29 abril 2024

Espionagem ilegal

Exército comprou maleta espiã que intercepta ligações e liga microfone de celular, mostra depoimento

Governo Bolsonaro monitorou jornalistas, políticos e até ministros do Supremo Tribunal Federal
Cézar Feitoza e Thaísa Oliveira/ICL Notícias

 

O Exército comprou uma maleta espiã que permite interceptar ligações, ativar remotamente o microfone de celulares e bloquear comunicações sem a necessidade de autorização judicial para executar as tarefas.

O sistema de inteligência é chamado de GI2 e é vendido pela Verint (atualmente conhecida como Cognyte) como um complemento ao FirstMile -software espião cujo uso ilegal por integrantes da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) é investigado pela Polícia Federal.

Segundo documentos da Verint repassados por um ex-funcionário da empresa à Folha de S.Paulo, a venda casada dos produtos é sugerida a clientes pelo menos desde 2013.

Na época, a empresa usava no lugar do FirstMile outro produto, chamado SkyLock, que possui o mesmo princípio do sistema investigado pela PF – obter acesso à localização aproximada de celulares por meio de brechas nos serviços de telecomunicações.

“Um exemplo disso (uso combinado dos sistemas) é utilizar o SkyLock em conjunto com o ENGAGE GI2 para primeiro identificar a localização de uma célula alvo e, em seguida, usar o GI2 da Verint para identificar a localização precisa desse alvo”, diz trecho do material de divulgação do produto.

O GI2 foi comprado pelo Exército durante a intervenção federal no Rio de Janeiro, no final de 2018, que era comandada pelo general Walter Braga Netto. A informação foi relatada pelo vendedor da Verint Caio Santos Cruz, em depoimento à Polícia Federal obtido pela Folha.

Santos Cruz disse ainda que o Exército comprou, no mesmo pacote, os sistemas FirstMile, WebAlert e FaceDetect ao custo de cerca de US$ 10,8 milhões (R$ 56 milhões na cotação atual).

Sem explicação do Exército

O Exército afirmou, em nota, que a legislação brasileira a impede de comentar assuntos de inteligência. Procurada, a Abin disse que a informação é sigilosa para “preservar capacidades operacionais”.

Em portfólio apresentado a clientes, a Verint detalha as funcionalidades do GI2. Entre elas, estão “localizar com precisão o alvo usando um dispositivo dedicado de busca sem desativar a capacidade de comunicação do alvo” e “extrair as coordenadas GPS do telefone móvel do alvo em redes GSM e UMTS”.

Outras utilidades do equipamento são “ouvir, ler, editar e redirecionar chamadas e mensagens de texto de entrada e saída”, “ativar remotamente o microfone de um telefone móvel”, “identificar a presença de telefones móveis alvo” e “bloquear comunicações celulares para neutralizar IEDs (Dispositivos Explosivos Improvisados, em inglês)”.

A maleta espiã possui um sistema intricado. Na prática, quando o GI2 é acionado, ele passa a funcionar como uma antena de telecomunicação, e todos os celulares em um raio próximo de 1 km se conectam a ela.

Dessa forma, o operador do GI2 consegue aplicar suas funções contra todos os celulares próximos à região em que se encontra.

Uma função do sistema, porém, permite que o operador da maleta espiã selecione um celular-alvo –e, assim, todos os demais telefones voltam a se conectar com a antena mais próxima.
 

Após definir o celular-alvo, a maleta consegue extrair os dados e acessar remotamente somente os dados do telefone monitorado, permitindo ao operador ouvir ligações e ativar o microfone do aparelho.

O Parlamento Europeu concluiu em 2023 uma investigação sobre a utilização de softwares espiões entre os países-membros da União Europeia. Parte do documento é destinado a relatar as negociações e suspeitas envolvendo as empresas Verint e Cognyte.

O relatório final do inquérito destaca que a empresa vendeu produtos espiões para governos repressivos, como Mianmar, Azerbaijão, Indonésia e Sudão do Sul. “Neste último caso, o Serviço de Segurança Nacional do Sudão do Sul utilizou equipamento de interceptação da Verint contra ativistas dos direitos humanos e jornalistas entre março de 2015 e fevereiro de 2017.”

O documento ainda diz que a tecnologia GI2, da Verint, foi enviada a uma filial da empresa na Polônia para “fins de demonstração”. “A tecnologia GI2 permite acessar um determinado dispositivo e fazer-se passar pelo proprietário e enviar mensagens falsas através desse dispositivo”, completa.

A reportagem procurou a Verint por ligações, emails e mensagens a funcionários da empresa, mas não teve resposta.

Como funciona a integração de FirstMile e GI2

A Verint Systems é uma empresa israelense que fornece mundialmente serviços e soluções de inteligência para governos e agências. Em 2021, o grupo decidiu desmembrar seu setor de inteligência para a Cognyte Software, que manteve os contratos firmados pela antecessora com diversos órgãos governamentais brasileiros.

Em documentos enviados aos seus clientes, a Verint oferecia a venda dos sistemas SkyLock (antecessor do FirstMile e que fornece o mesmo serviço) e GI2 em conjunto. Na prática, as funcionalidades dos dois produtos são complementares.

O FirstMile utiliza uma brecha no protocolo internacional das telecomunicações, chamado de SS7 (Sistema de Sinalização nº7), para obter acesso da localização aproximada de celulares.

O protocolo funciona da seguinte maneira: quando alguém liga para o celular de outra pessoa, a rede de telefonia precisa localizar em qual antena de celular cada um dos interlocutores está conectado.

A operadora da pessoa que faz a chamada solicita à operadora de quem recebe a ligação a localização da antena. O protocolo é quase instantâneo, e a conexão entre os dois celulares é estabelecida.

Empresas de inteligência encontraram uma brecha nesse protocolo internacional ao descobrir que nenhuma operadora bloqueava os pedidos de localização -já que são muitas as solicitações feitas a todo momento.

Esses grupos viram que seria possível criar empresas de telecomunicação de fachada para solicitar às operadoras reais a localização de celulares.

O FirstMile foi criado nesse contexto. O operador do sistema consegue incluir o telefone de qualquer pessoa na plataforma e, assim, pode realizar o monitoramento em tempo real do celular.

Toda vez que o telefone entra em contato com a antena de telecomunicação ao receber ligação, SMS, ou atualizar serviço, um registro da localização do celular é feito no sistema do FirstMile.

Segundo relatos de pessoas que conhecem o funcionamento do sistema, é possível ainda realizar outros tipos de consulta, como solicitar os números de telefone conectados a uma determinada antena ou estabelecer critérios para receber notificações sempre que algum celular passar por um local predefinido.

O GI2 se torna útil neste momento. Com a localização da pessoa monitorada, obtida pelo FirstMile, o investigador pode se locomover para perto da região e usar a maleta espiã para escutar as ligações feitas pelo alvo ou mesmo ligar o microfone do aparelho sem deixar rastros.

O produto ainda consegue dar a “localização exata do suspeito para detenção, tornando praticamente impossível para os alvos escaparem, não importa o local em que estejam no mundo” -segundo documento da Verint que sugere a venda conjunta dos sistemas.

O Tribunal de Contas da União (TCU) está investigando o contrato do Exército com a empresa que ofereceu a ferramenta israelense usada pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), no governo de Jair Bolsonaro (PL), para monitorar jornalistas, políticos e até ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Firmado com dispensa de licitação, o acordo se deu por meio do escritório de Washington — um mecanismo de compras que é alvo de apuração, segundo o Estadão. A Marinha também tem contratos com a empresa.

Leia: De que dispersão estamos falando? https://bit.ly/3TKqvu7

Humor de resistência: Renato

 

Renato

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Qual a necessidade de Lula se pronunciar a favor da cassação do senador Sérgio Moro? Nenhuma. 

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EUA: protestos, repressão & resistência

Como ação policial em universidade fez protestos contra guerra em Gaza se espalharem nos EUA

Bernd Debusmann Jr. e Emma Vardy/BBC

 

Na madrugada de uma quarta-feira, 17 de abril, um pequeno grupo de estudantes armou suas barracas na Universidade de Columbia, localizada em Nova York, nos Estados Unidos.

Eles protestavam contra a ação militar israelense em Gaza e apelavam à universidade para parar de fazer negócios com empresas que consideram apoiar a guerra.

A manifestação acontecia enquanto Minouche Shafik, presidente de Columbia, se dirigia ao Capitólio para enfrentar questionamentos do Congresso americano sobre antissemitismo no campus da universidade e como ela está enfrentando a questão.

Em quase quatro horas de interrogatório naquela quarta-feira, Shafik defendeu ações que já estava em andamento. Os estudantes, disse ela, estavam "recebendo a mensagem de que violações de nossas políticas terão consequências".

Na tarde seguinte, a presidente de Columbia tomou uma decisão que desencadearia um alastramento dos protestos em faculdades dos Estados Unidos.

Os estudantes no acampamento de protesto estavam invadindo o local, recusavam-se a sair e estavam criando um "ambiente de assédio e intimidação" para muitos dos seus colegas, disse ela.

Ela estava chamando o Departamento de Polícia de Nova York.

Pouco depois, agentes do maior departamento de polícia dos EUA, usando equipamento antimotim e empunhando algemas de plástico, prenderam mais de 100 estudantes.

Foi a primeira vez que foram feitas detenções em massa no campus de Columbia desde os protestos contra a Guerra do Vietnã, há mais de 50 anos. 

"Foi um choque para todos nós", diz Rashida Mustafa, estudante de doutorado em Columbia. "Eu não acreditava. Mas parecia um chamado à ação."

A indignação entre os estudantes foi imediata. No dia seguinte, outro acampamento de protesto foi estabelecido num gramado diferente, a poucos metros de distância.

Era muito maior do que antes, tendo aumentado de um pequeno número de barracas para um acampamento lotado, com refeições em estilo buffet com alimentos doados, apresentações musicais ao vivo e uma "equipe de segurança" no portão vigiando infiltrados.

Um dia depois, outro acampamento de protesto foi montado a pouco mais de 112 km a nordeste de Columbia, na Universidade de Yale, em Connecticut, outra instituição de elite.

Em meados desta semana, as manifestações aconteciam em dezenas de campi em todo o país e se estenderam até o fim de semana: a polícia dos EUA disse no sábado que havia encerrado outro protesto na Northeastern University, em Boston, prendendo cerca de 100 pessoas.

Os estudantes de Columbia desencadearam um movimento nacional.

A raiva dos jovens com relação à forma como Israel está travando sua guerra contra o Hamas levantou questões delicadas para os gestores universitários, que enfrentam debates acalorados nos campi acerca do que está acontecendo no Oriente Médio.

Como equilibrar o direito ao protesto e à liberdade de expressão com a necessidade de proteger outros estudantes de danos e abusos?

Quando enviar a polícia para fazer cumprir as políticas universitárias, sabendo que as respostas pesadas serão filmadas e aparecerão instantaneamente em milhões de feeds de redes sociais? 

'Estávamos protestando pacificamente'

Em Yale, a polícia chegou a um acampamento de protesto no centro do campus nas primeiras horas de 22 de abril, quando muitos estudantes ainda dormiam.

Quase 50 estudantes foram presos após se recusarem a sair, com alguns formando uma corrente humana de braços dados, em torno de um mastro de bandeira.

"Eles vieram muito rapidamente e sem aviso prévio. Multidões de policiais invadiram a praça", diz Chisato Kimura, estudante de direito, à BBC de New Haven.

"Ver uma força militarizada, convidada por Yale para entrar no campus, foi muito chocante", acrescentou ela. "Estávamos protestando pacificamente."

Os campus universitários dos EUA têm sido um foco de protestos contra a guerra em Gaza desde que o Hamas atacou Israel em 7 de outubro, matando cerca de 1.200 pessoas – a maioria civis – e levando outras 253 para Gaza como reféns.

Desde então, mais de 34 mil pessoas, a maioria mulheres e crianças, foram mortas em Gaza, segundo o Ministério da Saúde administrado pelo Hamas. 

Mas, nos últimos dez dias, o país tem testemunhado os protestos mais intensos e generalizados nos EUA em seis meses.

As tensões aumentaram depois que o primeiro acampamento de Columbia foi evacuado – confrontos e prisões seguiram-se em outros lugares.

Na Universidade do Texas, em Austin, soldados estaduais – alguns a cavalo – detiveram centenas de estudantes que ocupavam um gramado universitário na quarta-feira.

Na Emory University, em Atlanta, uma professora foi derrubada por um policial e um vídeo dela sendo contida e algemada se tornou viral na quinta-feira. 

A polícia também realizou operação contra manifestantes no Emerson College em Boston, na Universidade George Washington em Washington D.C., na Universidade de Nova York e na Universidade do Sul da Califórnia (USC).

Desconforto entre estudantes judeus

Os acampamentos de protesto reivindicam aos administradores universitários que retirem dos fundos universitários recursos de empresas que consideram ligadas à guerra de Israel em Gaza, que cortem laços com instituições acadêmicas israelenses e apelam formalmente por um cessar-fogo.

Alguns estudantes e professores judeus dizem temer por sua segurança. E estas preocupações são parte do que levou os responsáveis pelas universidades, incluindo Shafik, a chamar a polícia.

"Os estudantes têm o direito de protestar", diz Page Fortna, professora de ciência política em Columbia. "Mas eles não têm o direito de protestar de uma forma que faça com que outros estudantes se sintam discriminados ou assediados."

Em entrevistas nesta semana, estudantes judeus em vários campi falaram de incidentes que os fizeram se sentir desconfortáveis, desde palavras de ordem e cartazes de apoio ao Hamas, até altercações físicas e supostas ameaças.

Eli Kia, um estudante judeu de 22 anos da USC, diz que os protestos deixam-no com uma sensação constante de desconforto e medo. Ele começou a esconder uma estrela de David que usa numa corrente.

"É um desafio sentir-se seguro indo para a faculdade todos os dias", diz ele.

"Há aquele pensamento quando você entra no campus: 'O que vou encontrar?' e 'O que terei de enfrentar?', e 'Quem pode vir atrás de mim?'"

As autoridades da Northeastern University disseram que alguns dos manifestantes usaram slogans antissemitas, razão pela qual decidiram agir no sábado.

A universidade afirma que a manifestação começou como protestos estudantis, mas que pessoas de fora também aderiram. 

Muitos manifestantes procuraram distanciar-se dos incidentes antissemitas e, em alguns casos, culpam agitadores externos.

Dizem que muitos estudantes judeus aderiram aos protestos e que o foco deveria estar no número de mortes de civis em Gaza.

Repressão policial

À medida que as negociações entre instituições e estudantes avançam, muitos manifestantes – e seus apoiadores externos – estão convencidos de que o que consideram táticas policiais opressivas ajudarão a manter o movimento em atividade.

"Este é um movimento que começou com apenas 70 estudantes", disse à BBC a deputada pelo Estado de Minnesota, Ilhan Omar, enquanto visitava o acampamento de Columbia esta semana.

Muçulmana e democrata, ela é uma crítica feroz da política do governo Biden com relação a Gaza.

"Porque a Universidade de Columbia decidiu reprimi-los e violar sua primeira emenda [artigo da Constituição americana que protege a liberdade de expressão], isto agora se espalhou nacional e internacionalmente."

A filha dela foi uma das manifestantes de Columbia presas.

Omar Zegar, um manifestante da USC, diz acreditar que Columbia foi apenas o começo de um movimento mais amplo.

"Acho que muitas universidades em todo o país começarão a fazer esses acampamentos", diz ele. "A polícia escalou a situação."

Para alguns observadores, os protestos remontam à década de 1960 e às manifestações contra o envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnã.

Marianne Hirsch, uma professora de Columbia que participou nos protestos da década de 1960, disse a jornalistas esta semana que – tal como aconteceu com a Guerra do Vietnã – a situação em Gaza deveria tornar "impossível continuar os negócios como de costume". 

A onda de protestos também contribui para um momento politicamente tenso para o presidente Joe Biden, que tem sido criticado por alguns pelo apoio de seu país a Israel, enquanto faz campanha pela reeleição.

Alguns democratas temem que milhares de manifestantes invadam a convenção nacional deste verão em Chicago, quando o partido nomeará Biden formalmente como seu candidato presidencial.

A convenção de 1968, também em Chicago, foi ofuscada pelas manifestações contra a Guerra do Vietnã.

Ahmad Hasan, um graduando da USC que participou de comícios esta semana, diz acreditar que os protestos estudantis podem ter um impacto mais amplo nas atitudes dos EUA.

"Sempre coube aos estudantes dizer às pessoas que algo não está certo", diz ele. "Que não toleraremos isso."

Leia:

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Universalizar o Samu até 2026, promete a ministra Nísia Trindade. Ótimo! E é bom saber que o SAMU foi criado no Recife pelo então secretário de Saúde hoje senador Humberto Costa que, adiante, como ministro no primeiro governo Lula, o tornou política nacional. 

Para onde correm as águas https://bit.ly/3Ye45TD

China: Iniciativa Cinturão e Rota

A Iniciativa Cinturão e Rota proposta pela China constrói pontes, não muros

Yin Yeping/Global Times


Nota do Editor:

O Azerbaijão foi um dos primeiros e mais activos respondentes e participantes da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), proposta pela China, tendo-se envolvido activamente numa vasta gama de investimentos e projectos. Como as relações bilaterais entre a China e o Azerbaijão atingiram um nível sem precedentes, os avanços na indústria de veículos de nova energia (NEV) e no sector dos comboios de carga China-Europa são vistos como dois destaques principais na cooperação bilateral. Numa recente entrevista exclusiva com o repórter Yin Yeping do Global Times (GT), o Embaixador do Azerbaijão na China, Bunyad Huseynov (Huseynov), transmitiu as suas aspirações de aprofundar os laços com a China no âmbito da cooperação da BRI para benefícios mútuos.


GT: O Azerbaijão é um dos primeiros países a responder e a participar ativamente na construção conjunta da BRI proposta pela China. Como você comenta a importância que a adesão à BRI trouxe para o seu país? Quais são as suas expectativas para o fortalecimento da cooperação no âmbito da iniciativa?

Huseynov: A antiga Rota da Seda já conectou o Azerbaijão e a China. O Azerbaijão é um dos primeiros países a apoiar a Iniciativa Cinturão e Rota proposta pela China e participou em numerosos investimentos e projectos relacionados. Actualmente, as autoridades governamentais relevantes do Azerbaijão chegaram a um acordo com a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da China, sobre a assinatura de um roteiro para a construção conjunta do Cinturão e Rota. O acordo abrange vários campos cooperativos, incluindo comércio, investimento, transporte, tecnologia e finanças.

A importância da BRI vai além da economia e do comércio; serve como plataforma de intercâmbio entre diferentes países e civilizações. Desde a sua proposta, a iniciativa tem promovido ativamente a cooperação entre países e facilitado a colaboração regional.

Na minha opinião, o valor desta iniciativa de cooperação global reside em "construir pontes em vez de muros", demonstrando o espírito de cooperação e abertura necessários para o actual desenvolvimento global. O Azerbaijão espera aprofundar a cooperação multifacetada com a China em áreas como a economia, o comércio, o investimento, a energia verde, a cooperação inter-regional, o intercâmbio cultural, o turismo e as alterações climáticas.

GT: A China possui vantagens industriais que abrangem produtos como NEVs. Ao mesmo tempo, o Azerbaijão promove ativamente a transformação verde. Como vê o potencial de cooperação entre os dois países neste domínio?

Huseynov: As conquistas notáveis ​​da China no campo das novas energias são bem conhecidas. Em Novembro deste ano, o Azerbaijão acolherá a 29ª sessão da Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP29) em Baku, capital do Azerbaijão.

Recentemente, o Ministro da Ecologia e Recursos Naturais do Azerbaijão e presidente designado da COP29, Mukhtar Babayev, visitou a China juntamente com a sua delegação. Esta foi a primeira viagem ao exterior da nossa equipe da COP, com o objetivo de compreender as expectativas da China antes da conferência. Acredito que ambos os países partilham um elevado grau de consenso sobre a agenda verde.

A China é líder em energia eólica, energia solar e veículos eléctricos e está disposta a partilhar as suas conquistas com outros países, demonstrando a atitude de cooperação aberta e vantajosa da China.

No Azerbaijão, as empresas chinesas estão envolvidas na transição para a energia verde como investidores, construtores e operadores. Recentemente, o Azerbaijão iniciou um processo de licitação para construir uma fábrica de NEV. A BYD venceu a licitação e assinou um acordo para estabelecer uma joint venture e estabelecer uma linha de produção de ônibus elétricos no Azerbaijão.

Além disso, planeamos substituir gradualmente os autocarros movidos a combustível na capital Baku por autocarros eléctricos.

Ao mesmo tempo, também estamos em comunicação com a Contemporary Amperex Technology - empresa chinesa de baterias de íons de lítio - sobre a construção de projetos de produção de armazenamento de energia no Azerbaijão.

A Embaixada do Azerbaijão na China também está a promover activamente a transformação verde e a reforçar a cooperação com a China neste domínio, incluindo a substituição dos veículos a combustível da embaixada por NEVs da BYD.

Além disso, as empresas chinesas estão ativamente envolvidas no investimento e na construção de centrais fotovoltaicas no Azerbaijão.

Agradecemos imensamente que a China partilhe a sua experiência de desenvolvimento e conquistas no domínio das novas energias com outros países, incluindo o Azerbaijão.

Além do domínio das novas energias, o potencial de cooperação entre os dois países é enorme em vários domínios. O Azerbaijão está totalmente pronto para desenvolver relações económicas e comerciais com a China sem estabelecer quaisquer limites máximos ou limites em termos de âmbito, com cooperação em múltiplas áreas, incluindo comércio, tecnologia, digitalização, agricultura e logística.

GT: Qual é a sua perspectiva em relação ao recente discurso ocidental sobre a falácia da “excesso de capacidade” da China em novas energias?

Huseynov: A China não só produz produtos de alta qualidade e acessíveis, mas também está disposta a partilhar estas conquistas com o mundo. Durante a pandemia da COVID-19, a China partilhou generosamente a sua vacina e outros importantes produtos antipandémicos, ajudando muitos países a superar as dificuldades.

Agora, o mundo encontra-se num momento crucial na transição para a energia verde e as empresas chinesas estão a colaborar com outros países com uma atitude aberta para ajudá-los a alcançar esta transformação energética. Esta iniciativa é digna de elogios. Independentemente da forma como certos meios de comunicação social possam percebê-lo, aprecio muito a atitude aberta e cooperativa da China.

GT: Como você avalia os avanços da cooperação entre os dois países no que diz respeito aos trens de carga China-Europa? Existem novos planos para fortalecer a capacidade e a rede de transporte dos trens de carga China-Europa?

Huseynov: Devido aos conflitos geopolíticos em curso em todo o mundo, a importância do corredor de transporte internacional transcaspiano, também conhecido como Corredor Médio, está a aumentar. O Corredor Médio é hoje considerado uma das rotas de transporte ferroviário transfronteiriço mais seguras e eficientes. À medida que o governo chinês avança no processo de promoção da construção conjunta de alta qualidade da BRI, a promoção do Corredor Médio tornou-se uma das medidas significativas da agenda. Actualmente, vários países regionais, incluindo o Cazaquistão, o Turquemenistão, o Uzbequistão, a Geórgia, a Turquia e o Azerbaijão, estão em discussões sobre como melhorar a eficiência do transporte ferroviário regional.

Em Novembro de 2023, durante a minha visita a Xi'an, fiquei profundamente impressionado com a escala e o nível do porto ferroviário local. Durante a visita, também mantive discussões com autoridades chinesas sobre a melhoria da eficiência do transporte no Corredor Médio.

A partir deste ano, o comboio de mercadorias China-Europa (Xi'an-Baku) aumentou a frequência dos comboios através do Corredor Médio. Esta linha ferroviária começa em Xi'an, passa pelo Corredor Internacional de Transporte Transcaspiano e chega ao porto de Baku, no Azerbaijão, com todo o tempo de transporte demorando cerca de 11 dias. Este serviço ferroviário reduz significativamente os custos logísticos globais e melhora a eficiência do transporte inter-regional. Através do corredor de transporte ferroviário seguro, de baixo custo e eficiente, os bens produzidos na China podem ser transportados para a Europa, facilitando ao mesmo tempo a entrada de bens europeus no mercado chinês. Além disso, o papel do Azerbaijão como importante elo no centro de transporte ferroviário que liga o Oriente ao Ocidente é ainda mais destacado.

A água que nos tiram

Uso da água pela atividade pecuária no Brasil

O questionamento do nosso sistema alimentar e a necessidade de reduzir o consumo de alimentos de origem animal é um assunto cada dia mais presente
Cecilia Faveri de Oliveira e Ricardo de Sousa Moretti/Le Monde Diplomatique

Entre os eventos extremos previstos no novo regime climático, merecem destaque o agravamento das secas e as variações do regime de chuvas, que podem ter impacto significativo na produção de alimentos. Cresce a importância da água e a disputa por seu uso. Neste contexto de aumento da insegurança hídrica vale analisar o impacto que tem a pecuária no uso desse bem comum que deve se tornar cada vez mais escasso.

A Organização das Nações Unidas (ONU) concluiu que 72% da água fresca doce retirada do planeta é destinada à irrigação. Quando se trata de pegada hídrica – um indicador ainda mais detalhado, que inclui a água verde e cinza, além da água azul –, a atividade agropecuária atinge 92% do total mundial. A classificação da água em azul, verde e cinza consiste em determinar se a água doce, vem, respectivamente, de reservatórios naturais, da chuva ou é usada para diluir efluent es de qualquer atividade humana. 

Como também demonstram alguns números, é importante examinar a relação entre uso da água e a produção de alimentos de origem animal. Antes de 2010, já metade da produção mundial de grãos era destinada à alimentação de animais criados na atividade pecuária, sendo que 85% dessa quantidade era destinada à alimentação de gado em países industrializados.

Como bem coloca o pesquisador Arjen Y Hoekstra, a pegada hídrica dos animais (da pecuária) é, majoritariamente, contabilizada como sendo das colheitas da agricultura, já que são esses os produtos que alimentam os animais; quando o uso de água pela agricultura é calculado, não se diferenciam, em geral, as colheitas usadas para alimentar seres humanos e as usadas para alimentar o gado.

O jornal El País publicou uma matéria citando o maior estudo sobre o assunto publicado até 2019. Entre as conclusões do estudo, estavam os seguintes números: 83% das terras cultiváveis, no globo, são usadas para fornecer alimentos para animais da pecuária, embora esses alimentos fornecessem somente 18% das necessidades calóricas e 37% das proteicas, quando usados para alimentação de seres humanos.

Em relação à água, o estudo citava que a FAO (Food and Agriculture Organization), calculava, em 2019, a necessidade média de 15 mil litros de água para produzir cada quilo de carne bovina. A perda de biodiversidade devido à sua substituição por animais da pecuária é outra preocupação.

Assim, deixar de consumir ou diminuir o consumo de produtos de origem animal pode vir a ser uma necessidade no contexto do previsível agravamento das secas e crises hídricas e da dificuldade crescente de obtenção de água para produção de alimentos. Embora não necessariamente por esse motivo, parte da população brasileira já deixou de consumir qualquer tipo de carne, como mostra pesquisa realizada pelo Instituto Ibope: entre 2012 e 2018, o número de brasileiros que se declaram vegetarianos aumentou 75%, passando de 8,0% da população para 14%[1].

Haverá tensões com relação à redução do consumo de produtos de origem animal, considerando os grandes interesses econômicos envolvidos. Em 2023, o agronegócio gerou mais de US$ 153 bilhões para o Brasil, confirmando uma série de resultados em favor do país na balança comercial que vem crescendo, ao menos, desde o início da série histórica registrada pelo Agrostat, a base de dados de exportações do agronegócio brasileiro.

A exportação de carnes foi responsável por 14% desse total; a maior parte foi relativa aos produtos do complexo da soja, que, em parte, pode ter sido exportado como matéria prima de ração para animais da pecuária. A importância econômica não é apenas do grande produtor do agronegócio: em 2020, a pecuária familiar foi responsável por 70% da criação de caprinos, por 51% da criação de suí nos e 49% de galinhas, além de 31% de bovinos. 

No mundo, como dito acima, a agricultura foi o setor que mais utilizou água retirada (ou seja, água doce fresca oriunda de reservatórios naturais, como rios e aquíferos), totalizando 72%; outros 15% são divididos entre os setores de mineração, pedreiras, manufaturas, eletricidade e gás, suprimento de vapor e ar condicionado, e construção civil.

Contudo, as diferenças entre países podem ser muito relevantes. Características do processo de produção no local de origem das mercadorias são um dos determinantes da pegada hídrica de consumo de cada país[2], junto com quanto os consumidores daquele país consomem. Interfere na pegada hídrica a incidência de consumo de carne na alimentação: por exemplo, nos EUA, o consumo de carne bovina é 4,5 vezes maior do que a média mundial, sendo este o país com maior pegada hídrica de consumo do mundo. O Reino Unido, por outro lado, onde o consumo de carne bovina é menos do que a metade do estadunidense, é o país desenvolvido com menor pegada hídrica de consumo. Além da quantidade de carne consumida, as diferenças nas características de produção da carne bovina, nos dois países, é um dos motivos da diferença da porção da pegada hídrica gerada pelo consumo de produtos de origem animal, já que, nos EUA, a produção de carne bovina é feita com uso muito intensivo de água.

No Brasil, estima-se que cerca de 50% da água para uso setorial (ou seja, de acordo com o uso por setor da economia) é usada na irrigação agrícola[3], e 8,4% é usada diretamente na criação de animais, embora haja dados que apontam que esses valores cheguem a 66,1% e 11,6%, respectivamente.

As indústrias de produtos sucroenergéticos[4] e de papel e celulose são destacadas pela ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) na utilização de água, no Brasil, junto com o abate de animais e produtos alcoólicos; a soma de consumo de água pela indústria de transformação (categoria a que pertencem as mencionadas) totaliza 9% do total retirado, no Brasil.

Em termos de quantidade de proteínas produzidas no Brasil, 79% do total de proteínas produzidas aqui no país era usado para fabricar ração de animais, em 2018[5].

De acordo com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), o abastecimento animal28[6] (considerado um uso consuntivo da água, pois os recursos hídricos utilizados não retornam à bacia hídrica de origem, diretamente) demanda 171 m3/s de água de mananciais por segundo, no Brasil. Vale comparar com o total de água produzida para consumo humano na Região  Metropolitana de São Paulo, que é de 65 m3/s, nos oito grandes complexos de produção que abastecem mais de 20 milhões de pessoas. Além da dessedentação de animais, essa água também é usada para manejar e limpar o gado e instalações rurais, usos cujo consumo deve crescer 28,7% até 2030 (somando 220 m3/s, ou 6,9 trilhões de litros anuais).

Aqui no país, predomina a pecuária extensiva, totalizando 90% das atividades agropecuárias em território brasileiro, sendo usada, principalmente, para criação de gado de corte. É a “criação de animais em grandes áreas, a pasto, com fins de comercialização”, e é considerada uma atividade de baixo investimento. A pegada hídrica dos produtos de origem animal, no Brasil, é maior do que a média global e grande parte dessa diferença se deve ao elevado consumo de água verde, que tem como origem a chuva.

O estudo no qual se baseou uma matéria sobre o assunto no Nexo Jornal, que apresenta esses dados sobre a pegada hídrica, mostra que há grandes diferenças na pegada hídrica dependendo do país e do produto animal considerado. No caso da criação de aves, por exemplo, o uso de água azul é menor no Brasil do que nos EUA, mas o uso de água cinza é semelhante nos dois países, e maior na China e na Índia. Na criação de porcos, o uso de água azul é semelhante no Brasil, nos EUA e na Índia, mas menor na China. Já o uso de água cinza é menor no Brasil do que em todos esses países. Quando se trata da criação de bovinos, o uso de água azul é menor no Brasil do que nos EUA, e o uso de água cinza & eacute; ainda menor. Quando se considera o consumo de água para os diversos tipos de criação animal, constata-se que, no Brasil, a demanda de água para o rebanho bovino ainda é a maior.

GOVERNANÇA DA ÁGUA

No âmbito legal brasileiro, a decisão sobre o uso da água para produtos pecuários depende da emissão da licença ambiental para que o empreendimento possa funcionar, que é emitida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama, uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente) ou pelos respectivos órgãos estaduais; mas a concessão da licença está condicionada à outorga de uso da água:

“A Lei das Águas (Lei nº 9.433/1997) (Brasil, 1997), que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh), tem como um de seus instrumentos a outorga de direito de uso de recursos hídricos, instituindo a necessidade de autorização e cadastro dos usuários pela ANA  (corpos hídricos de domínio da União) ou pelos órgãos gestores de recursos hídricos dos estados e do Distrito Federal (demais corpos hídricos e águas subterrâneas)”.  A Lei de Licenciamento Ambiental exige a apresentação do documento de outorga do direito de recursos hídricos para que o empreendimento seja licenciado. A Resolução 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (de 19/12/1997) lista as atividades agropecuárias em seu Anexo I, de forma que o licenciamen to ambiental de empreendimentos desse tipo será sempre de competência estadual, sendo a outorga do uso de água de competência definida conforme o corpo hídrico a ser utilizado.

O órgão do Poder Público responsável pela emissão da outorga do direito do uso de recursos hídricos, para fazê-lo, deve examinar não somente se o balanço hídrico na atividade está correto, mas, também, se o balanço hídrico na bacia hidrográfica permite o desenvolvimento da atividade.

Outro instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos é a cobrança pelo uso desses recursos (inciso IV do artigo 5º da Lei 9.433/1997), utilizada tanto para  captação de recursos hídricos quanto para o lançamento de efluentes nas águas, que já foi implementado em sete Bacias Hidrográficas sob a jurisdição federal, e, de forma total, em sete Estados brasileiros (SP, MG, RJ, PA, GO, RN e SE). No Amapá e no Pará, as Leis que instituíram a cobrança tiveram sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal, e a Corte decidiu que estavam em desconformidade com a Carta brasileira em ambos os casos, embora não por terem instituído a cobrança em si.

Importa lembrar que a pecuária impacta a água não apenas na questão de seu uso, mas, também, possivelmente alterando seu ciclo, conforme estudo publicado na revista Nature, citado em matéria do jornal The Guardian. Estudos em larga escala sobre o tema ainda não haviam sido feitos, e a maioria dos já publicados era de estudos de caso. O artigo da Nature conclui que a derrubada de florestas tropicais afeta o ciclo hidrológico, diminuindo a precipitaçã o – efeito que aumenta, conforme aumenta a derrubada das florestas (a média calculada por eles é de uma diminuição de 0,1 a 0,25 mm por mês a cada 1% de cobertura florestal). Chambers e Artaxo, por exemplo, comentaram artigo sobre o assunto (que analisou os efeitos do desmatamento em Rondônia no regime de chuvas), concluindo que mudanças na superfície do solo (como desmatamento e extração de madeira) afetam o ciclo da umidade na Floresta Amazônica.

Só no Brasil, aproximadamente dois terços do aumento de uso de terras para a agropecuária, entre 1985 e 2022, decorreu do desmatamento de coberturas originais dos biomas para a criação de pastagens, totalizando cerca de 64 milhões de hectares a mais usados para pastagem, conforme noticia o site Um Só Planeta. Só na Amazônia, o uso do solo para pastagens passou de 13,7 milhões de hectares, em 1985, para 57,7 milhões de hectares, em 2022. Portanto, não se trata, so mente, de analisar a quantidade de água utilizada, mas, também, como outros aspectos da pecuária – no caso, o uso do solo –, impactam nos processos que possibilitam a reciclagem desse recurso na natureza. Por exemplo, modificações na cobertura original do solo na Amazônia têm efeitos na formação dos popularmente chamados “rios voadores” (a grande quantidade de água evaporada na região em virtude das altas temperaturas que chega à Região Centro-Oeste do país na forma de chuvas), como explica Eduardo Gerarque em matéria para o Jornal da Unesp.

Constatações como a do estudo publicado na revista Nature, e os citados na matéria do Jornal da Unesp, reforçam a importância da preservação da cobertura natural do solo e de um procedimento adequado de licenciamento ambiental. Decerto, muitos fatores determinam o impacto ambiental (inclusive, nos recursos hídricos) de um empreendimento pecuário: “por exemplo, uma fazenda com 1.500 ha no Amazonas está na faixa do porte grande, mas a forma pela qual os animais estão distribuídos por essa área irá determinar um potencial poluidor maior ou menor. Outra diferenciação bem-vinda é a separação em bovinos de corte e de leite. Por exemplo, na bovinocultura leiteira, a lavagem do piso e dos equipamentos da ordenha é realizada diariamente, no entanto esse manejo não ocorre na bovinocultura de corte. Por gerar esse efluente de fo rma diária, a produção de leite tem maior desafio ambiental, por isso é importante considerar essa diferenciação na classificação dos portes. Cabe destacar que a maioria dos estados considera que o sistema de pasto (também classificado como extensivo) tem impacto ambiental insignificante, razão pela qual só é exigida a declaração ambiental.”[7]

Mesmo considerando que, em 2035, a segurança hídrica será baixa apenas em partes da região Nordeste e partes do extremo Sul do país, a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) ainda calculou o aumento de risco econômico relacionado aos recursos hídricos para os setores. De fato, a ANA estimou um aumento no risco relacionado aos recursos hídricos para o setor agropecuário: calculado em R$29,86 bilhões, em 2017, esse risco deve passar para R$44,57 bilhões em 2035, caso não haja aumento na oferta de água.

Com relação à possibilidade de escassez hídrica, um relatório da ANA publicado em 2024 trouxe que uma das projeções indica a diminuição em até 40% na disponibilidade hídrica nas principais regiões hidrográficas do país, até 2040. Na Região Sul, a única que deve ter aumento de disponibilidade hídrica até aquele ano, crescem as probabilidades de eventos extremos relacionados à água, como secas e inundações, por conta da alteração nos ciclos hidrológicos.

EXPORTAÇÃO DE ÁGUA

Outro ponto importante é a questão da exportação da água, por causa da pegada hídrica dos produtos vendidos para fora do país. Toda a água utilizada na produção desses bens, assim como o eventual impacto dessa produção no ciclo da água, são um custo arcado pelo país de origem do produto (no caso, Brasil), de forma que é importante avaliar, pelo menos, se o custo ambiental desses produtos é compensado pela receita gerada por sua venda. O Brasil foi o segundo maior produtor mundial de carne bovina, em 2023, e o maior exportador do produto, no mesmo ano. O país ocupou as mesmas posições quando se trata da carne de frango.

A China foi o principal mercado consumidor da carne bovina produzida no Brasil, em 2023, enquanto os Estados Unidos foram o segundo. Se os óleos vegetais ainda são, mundialmente, os produtos que respondem pela maior parte da exportação de água, a magnitude da produção e da exportação brasileiras de carne bovina e outros produtos de origem animal impõe uma reflexão sobre a exportação de água brasileira na forma de venda desses produtos a outros países.

A FAO e a OCDE prevêem um aumento significativo no consumo mundial de carnes até 2030, sendo um dos fatores determinantes para isso o crescimento da renda média no mundo, ainda conforme as duas entidades. A estimativa do relatório formulado por elas é que o consumo mundial de proteínas advindas de carne tenha um aumento de 14% nos próximos dez anos, sendo que a carne de aves deve responder por 41% desse total de proteínas – carne suína, bovina e ovina responderão por 34%, por 20% e por 5%, respectivamente. Assim, as entidades concluem que a média do consumo mundial de carnes deve ser de 35,4 kg anuais por pessoa, em 2030.

Considerando-se o quadro de agravamento das crises hídricas e o fato de o Brasil estar entre os países que mais exportam carnes, é preocupante o cenário associado ao eventual crescimento da produção e da destruição de biomas originais para a atividade pecuária, na perspectiva de suprir o aumento da já elevada demanda atual. O questionamento do nosso sistema alimentar e a necessidade de reduzir o consumo de alimentos de origem animal é um assunto cada dia mais presente.

Cecilia Faveri de Oliveira é chef vegan e cozinheira, criadora e produtora de conteúdo da conta do Instagram @comer_bem_pode_ser_facil; tradutora de inglês para português. Ricardo de Sousa Moretti é professor visitante da Universidade de Brasília e integrante do ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento.

[1] O Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) já emitiu parecer decidindo que, tomadas determinadas providências, a dieta livre de produtos de origem animal é segura em qualquer fase da vida da pessoa, incluindo durante a gestação (Parecer nº 09, de 2022). 2022. parecer_tecnico_vegetarianismo.pdf (cfn.org.br)

[2] Mekonnen e Hoekstra escrevem que produtos de origem animal bovinos feitos pelo processo industrial (com exceção dos laticínios) geralmente, têm uma pegada hídrica menor do que a de produtos animais de pecuária extensiva (por unidade de produto), mas que os primeiros têm maior uso de água azul e de água cinza, ressaltando que os problemas relacionados à água costumam se dar, justamente, por conta da escassez de água azul ou pela poluição das águas, de forma que essa diferença nos tipos de água mais usados conforme o tipo de produção é altamente relevante, sendo importante, também, analisar a taxa de conversão de cada tipo de animal conforme seu tipo de alimentação. P. 06. 2010. The green, blue and grey water footprint of farm animals and animal products. Volume 1: Main Report (unl.edu)

[3] A agricultura irrigada vem se mostrando mais produtiva do que a agricultura de sequeiro; no Brasil, com relação ao arroz, feijão e trigo, e à soja e ao milho: “(…) a produção predominantemente irrigada apresentou, respectivamente, rendimentos 3,7, 2,0 e 1,9 vezes superiores à produção de sequeiro (média 2010-2019).“; “A soja e o milho tendem a apresentar rendimentos adicionais similares sob irrigação (2 a 3 vezes mais que o sequeiro).”. Atlas Irrigação – Uso da Água na Agricultura Irrigada. 2a ed. 2021. Brasília, DF.. P. 14, segunda coluna de texto, e P. 15, segunda coluna de texto, respectiv amente. Atlas Irrigação 2021: Uso da Água na Agricultura Irrigada (2ª edição) (snirh.gov.br)

[4] Também nesse aspecto, as diferenças regionais são relevantes, sendo o reúso de água predominante no cultivo da cana-de-açúcar no Estado de São Paulo.”Entre as regiões de irrigação plena e com déficit, apenas 5% da área cultivada de demanda 56,7% do volume de água para cana-de-açúcar, especificamente em Minas Gerais (31%), Goiás (17,8%), Alagoas (16,2%), Maranhão (12,8%) e Bahia (11,7%). Em contrapartida, o perfil menos hidrointensivo ocupa 95% da área irrigada e fertirrigada no Brasil, sendo que São Paulo lidera em fertirrigação com 68,5% do total.” Agrosaté lite conclui o levantamento da cana-de-açúcar irrigada no Brasil – MundoGEO

[5] De acordo com Mekonnen e Hoekstra os produtos animais, geralmente, têm uma pegada hídrica maior do que as colheitas, por tonelada de produto, o que também ocorre quando se trata proporção de pegada hídrica para caloria – no caso da carne bovina, a relação entre pegada hídrica e caloria é 20 vezes maior na carne bovina do que para cereais e raízes amiláceas; e a pegada hídrica por grama de proteína do leite, dos ovos e da carne de frango é 1,5 vez maior do que a de leguminosas, taxa que chega a 6 vezes quando se trata da comparação entre carne bovina e leguminosas. Apenas quando se trata de analisar a gordura, é encontrada uma pegada hídrica menor em produto de origem animal do que no similar vegetal. Os autores constataram que, no globo, a m édia da pegada hídrica da carne bovina é maior do que da carne de carneiro, de porco, bode e de frango (respectivamente, de 5400 m3 /ton, de 10400 m3 /ton, de 6000 m3 /ton, de 5500 m3 /ton, e de 4300 m3 /ton) . P. 05. 2010. The green, blue and grey water footprint of farm animals and animal products. Volume 1: Main Report (unl.edu)

[6]  O Manual de usos consuntivos da água no Brasil, publicado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) em 2019 utiliza um conceito mais ampliado de uso de água na pecuária: “O  conceito de dessedentação foi substituído pelo de abastecimento (ou uso) animal para incorporar o uso da água de forma mais ampla, como nas operações lácteas, de limpeza dos animais e das instalações e outras necessidades de manutenção de estruturas rurais. Esses usos adicionais são mais relevantes em rebanhos com tendência de concentração ou (semi)confinamento (galináceos, suínos e vacas ordenhadas).” (FONTENELLE, T. H. et al. Produção animal e usos consuntivos da água no Brasil. In: Produção animal e recursos hídricos: uso da água nas dimensões quantitativa e qualitativa e cenários regulatórios e de consumo. P. 19. 2021.

[7]  PALHARES, J. C. P. Licenciamento ambiental da produção animal no Brasil. In: Produção animal e recursos hídricos: uso da água nas dimensões quantitativa e qualitativa e cenários regulatórios e de consumo. P. 64. 2021.

Leia também: Unidade e luta sempre https://bit.ly/3PSfmGx

UJS, 40 anos

Uniāo da Juventude Socialista celebra 40 anos com Congresso em julho, em São Paulo

O congresso pretende reunir 2.500 jovens de todo o Brasil entre 25 e 28 de julho, sob o tema Defender a Alegria e Organizar a Rebeldia
Cezar Xavier/Vermelho



No ano em que comemora quatro décadas de história, a União da Juventude Socialista (UJS) anuncia seu 22º Congresso Nacional, a ser realizado de 25 a 28 de julho em São Paulo. Sob o tema “Defender a Alegria e Organizar a Rebeldia”, o congresso pretende reunir 2.500 jovens de todo o Brasil para uma série de debates, atividades culturais e reflexões sobre o futuro do movimento socialista no país. 

Rafael Leal, presidente da UJS, expressou entusiasmo com a programação do evento, que promete ser diversificada e envolvente. “A programação a gente vai misturar debates, atividades culturais, uma exposição dos 40 anos da UJS, atividades interativas sobre o socialismo, debates, juris simulados, uma programação bem legal”, comentou Leal.

O tema central escolhido para o congresso, “Defender a Alegria, Organizar a Rebeldia”, reflete a essência da juventude socialista brasileira. “É a chamada do nosso congresso. Defender a alegria, organizar a rebeldia e essa construção do socialismo com essa nossa cara rebelde, alegre, irreverente, que é a cara da juventude e do povo brasileiro”, explicou Leal.

Além de celebrar quatro décadas de lutas e conquistas, o congresso também será uma oportunidade para fazer um balanço do trabalho realizado pela UJS ao longo dos anos. Do último biênio, Leal destacou alguns dos principais feitos da organização, incluindo a derrota da extrema-direita, a eleição de um governo democrático e progressista, a liderança em batalhas estudantis e o crescimento contínuo da UJS.

“Foram anos de intensa luta. Pudemos liderar pela juventude a derrota da extrema-direita, elegemos um governo democrático, progressista, vencemos as principais batalhas dos congressos estudantis, crescemos e consolidamos a UJS pós-pandemia, reestruturamos as direções, fizemos com que a organização fique cada vez maior”, afirmou Leal.

O 22º Congresso Nacional da UJS promete ser um marco na história do movimento da juventude brasileira, reunindo jovens de todo o país para discutir ideias, fortalecer laços e traçar estratégias para o futuro. A expectativa é que o evento ajude a inspirar e mobilizar uma nova geração de militantes comprometidos com a transformação social e a construção de um Brasil mais justo e igualitário.

À flor da pele https://bit.ly/3Ye45TD

No X (ex-Twitter) @lucianoPCdoB

Desculpem o meu pessimismo nesta manhã de domingo: taxar a renda e a riqueza dos muito ricos no Brasil? Com esse parlamento, jamais!

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/04/minha-opiniaopolitica_25.html

Urariano Mota opina

Uma escravidão portuguesa, com certeza

É raro, ou melhor, jamais foi visto um país de passado colonial, de exploração secular e assassinatos escravistas contra os povos, vir a público e declarar que cometeu grande vileza contra pessoas e para isso não bastam desculpas
Urariano Mota/Vermelho


 

O subtítulo deste artigo deveria ser o de minisséries: “baseado em história real”. Então vamos à realidade.

Nesta semana, houve uma declaração histórica do presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa. Ele afirmou que o seu país é responsável por crimes realizados durante o período da escravidão transatlântica e da era colonial. E que Portugal deve arcar com os custos desses crimes cometidos no passado. “Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”.  

É raro, ou melhor, jamais foi visto um país de passado colonial, de exploração secular e assassinatos escravistas contra os povos, vir a público e declarar que cometeu grande vileza contra pessoas e para isso não bastam desculpas. Se o passado não pode mais ser evitado, ele pode ao menos ser reconhecido como um crime que não pode ser perdoado. Quando nada, devemos olhar para trás e ver o quanto ideólogos, escritores e políticos tentaram pôr máscaras sobre a escravidão portuguesa.  Diziam-na mais suave, doméstica e domesticável, ou que a culpa, se houvesse (!), seria dividida com os africanos que ganharam bom dinheiro em vender irmãos de humanidade. É preciso reconhecer que tortuoso foi o caminho até a declaração de Marcelo Rebelo de Sousa nesta semana.

Leia tambémCom quantos trilhões se paga a dívida da escravidão?

E, no entanto, a verdade já havia se tornado clara no livro magistral de Jacob Gorender, O Escravismo Colonial. Nele, podemos ver e aprender:  

“Os escravos seguiam acorrentados até os portos, onde aguardavam embarque para a América. Os pombeiros (mercadores de escravos) eram brancos, mais frequentemente mulatos, negros livres ou até escravos de confiança. Por sua parte, a Coroa portuguesa mantinha relações de tutoria ou de aliança com numerosos sobas (chefes de tribo africana), que se incumbiam de abastecer a rede de agentes do tráfico ou, em certos casos, de pagar tributo sob a forma de cativos. Assim, por exemplo, Salvador de Sá impôs ao rei do Congo uma contribuição de 9 mil escravos após a retomada de Angola. Eventualmente, os próprios portugueses empreendiam assaltos diretos em busca de prisioneiros, auxiliados pelos guerreiros Jaga, à semelhança dos bandeirantes paulistas que comandavam índios na caça a outros índios…

Os portugueses – registrou Joannes de Laet – têm um rifão que diz: ‘Quem quiser tirar proveito dos seus negros, há de mantê-los, fazê-los trabalhar bem e surrá-los melhor; sem isso não se consegue serviço nem vantagem alguma’. Como se vê, na frase acham-se presentes os três termos da velha fórmula (trabalho, castigo e alimento), com ênfase luso-tropical nos castigos”.

De passagem, observo que o escritor moçambicano Mia Couto, com a sua costumeira ambiguidade, declarou em entrevista à Folha de São Paulo há quase dois anos:

“Os africanos não foram sempre só vítimas, e a aceitação dessa margem de culpa nos dignifica. Porque não nos reduz a objetos na ação de outros. Foi uma história de dominação e genocídio, sim, mas os africanos não foram sempre objetos passivos”.

Sobre isso, escrevi certa vez: dizer que africanos vendiam escravos africanos, e nesse ponto se deter como uma confissão de culpa, é ocultar que esse comércio foi estimulado, criado ou produzido pelos colonizadores portugueses, que acorrentaram homens, mulheres e crianças como bestas e mercadorias na maior migração forçada de povos da história. Pois é impossível não ver que o tráfico de escravos era a máquina azeitada da colonização para o Brasil. O certo é que essas coisas se pronunciam e se pronunciavam como se fossem nada, mas na verdade eram um recurso de retórica que eu diria fraudulento. Negros escravizaram negros, certo? Sim. Mas nada se falar que brancos levaram negros a vender outros negros como escravos, é esconder a exploração cruel dos traficantes de Portugal.

E sobre isso, melhor é voltar a ver a resposta genial de Jacob Gorender em O Escravismo Colonial:

“O tráfico mercantilista iniciado pelos portugueses introduziu um fator externo destrutivo que paralisou ou perverteu a evolução endógena dos povos negros. A princípio, os próprios portugueses assaltavam aldeias inermes e realizavam capturas…. Os prisioneiros eram trocados por panos, ferragens, trigo, sal, cavalos e, sobretudo, por armas de fogo e munições. A estes produtos de origem europeia juntaram-se, com grande aceitação, os procedentes da América: tabaco, aguardente, açúcar, doces e búzios, estes últimos utilizados como moeda pelos africanos. A difusão das armas de fogo tornou sua posse questão de sobrevivência e obrigou uma tribo após outra a tentar obtê-las por meio da captura de homens e mulheres de outras tribos”.

Essa história perversa, que alguns sociólogos e escritores queriam ver sepultada, desta vez foi descoberta por um eminente político, o presidente de Portugal em declaração pública. Diria quase que a história ressurgiu, mas ela jamais esteve morta. “Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos?” Sim, este é um momento histórico. A grita na direita portuguesa já começou. Vergonha, traição à pátria, berram e urram. Mas a ciência se moveu afinal. Saudemos a coragem de Marcelo Rebelo de Sousa.

Nem sempre é o que parece https://bit.ly/3Ye45TD