento econômico do país anunciou um fundo nacional de capital de risco de US$ 137 bilhões para robótica, inteligência artificial e outras tecnologias avançadas. 

Desafio de encontrar funcionários qualificados

As universidades chinesas formam cerca de 350.000 engenheiros mecânicos por ano, além de eletricistas, soldadores e outros técnicos qualificados. Em comparação, as universidades americanas formam cerca de 45.000 engenheiros mecânicos anualmente.

Jonathan Hurst, diretor de robótica e cofundador da Agility Robotics, uma importante fabricante americana de robôs, disse que encontrar funcionários qualificados tem sido um de seus maiores desafios. Como estudante de pós-graduação no Instituto de Robótica da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, Hurst contou que era um dos dois engenheiros mecânicos da turma.

A rápida adoção da automação pela China preocupa alguns trabalhadores chineses.

Geng Yuanjie, de 27 anos, opera uma empilhadeira na fábrica da Zeekr, onde trabalha há dois anos. Ele disse que havia consideravelmente menos robôs na fábrica da Volkswagen onde trabalhava anteriormente. Agora cercado por robôs, ele tem poucos colegas com quem conversar durante seus turnos de 12 horas.

— Consigo sentir a tendência em direção à automação — disse Geng enquanto observava um carrinho robótico puxar uma prateleira com peças automotivas passando por sua empilhadeira.

Ele acrescentou que sua educação de nível médio talvez não seja suficiente para se qualificar para cursos de programação de robôs e que teme perder o emprego algum dia para uma máquina.

— Não é só uma preocupação minha — todo mundo se preocupa com isso — disse Geng.

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Brasil e China inauguram nova rota marítima direta entre os dois países https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/comercio-brasil-china.html

Minha opinião

Espontaneismo consciente 
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65 

Aprendi desde o início da militância partidária que a atividade consciente (teórica e politicamente bem orientada e apoiada na realidade concreta de cada lugar e a cada tempo) é essencial para o movimento transformador. 

O inverso da prática consciente é exatamente o espontaneismo — ou seja, a presunção de que as ações e decisões políticas podem ser guiadas por impulsos e sentimentos não planejados nem lastreados em reflexão atenta.

Ao longo dos anos, portanto, tenho me esforçado na prática militante consciente.

Porém há uma exceção: a comunicação digital. 

Refiro-me à minha presença nas redes sociais e a realização cotidiana do meu blog.

Aí há um contraponto.

Embora o que penso e o que faço traduzam a busca permanente de uma práxis revolucionária, minhas postagens ganham um traço de espontaneismo no que se refere a não observância de regras sugeridas pelos especialistas no sentido de aumentar o engajamento e a interação e, por aí, ampliar a quantidade de seguidores. 

Desleixo? Não. Apenas ausência de  tempo e de disposição para cuidar disso.

O tempo que consumiria com esse tipo de expediente aproveito precisamente para ler mais, estudar, refletir e debater — melhorando assim a qualidade da minha intervenção na luta cotidiana. 

Ou seja, pratico uma espécie de "espontaneismo não espontâneo", proativo, consciente. 

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Leia: Leitura instantânea e imperfeita https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/china-russia-no-contexto-global.html 

Paz mundial ameaçada

Estados Unidos, o Sul Global e a Ordem Mundial
Quando as mercadorias não cruzam fronteiras, os soldados o farão” disse o economista liberal francês do século XIX, Frederic Bastiat. 
Luis Antônio Paulino/Vermelho 

A guerra comercial para a qual o presidente dos Estados Unidos ameaça arrastar o mundo não é apenas uma grave ameaça para a ordem econômica mundial vigente, mas pode ter consequências ainda mais graves, colocando em risco a própria paz mundial. “Quando as mercadorias não cruzam fronteiras, os soldados o farão” disse o economista liberal francês do século XIX, Frederic Bastiat.  De certa forma foi isso que ocorreu na década de 1930, quando a guerra comercial promovida pelos Estados Unidos por meio de Lei Smoot-Hawley foi considerada por muitos um dos fatores que contribuíram para criar o ambiente que levou à Segunda Guerra Mundial.

A guerra comercial a ser iniciada não tem como objetivo apenas barganhar acordos comerciais com os seus parceiros em posição vantajosa, mas pretende alterar a própria ordem econômica global e a posição que os Estados Unidos ocupam nela. Estamos assistindo a uma transição forçada de um sistema de integração econômica controlada baseado em regras para um sistema de desacoplamento forçado, fragmentação caótica e isolacionismo.

 “A interdependência econômica, outrora a pedra angular da prosperidade global, agora se tornou uma fonte de tensão. Se essa tendência continuar, a interconexão pode acabar se tornando uma vulnerabilidade, mesmo para países que há muito florescem sob a globalização. Guerras comerciais, tarifas e sanções foram transformadas de ferramentas econômicas em armas em uma luta mais ampla por domínio, fomentando uma atmosfera de suspeita e desconfiança que está corroendo as bases da cooperação internacional. Países que há muito viam os outros como parceiros ou concorrentes em um mercado global agora veem apenas adversários ou representantes em uma disputa global por influência e domínio”[1].

No que isso vai dar é difícil prever, mesmo porque os riscos que essa escalada tarifária representa para importantes setores da economia dos Estados Unidos pode levar o presidente norte-americano a ser obrigado a recuar, embora, até o momento, ele não demonstre nenhuma intenção de fazê-lo, apesar das críticas de setores importantes que o apoiaram nas eleições como os agricultores norte-americanos.

É fato que a ordem atual é considerada obsoleta até mesmo pelos países em desenvolvimento, entre eles a China e o Brasil, mas mesmo esses países são cuidadosos quando falam em mudanças no sistema, preferindo falar em reformas na ordem atual a mencionar substituição por uma nova ordem que ninguém sabe exatamente o que seria.

Muitas das normas da ordem atual são obsoletas e facilmente abusadas pelos poderosos, mas outras garantiram o sistema multilateral que permitiu a muitos países em desenvolvimento alcançar a prosperidade. O fato é que sob a ordem atual, baseada em regras, muitos países logram se desenvolver, a começar pelos países da Europa, Japão, os chamados Tigres Asiáticos e, mais recentemente, a China. Mesmo países subdesenvolvidos do chamado Sul Global, entre eles o Brasil, conseguiram atingir estágios de renda média alta embora tenham ficado presos na chamada “armadilha da renda média”.

A criação de organizações internacionais baseadas no princípio de “um país, um voto” como no caso do Organização Mundial do Comércio (OMC) deu aos países em desenvolvimento uma voz que não tinham antes. O fato, por exemplo, de o PIB conjunto dos BRICS ser, hoje, maior que o do G7 é fruto dessa ordem que os Estados Unidos querem agora destruir.

Sob a nova ordem, imaginada pelo presidente americano, passa a valer a velha máxima de que “os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem o que devem”, conforme famosa passagem da obra do historiador grego Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso. Além de trazer uma instabilidade sem precedentes sobre o sistema internacional, transformando a indústria bélica no carro-chefe da economia global, essa nova ordem tenderá a aprofundar o fosso entre países ricos e países pobres, condenando bilhões de pessoas a uma vida miserável. O corte da ajuda humanitária, bem como a saída dos Estados Unidos de organizações multilaterais como a OMS e o Acordo de Paris terão consequências concretas que poderão ser contabilizadas no futuro em termos de milhões de vidas perdidas.

A ideia aparente de Trump de transformar as relações internacionais em um jogo entre grandes potências não vai funcionar pelo simples fato de que os Estados Unidos, ao contrário do que ocorreu ao final da Segunda Guerra, não têm mais o poder econômico, militar e muito menos moral para impor qualquer solução que o mantenham no topo da cadeia de poder mundial, ditando regras para o resto do mundo, como Trump aparentemente pretende. A política de grandes potências já levou o mundo a duas guerras mundiais e, como diz o ditado, “o cúmulo da idiotice é fazer repetidamente as mesmas coisas, esperando resultado diferente”.

Mesmo os países em desenvolvimento, ainda que não dispondo de poder militar com que possam confrontar os Estados Unidos, estão muito menos dependentes da economia norte-americana e do sistema financeiro global capitaneado pelos bancos e fundos de investimento americanos. O surgimento de novos arranjos de cooperação internacional, como o BRICS, sem a participação dos Estados Unidos, mostra que uma outra ordem internacional não submetida aos ditames dos Estados Unidos também é possível.

A América Latina está particularmente vulnerável neste momento. Frente às ameaças generalizadas do governo Trump de punir qualquer país, aliado ou não, que na sua opinião esteja prejudicando os Estados Unidos, seja pela imposição de tarifas de importação elevadas para as mercadorias produzidas nos Estados Unidos, seja não tomando medidas para impedir a imigração ilegal ou contrabando de drogas, nomeadamente o fentanil que se tornou um grave problema se saúde pública nos Estados Unidos, os países da América Latina, nomeadamente da América Central e Caribe, são os que estão em posição mais frágil e vulnerável.

O caso recente da Colômbia, que ao se recusar a receber voos militares com deportados dos Estados Unidos foi ameaçada de forma exemplar com tarifas punitivas sobre suas exportações, sendo obrigada a recuar pelo receio do impacto negativo sobre a sua economia, mostra que a América Latina, diferentemente de Canadá, União Europeia ou a China, que têm como se defender ou pelo menos retaliar, está em posição mais difícil, principalmente aqueles países altamente dependentes do mercado norte-americano para suas exportações de produtos primários.

A bem da verdade, a situação poderia ser pior. Segundo dados do Council on Foreign Relations, centro de estudos com sede em Nova York, o mercado da China representava menos de 2% das exportações da América Latina, em 2000, mas cresceu a uma taxa média anual de 31% nos oito anos seguintes. Em 2021, o comércio ultrapassou US$ 450 bilhões e economistas dizem que as cifras podem chegar a US$ 700 bilhões, em 2035.

O complexo portuário de Chancay, no Peru, construído pela China, interligando China e América Latina, inaugurado em novembro de 2024, será, em alguns anos, o maior porto comercial da América do Sul. Situado a cerca de 70 km ao norte da capital peruana, Lima, é um projeto gigantesco, liderado pela companhia marítima estatal chinesa Cosco Shipping Company e com investimentos totais estimados em US$ 3,4 bilhões. Com o complexo portuário de Chancay aumenta a capacidade de transporte dos produtos exportados da região, principalmente minérios, como lítio e cobre, e produtos agrícolas, como a soja para a China e outros mercados na Ásia. O grande calado da baía de Chancay confere ao porto capacidade de receber os maiores navios do mundo, que podem transportar até 24 mil contêineres.

A recente derrota do trumpismo para eleição do secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em que Brasil e outros países da América Latina conseguiram fazer com que o Paraguai desistisse de indicar seu chanceler como secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), visto como um representante do trumpismo, apoiando o nome do Suriname, mostra que quando os países da região se articulam é possível resistir às pressões dos Estados Unidos de maneira mais efetiva. É preciso registrar, portanto, que o grau de estrago que as novas políticas do presidente americano irão fazer na economia mundial depende também da capacidade de resposta dos demais países. Unidos, os países do Sul Global são uma força poderosa que pode contribuir para evitar que o sistema global regrida para a situaç&atil de;o que prevalecia antes da Segunda Guerra Mundial.


[1] Awar Ibrahim. The Global South Paths to Economic Resilience. Project Syndicate. Disponível em: <https://www.project-syndicate.org/onpoint/what-global-south-middle-and-emerging-powers-want-by-anwar-ibrahim-2025-03>

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Simpósio da Grabois debate desenvolvimento e desafios do Brasil no cenário global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/fundacao-grabois-debate.html

Transição ecológica e diversificação energética


Na mesa "Transição Ecológica e Diversificação Energética em Função do Desenvolvimento Soberano dos Interesses Populares e da sua Estabilidade", do Simpósio “Desafios Brasileiros no Atual Contexto Internacional” – Segunda Parte, que ocorreu dia 03 de abril de 2025, especialistas e gestores públicos debatem o papel da transição ecológica e da diversificação energética no fortalecimento de um projeto nacional soberano, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Quais os caminhos para um novo ciclo de desenvolvimento que leve em conta os interesses populares e a estabilidade climática? Assista ao debate completo! Participações: geólogo e professor do IEE/USP, Guilherme Estrella; professor titular aposentado da UFBA,José Sérgio Gabrielli e Inamara Mélo, Coordenadora-Geral de Adaptação à Mudança do Clima, do Ministério do Meio Ambiente Veja "Segurança pública, crime organizado e milícias" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/seguranca-publica-crime-organizado-e.html

27 abril 2025

Palavra de poeta

Imperfeitiços
Paulo Leminski 

Só temos dois temas,
o perfeito e o imperfeito.
O perfeito é fácil.
O imperfeito, eu tremo.

Tremo de pensar que alí,
na trama de imperfeitos feita,
o perfeito venha a luzir,
e a alma saia satisfeita.

O perfeito, apenas, cansa,
coisa que Adão já sabia.
O outro, sim, compensa,
crime acima de qualquer suspeita,
incompleta sabedoria.

[Ilustração: Edward Hopper]

Leia 'A festa', poema de Cida Pedrosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/palavra-de-poeta_20.html

Minha opinião

Convergentes, porém não diluídos entre si
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65

Óbvio que num país como o Brasil não é possível simplificar o embate de classes, nem reduzi-la à vontade subjetiva dos atores em cena.

Mas é certo também afirmar que a cena política não pode, nem deve, ser ocupada apenas pelo binômio governo versus oposição.

Melhor dizendo, além da ação governamental propriamente dita e do pronunciamento oficial acerca de questões tão candentes quanto complexas, lícito é cobrar a posição dos partidos que integram a coalizão liderada pelo presidente Lula.

Necessário e urgente em razão do cerco partidário à direita (apoiado no predominante conservadorismo na Câmara dos Deputados e no Senado) e do poderoso complexo midiático (ágil e permanentemente mobilizado em todas as plataformas), comprometido fundamentalmente com o capital financeiro e o agronegócio exportador.

Atores ativos

Em suma, a cena é ocupada por distintos atores chamados a exercer o seu papel.
Demais, são tantas as trincheiras e desafios que sempre será de bom tom não confundir os papéis. 

Sindicatos e demais entidades representativas da luta popular jamais poderão abrir mão de suas pautas específicas e da sua independência — mesmo que eventualmente isto signifique polêmica aberta com o governo.  

Governo é governo, movimentos sociais são movimentos sociais e partidos são partidos. Podem e devem se encontrar, porém sem se diluírem entre si. 

Como se sabe, amplíssima e diversificada é a coalizão que governa, com o contraponto sublinhado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin quando do anúncio da chapa no início campanha presidencial: o caráter da aliança é essencialmente político, resguardadas as diferenças na abordagem da economia.

Por esse crivo, óbvio que há e sempre houve discrepâncias no interior do governo de tal magnitude que reclamam postura ativa de todos os atores envolvidos.

Qual a perspectiva?

Impõe-se tanto a necessidade de realização da plataforma eleitoral com a qual o presidente da República se elegeu – apresentada pela Federação Brasil da Esperança -, como encarar as complexas contradições do mundo atual e como repercutem sobre o país.

Neste aspecto, no caso particular do PCdoB cabe lugar próprio na coalizão – detentor que é de concepção programática diferenciada que, no tempo presente, significa a luta por um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento como meio de acúmulo de forças no rumo do socialismo; como aos demais partidos – o PT inclusive – no debate para além da agenda governista imediata.

Ora, impossível é compactar suficientemente forças avançadas à margem do debate estratégico. E na atualidade, mais ainda, sob pena de não mobilizar os trabalhadores e as demais camadas populares.

Ambiente minado

Persistente é a afirmação (insuficiente) de que parte das fragilidades do atual governo Lula está na comunicação ineficiente. E se sugere como meio de superação melhorar a propaganda institucional e o bom uso das redes sociais.

Pode ser, mas não só nem principalmente.

É preciso ter em conta a realidade objetiva sobre a qual evolui a subjetividade da classe operária e das massas do povo.

A dispersão na produção de bens e serviços tem dificultado a tomada de consciência de classe pelos trabalhadores. A partir mesmo da fragmentação do trabalho, seja pelo trabalho remoto, seja pela terceirização e pela subcontratação, seja ainda pela vivência de divisões entre os trabalhadores que conspiram contra laços de solidariedade.

Demais, o enfraquecimento dos sindicatos e demais organizações populares concorre para o baixo nível de mobilização, que persiste. E reclama novas formas de abordagem e de organização, considerando não apenas as “linhas de produção”, mas igualmente os territórios comuns a produtores de bens e serviços, trabalhadores informais, juventude estudantil, etc.

E avançar no bom uso da comunicação digital.

Em outras palavras, sem desprezar a experiência acumulada, encarar novas formas de debate, de organização e de luta.

Papéis distintos

Nessas circunstâncias, consiste em tremendo atraso a quase ausência de pronunciamento dos partidos que compõem a coalização governista, situados à esquerda.

Partidos devem ser atores ativos, mesmo que em determinadas circunstâncias, ao expressarem opinião própria, se diferenciem do governo que integram.

Em torno da macropolítica econômica na essência submetida aos ditames neoliberais, por exemplo.

Da parte do PCdoB, a chave para a exata compreensão da relação entre unidade e diferenciação, amplitude e independência, está precisamente na orientação tática formulada desde a 6ª. Conferência Nacional, realizada em 1966, aos dias que correm.

Quando da realização da 9ª. Conferência Nacional, em meados de 2002, início do primeiro governo Lula, se estabeleceu conduta tática “propositiva e ao mesmo tempo crítica”, fórmula adotada precisamente para assinalar a inexistência de contradição antagônica entre estar no governo e expressar opinião própria quando necessária no debate em torno de questões complexas e contraditórias.

Os sucessivos Congressos partidários têm reafirmado essa postura proativa.

Nó górdio a desatar

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva segue sob cerco cuja essência está na política macroeconômica, expressão precisa das determinações de cunho neoliberal dominantes.

Um dos principais entraves ao governo, condicionando-o às restrições fiscais, à política monetária, à dependência da exportação de commodities.

Para desatar esse nó, ao governo cabe mais ousadia – inclusive valendo-se de oportunidades novas em meio à desorganização comercial no mundo, decorrente da política tarifária dos EUA - e aos partidos voz ativa no debate público. Já.

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Leia: A militância nossa de cada época https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/minha-opiniao_29.html