30 junho 2022

O peso do que se diz

Sobre palavras-charlatãs

Por mais absurdas que sejam à cognição, elas não são inócuas
Muniz Sodré, Folha de S. Paulo

 

Do jornalista e político Carlos Lacerda, dono de tiradas verbais desconcertantes, está na memória o debate parlamentar em que o interlocutor o provocava, dizendo que "suas palavras entram por um ouvido e logo saem por outro". A resposta, fulminante: "Impossível, o som não se propaga no vácuo".

Mas isso é reminiscência de um momento em que, à direita ou à esquerda, personalidades de temperamento e manifestações fortes como Lacerda demonstravam alguma elegância para com o discurso social. Até nas ofensas, como aquela dirigida a um deputado gaúcho: "Este centauro mitológico dos pampas, metade cavalo e a outra metade... cavalo também!".

É hoje muito evidente a crise do discurso civil nas tecnodemocracias ocidentais, mas ela é particularmente aguda no contexto brasileiro, onde palavras-charlatãs circulam sem qualquer ancoragem no real-histórico ou no senso comum e, ainda assim, produzem efeitos de comportamento.

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Por exemplo, carecem de sentido muitos dos nomes das "igrejas" em expansão. Já nas redes digitais, bolhas protofascistas obtêm melhor desempenho do que as progressistas. Discursivamente, o meme abre portas ao fenômeno. Exemplo abstruso é a palavra "Ratanabá", que designa cidade inventada por um ufólogo bolsonarista, suposta "capital do mundo" localizada na Amazônia e com ouro suficiente para "tornar todos os brasileiros milionários". Transformada em meme, a palavra-charlatã adquire força viral na rede, por mais absurda que seja à cognição. E não é inócua: junto com ela são viralizadas ideias antiambientalistas e anti-indigenistas.

À consciência letrada tudo isso pode parecer remoto, mas esse é o real da boçalidade pública, que penetra na fadiga da institucionalidade cívica. Vale recordar o versículo: "Todas as palavras estão gastas (...) O que foi é o que será. O que aconteceu é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol" (Ecl. 1,9-9).

O texto bíblico abrange hoje as palavras que, destituídas de valor e de peso, embora carregadas de força emocional, apenas acentuam o vazio das vozes. Temia Nietzsche em 1882: "Mais um século de jornalismo e as palavras começarão a feder".

Não se trata, porém, de jornalismo, e sim do "vácuo" a que se referiu o polemista no debate, aquele onde o som não se propaga. Só que isso acontece agora como disfunção societária, isto é, como zeramento progressivo dos valores cívicos e morais, que fazem exigências internas e externas de obrigações coerentes por meio de falas lógicas. O "fedor" nietzscheano foi profético. Mas o mal-estar nauseante que contamina a sociabilidade nacional transparece na corrupção das palavras públicas. É hora de, em silêncio, trocá-las por ações mobilizadoras.

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