Sérgio
Moro quer mudanças que aumentam a violência policial
Rafael Moro Martins, The Intercept
Em novembro, quando se colocou diante de um batalhão de
jornalistas para uma entrevista coletiva, o ainda juiz Sergio Moro – que
havia então acabado de aceitar ser ministro de Jair Bolsonaro – deixou
claro: “Ele [Bolsonaro] dá a última palavra. Sou uma pessoa disposta a ouvir e
eventualmente mudar meus posicionamentos. Tenho bem presente que há uma relação
de subordinação.”
Foi difícil não lembrar daquelas palavras
hoje, quando o Ministério da Justiça e Segurança Pública, comandado por Moro,
colocou no ar um documento
curiosamente intitulado “Memórias de Curitiba“ que o ex-juiz
apresentara havia instantes a governadores como um “projeto de lei anticrime”.
Moro, que chegou a ser visto como uma
garantia de moderação do governo Bolsonaro, aparentemente não conseguiu
– ou sequer achou necessário – se opor ao radicalismo de extrema
direita do presidente. Seu “projeto anticrime” saiu às feições do que deseja o
ex-militar e cria condições para que tenhamos uma polícia (ainda) mais
violenta e impune.
Para começar, o texto elaborado pelo ex-juiz mexe no
artigo 23 do Código
Penal, que trata das exclusões de ilicitude – isto é, as
condições em que uma pessoa não é punida mesmo cometendo um crime.
O artigo frisa que eventuais excessos na
legítima defesa serão punidos. É aí que entra a caneta de Moro, que quer
acrescentar o seguinte parágrafo: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou
deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou
violenta emoção”.
Na prática, todo esse palavrório aumenta as
chances de qualquer pessoa – inclusive, obviamente, policiais
– escapar de punição ao reagir com violência desmedida a crimes. Trata-se
de um desejo
antigo e conhecido de Bolsonaro.
Outros pontos do pacote legislativo do
ex-juiz vão no mesmo caminho. Moro deseja que passe a ser tratado como caso de
legítima defesa o “[d]o agente policial ou de segurança pública que, em
conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e
iminente agressão a direito seu ou de outrem.”
Por fim, o projeto de Moro altera o Código
de Processo Penal para vedar a prisão de quem comete ato criminoso numa situação
de exclusão de ilicitude. Novamente, a regra também valeria para policiais.
Numa entrevista coletiva que concedeu nesta segunda-feira,
em Brasília, logo após a reunião com os governadores, Moro tentou afastar a
ideia de que esteja distribuindo licenças para policiais matarem suspeitos.
“Não existe nenhuma licença para matar. Quem afirma isso está equivocado, não
leu o projeto”, afirmou.
O sociólogo Pedro Bodê, coordenador do Centro de Estudos
em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná, leu
o trecho do projeto que mexe na exclusão de ilicitude a meu pedido. E se disse
estarrecido com o que viu.
“Como definir o que é ‘escusável medo,
surpresa ou violenta emoção’? É muito subjetivo. É claro que um policial sob
fogo de fuzil está em uma situação extremamente desvantajosa. Mas também é
claro que isso será invocado a toda hora quando houver denúncias de excessos. A
defesa dos policiais
da Vila 29 de Março, por exemplo, poderia alegar que eles estavam
sob violenta emoção por causa da morte do colega e agiram em função dela, por
exemplo”, ele criticou.
“É como se [o projeto de lei] oferecesse uma
compensação para as péssimas condições de trabalho do policial, alterando a
legislação para criar condições de que o agente possa ter uma atitude mais
violenta, letal. E já falamos de uma das polícias mais letais do mundo”,
lembrou Bodê.
Logo após o anúncio das medidas de Moro, a
Ordem dos Advogados do Brasil montou um grupo de trabalho para estudar o
projeto de lei, que será coordenado pelo advogado criminalista Juliano Breda,
que já se confrontou com o ex-juiz em processos da operação Lava Jato.
O grupo ainda dá os primeiros passos de um trabalho
previsto para terminar em 30 dias. Mas um integrante, que pediu para ficar
anônimo para não atropelar os colegas, me disse que, da forma como foi
redigido, o projeto de Moro é um convite ao aumento da letalidade policial e
uma promessa de impunidade para casos de abuso de poder.
“O texto contém propostas que a OAB já considerou
inconstitucionais”, disse Breda, citando o cumprimento de penas após condenação
em segunda instância e a instalação de escutas para monitorar conversas entre
detentos e seus advogados. “E também sugere que haverá aumento no
encarceramento em massa. O Supremo
Tribunal Federal já disse considerar que nosso sistema
carcerário vive um estado de coisas inconstitucional, com violações aos
direitos humanos e individuais dos cidadãos presos.”
O grupo de trabalho deverá produzir um
documento com o qual a OAB espera pautar o debate público a respeito do
projeto.
Na sua primeira entrevista coletiva em
novembro, o ainda juiz Sergio Moro disse não ver o bangue-bangue como forma bem
sucedida de combate ao crime – ao contrário do que acredita seu chefe. “O
confronto tem de ser evitado. A interferência policial é bem-sucedida quando
ninguém morre, quando o criminoso vai preso e policial volta para casa seguro.
Temos estatísticas terríveis de assassinatos de policiais absolutamente
intoleráveis. O confronto até pode acontecer, mas é sempre indesejável.”
Perguntei, à assessoria de Moro, o que mudou
de lá para cá na visão dele a respeito do assunto. E, também, como e a quem
caberá definir o que é “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Se
vierem, as respostas serão acrescidas a este texto.
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