Cães, gatos, papagaios e a solidão da senhora G.
Luciano Siqueira
Uma notícia de jornal: seca, direta, objetiva – sem qualquer margem a emoções. Denunciada por vizinhos, teve a sua casa, num bairro periférico da Zona Norte do Recife, invadida por agentes da Delegacia do Meio Ambiente e do Centro de Vigilância Ambiental (CVA), que lhe subtraíram 40 cães, 11 gatos e três pássaros silvestres.
A matéria registra que ela resistiu o quanto pôde: trancou a porta da casa, isolou-se com os animais em um dos cômodos, sem êxito. De posse de mandato judicial, os agentes arrombaram a porta e a obrigaram a sair do quarto, a última barricada.
Foram-se os seus animais. Ficou uma intimação para que compareça à delegacia especializada, onde responderá a processo por maus-tratos, perturbação do sossego, resistência à ordem judicial e desacato a autoridade. A pena pode ser de seis meses a dois anos de reclusão – mas pode ser convertida em doação de cestas básica ou prestação de serviço comunitário, a critério do Ministério Público.
Que disse a senhora G., ao ter a sua casa invadida? Que motivos alegou para manter consigo tantos animais? – a matéria, sobre isso, nada registra: é como se houvesse resistido em silêncio ou inaudível tenha sido o seu protesto.
Ao leitor atento resta especular acerca da inusitada situação da senhora G., sobre sua dedicação aos animais, apesar da pobreza extrema: talvez um modo desesperado de enfrentar a solidão, pois não consta que tenha parentes, não recebe a visita de amigos, sai apenas para pequenas compras, mal cumprimenta os vizinhos. Talvez viva de uma mísera aposentadoria. Quem sabe carregue sobre os ombros as dores de amor não correspondido.
Dessas coisas o repórter não se ocupou e certamente o delegado não perguntará. Nem os vizinhos se interessam. Na cidade grande cada um que cuide por si mesmo de suas circunstâncias, vale a dura peleja pela sobrevivência. A concorrência, a insegurança e o medo aprisionam os indivíduos em suas fortalezas, mansões bem protegidas ou toscas moradias. A televisão supre a fantasia, que substitui o sonho.
Não, claro que não: ninguém deseja saber como vive agora, sem os seus animais, a senhora G., mergulhada na mais dolorosa solidão. Ninguém lhe baterá à porta, nem lhe socorrerá as feridas, nem ouvirá seu pranto surdo, nem lhe oferecerá rosas.
E assim a vida continua – embrutecida pela sanha do lucro, pela disputa de uma nesga do território conflagrado. Até o dia em que a solidão de mulheres como a senhora G. passe a valer mais do que uma breve notícia de jornal.
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