13 junho 2025

Palavra de poeta

O QUE EU PROPONHO

Renata Pallotini  

O que eu proponho
É um inferno limpo
Sem nenhuma espécie de sonho.

Também um infinito
Onde tudo se acabe
Menos o grito.

O que eu proponho é uma eternidade
Onde seja proibida
A saudade.

Sem ilusões de nenhuma casta.
O que eu proponho é estar contigo
Até que eu diga
(e nunca vou dizê-lo)
basta.

[Ilustração: Ismael Nery]

Leia também um poema de Mario Benedetti https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/palavra-de-poeta-mario-benedetti.html 

Fotografia

 

Elliott Erwitt

Leia: Quase tudo é inovação tecnológica https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/minha-opiniao_45.html 

Capitalismo de plataforma e seus males

OIT, capitalismo de plataforma e a voz das ruas
Se o século 21 quiser ser mais do que uma distopia high-tech com corpos esgotados e direitos rasgados, ele terá que ouvir o grito dos trabalhadores e trabalhadoras de plataforma
Joane Mota/Vermelho 

Por décadas, fomos levados a crer que a tecnologia era, por si só, um caminho para o progresso humano. A promessa de um futuro no qual o trabalho seria menos extenuante, mais autônomo e recompensador. No entanto, o que se impôs foi outra realidade: a tecnologia a serviço da financeirização, do lucro máximo e da precarização do trabalho. A cultura do capitalismo de plataforma, símbolo dessa nova fase do neoliberalismo digital, não apenas redefiniu a forma como trabalhamos — ela feriu profundamente o tecido social e os direitos conquistados a duras penas pela classe trabalhadora.

O que hoje se apresenta sob os nomes reluzentes de Uber, iFood, 99 ou Amazon Mechanical Turk nada mais é do que a face atualizada da velha exploração. Trata-se da velha lógica do capital travestida em inovação: vender autonomia onde há subordinação, ofertar flexibilidade onde reina a instabilidade, prometer empreendedorismo onde impera o desamparo. A plataforma diz “seja seu próprio chefe”, mas omite que, na prática, o trabalhador está à mercê de algoritmos invisíveis, metas inatingíveis e uma remuneração instável e, muitas vezes, humilhante.

Na divisão internacional do trabalho, essa lógica se mostra ainda mais perversa. No Sul Global, onde o desemprego estrutural e a informalidade são regra, a gig economy [1} surge como única alternativa de sobrevivência. No Brasil, segundo dados do IBGE, 41% da população ocupada está na informalidade, e mais de 1,5 milhão – ou 1,7% da população ocupada no setor privado – por meio de aplicativos de serviços e, 628 mil, nas plataformas de comércio eletrônico.  Essa explosão do trabalho intermediado por aplicativos se dá justamente onde o Estado mais se ausenta — sem direitos trabalhistas, previdência, proteção à saúde ou garantias mínimas de renda. O custo da flexibilização quem paga é o entregador, o motorista, o programador precarizado.

A precarização não é um efeito colateral. Ela é o modelo. O trabalho em plataforma se constrói sobre três pilares: ausência de vínculo empregatício, responsabilização individual dos riscos e opacidade algorítmica. O resultado é um exército de trabalhadores adoecidos, desprotegidos e solitários — sem sindicatos fortes, sem previdência, sem jornada definida. Uma massa descartável, empurrada para o trabalho sem direitos, enquanto as corporações acumulam lucros bilionários.

É nesse contexto que a 113ª Sessão da Conferência Internacional do Trabalho (CIT), da OIT, ganha relevância histórica. A aprovação, ainda que parcial, de uma convenção internacional sobre a regulação do trabalho por plataformas digitais é um sopro de esperança — não apenas para os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, mas para milhões de homens e mulheres que enfrentam a mesma realidade em todos os continentes. Trata-se de um gesto concreto contra a naturalização da precariedade. Um passo importante rumo à construção de um novo marco legal e internacional que reconheça o que é evidente: plataformas são empresas, e trabalhadores de aplicativos são trabalhadores — e como tal, devem ter seus direitos reconhecidos.

E não por acaso, entre os que levantam a voz em Genebra, está o movimento sindical brasileiro — herdeiro de uma longa tradição de lutas que ajudaram a moldar o Brasil moderno. Foi o sindicalismo combativo e organizado que conquistou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que enfrentou a ditadura, que defendeu a democracia, que lutou por direitos universais e políticas públicas de proteção social amaradas em nossa Constituição Federal. Agora, mais uma vez, cabe ao sindicalismo brasileiro — representado por centrais como a CTB e outras — erguer-se como uma das principais trincheiras contra o caos que o capitalismo de plataforma tenta impor como nova normalidade.

Ao denunciar as novas formas de exploração e ao reivindicar, em pleno fórum internacional, o reconhecimento dos direitos dos trabalhadores de plataforma, o sindicalismo brasileiro cumpre não apenas uma função de denúncia, mas também de reconstrução. Reconstrução de uma ideia de trabalho digno. Reconstrução da confiança da classe trabalhadora em suas organizações. Reconstrução da esperança no papel transformador da política.

Esse é um desafio profundo: reconquistar corações e mentes. Em um país em que a reforma trabalhista de 2017 atacou os pilares da CLT, desmontou o financiamento sindical e abriu caminho para a informalidade e a desproteção, é necessário mostrar que o sindicalismo segue vivo, necessário e contemporâneo. Que é possível defender um novo futuro do trabalho sem abrir mão da dignidade humana. Que o trabalho decente é um direito, não uma concessão. Que a CLT — longe de ser um entulho — é um patrimônio que precisa ser atualizado e revigorado à luz dos novos desafios, sem jamais perder sua essência: proteger o trabalhador do poder desmedido do capital.

Em um tempo em que a ideologia do “empreendedor de si mesmo” seduz tantos com promessas vazias, cabe aos movimentos populares e sindicais disputar o imaginário coletivo. Mostrar que nenhum algoritmo substitui o valor da solidariedade, que nenhum aplicativo vale mais que uma rede de proteção, que nenhuma tecnologia deve estar acima da vida humana.

Se o século 21 quiser ser mais do que uma distopia high-tech com corpos esgotados e direitos rasgados, ele terá que ouvir o grito dos trabalhadores e trabalhadoras de plataforma. Eles, que carregam nas costas o presente e o futuro das cidades, exigem mais do que migalhas e discursos. Exigem e merecem o óbvio: trabalho digno, proteção social, reconhecimento e futuro.

Que a convenção da OIT seja aprovada. E que seja apenas o começo de um novo ciclo de resistência, organização e conquistas para quem sustenta o mundo com seu trabalho.

NOTA
[1} A economia gig é caracterizada por contratos de curto prazo ou freelances, permitindo flexibilidade aos trabalhadores par a escolherem tarefas e horários.

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Veja: O Estado burguês liberal e o capitalismo financeirizado https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/05/o-estado-burgues-liberal-e-o.html 

Enio Lins opina

O que está por trás da versão cabiscaída do capitão de milícias?
Enio Lins 

GENTE, ALGUÉM VIU POR AÍ aquele Jair Messias de 2021? Aquele, brabo que nem siri na lata, que, no dia 7 de setembro, em comício na Avenida Paulista, berrou: “Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha!!”. Pra onde foi o valente? Não foi pra linha de frente, ao contrário da embolada de Manezinho Araújo. Anteontem apareceu defronte ao Ministro Alexandre de Moraes um sujeitinho fofinho, mesuroso, desenxabido.

AUTO-HUMILHAÇÃO À PARTE, o importante é o registro, inédito na história do Brasil, de oficiais superiores das Forças Armadas prestando contas por seus malfeitos perante um tribunal civil, de acordo com a Constituição. O mito pudibundo não deve ser considerado “oficial superior”, pois tendo passado pelas fileiras do Exército, há muito se afastou da farda, e, quando capitão, sentou-se no banco dos réus por duas vezes (condenado e descondenado); tem olhos acostumados ao sol quadrado. Mas generais, almirantes e brigadeiros respondendo por tentativa de golpe de estado, aí sim, é fato histórico, é a afirmação do Estado Democrático de Direito como realidade e não idealidade.

NÃO SE JULGA TÃO-SOMENTE o acontecido em 8 de janeiro de 2023. Aquilo foi o espasmo final, na base do “se colar colou”. Não rolou. Não foi a primeira vez, na longa e vergonhosa história de golpes no Brasil, que uma minoria golpista falhou em intimidar e subjugar a maioria não-golpista das Forças Armadas. A diferença está no fato singular de, desta vez, essa minoria criminosa não ter sido perdoada imediatamente (e assim capacitada para tentar novamente). Entretanto, um golpe autoritário foi tecido durante todo o mandato do ex-capitão, o comandante supremo das movimentações pela intentona. Aliás, Jair Falso Messias jamais negou sua motivação antidemocrática – até anteontem.

VIVEU O BRASIL QUATRO ANOS DE URDIMENTO de um golpe militar. Os fatos são eloquentes dessa intenção manifesta em gestos, falas e atos do hoje principal réu, ontem presidente da República. Pontas desse iceberg golpista ficaram muito visíveis – por exemplo – quando das exonerações, em março de 2021, do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e dos comandantes das três armas, general Edson Pujol (Exército), almirante Ilques Barbosa (Marinha) e brigadeiro Antônio Carlos Moretti Bermudez (Aeronáutica). Os quatro confrontaram o projeto autoritário do ex-capitão Jair messiânico e, quatro meses antes de serem excluídos, em novembro de 2020, divulgaram uma inusitada nota conjunta reafirmando a separação entre as Forças Armadas e a política – era um alerta militar sobre as intenções do “comandante supremo”.

UMA PERGUNTA NÃO QUER CALAR: qual a motivação da violenta onda de ataques do bolsonarismo contra o general Santos Cruz? Antes de completar seis meses de governo, em junho de 2019, Jair Messias demitiu-o da estratégica Secretaria Geral da Presidência da República, depois do oficial ser bombardeado publicamente – dentre outros energúmenos – pelo filhote Zero-dois, o Carlucho, e pelo finado provocador Olavo de Carvalho (que insultava repetidamente o militar, chamando-o de “bosta engomada”). Santos Cruz silenciou, mas, duas semanas depois de sua exoneração, em entrevista à Julia Duailibi (Globo News) e Daniel Bramatti (Estadão), afirmou: “Os irresponsáveis estão vivendo tempos de glória”. E, após o resultado das urnas em 2022, foi suscinto, ao criticar o silêncio teimoso do derrotado, para não reconhecer a derrota: “Negócio de covarde”.

POIS É: O NEGÓCIO DE COVARDE segue adiante, com o amarelamento do mito frente à Justiça. O objetivo é sensibilizar o gado bolsonarista e tentar, com um discurso suavizado, dar mais força para suas tropas no Congresso Nacional, território onde o golpe segue adiante, se bulindo tal qual cobra cascavel, balançando o chocalho no rabo, anunciando a mordida na forma de uma anistia graciosa.

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Lula e o gol de desempate https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/05/minha-opiniao_8.html 

Editorial do 'Vermelho'

Bolsonaro a caminho das quatro linhas do cárcere
Bolsonaro e demais réus do “núcleo crucial” da investida golpista saem da fase do interrogatório e ficam mais próximos da necessária condenação
Editorial do 'Vermelho' www.vermelho.org.br

 

Com o encerramento do interrogatório dos réus do “núcleo crucial” dos crimes de tentativa de golpe de Estado, na terça-feira, 10, a chamada “fase de instrução” do processo entra em reta final. Resta ainda o recurso a novas diligências, pelas defesas, como oitivas de citados nos depoimentos, que passarão pela avaliação do ministro Alexandre de Moraes, o relator do caso na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF).

A próxima etapa será a das alegações finais, que antecede a marcação do julgamento. A condenação ou absolvição do ex-presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, e de seu círculo mais próximo, será dos ministros que compõem a Primeira Turma – além do relator, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flávio Dino e Luiz Fux. Será a conclusão do processo sobre a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR), prevista para antes do término do ano, possivelmente entre setembro e outubro.

Além de Bolsonaro, foram ouvidos o coronel Mauro Cid – o ex-ajudante de ordens do ex-presidente que delatou a trama golpista –; o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), que durante o governo Bolsonaro comandou a Agência Brasileira de Inteligência (Abin); o almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha; e os ex-ministros Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto.

Os interrogatórios não trouxeram novidades, mas revelaram a presença dos acusados em reuniões para discutir a chamada “minuta do golpe”. Fizeram também referências aos “considerandos” – a parte introdutória do documento golpista que seria usada para “justificar” as medidas antidemocráticas. Bolsonaro negou que tenha havido ações para um golpe, mas reconheceu que apresentou “hipóteses constitucionais” aos comandantes das Foças Armadas após perder as eleições de 2022 para Luiz Inácio Lula da Silva e disse que debateu a instalação de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

O depoimento de Mauro Cid foi o mais relevante, por reafirmar fatos da sua delação que apontam Bolsonaro no centro da trama golpista, confirmando elementos das tratativas, como depoimentos de testemunhas, anotações e mensagens das negociações. Quatro militares de alta patente – os generais Braga Neto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e o almirante Almir Garnier dos Santos – nada apresentaram que contestasse a robustez das provas, que atestam o papel deles de “braço armado” da tentativa de soterrar a democracia brasileira.

O ex-presidente, por sua vez, vestiu a pantomina de um réu acovardado. Rogou desculpas a ministros do STF, ridicularizou seus apoiadores, a quem chamou de “malucos” por terem clamado por “intervenção militar”, e bajulou o ministro relator, a quem sempre dedicou os piores adjetivos. Os autos indicam, inclusive, que Bolsonaro tinha conhecimento do famigerado plano “punhal verde e amarelo”, posto em execução, para assassinar o ministro Alexandre de Moraes, o presidente Lula e o vice Alckmin.

Por isto, ao fazer o papel de bobo da corte e convidar Moares, em tom de “gracinha”, para ser seu vice em 2026, Bolsonaro fez dois gols contra: legitimou a conduta do ministro relator e provocou estranheza e decepção nas fileiras de suas falanges neofacistas.

Encurralado pelos fatos, pelas provas e pela verdade, Bolsonaro incriminou-se, apesar de usar e abusar do surrado e furado argumento de que sempre atuou dentro “das quatro linhas” da Constituição. Admitiu que, sim, reuniu-se e apresentou aos comandantes do Exército e da Marinha “considerandos” – na linguagem dele – acerca do que poderia ser feito para reverter a derrota nas urnas. Em outras palavras: como impedir a posse da chapa vitoriosa nas eleições presidenciais de 2022. Selou, em juízo – essa é a verdade –, que apresentou a “minuta do golpe” a comandantes das Forças Armadas.

No interrogatório, transmitido ao vivo por vários canais de TV e pela internet, aos olhos da imprensa brasileira e internacional, da opinião pública nacional, pôde ser visto o irrestrito cumprimento do devido processo legal, o amplo direito de defesa. O processo como um todo, enfim, tem dimensão histórica e consequências políticas e jurídicas de alta relevância.

Golpes de Estado ou investidas com o fito de sepultar a democracia infestam a história da República brasileira. No geral, ao longo do tempo o golpismo foi premiado com a impunidade, com exercício ilegítimo de governos. A investigação, o processo penal, o julgamento e a rigorosa punição dos golpistas, com Bolsonaro à cabeça, fará um corte nesta nefasta tradição.

Até a sentença ser proclamada, a pressão da extrema-direita –, inclusive estrangeira – e seus aliados contra o STF prosseguirá. Como se sabe, o filho do réu Bolsonaro, Eduardo, encontra-se nos Estados Unidos cometendo o crime de traição nacional, à medida que articula com autoridades do governo Trump ações atentatórias à soberania nacional, de ameaças a ministros do STF, em especial ao ministro relator.

Bolsonaro, consciente de que será condenado pelo rol de crimes que cometeu contra o regime democrático, já empreende uma barganha com as candidaturas à Presidência da República do campo da extrema-direita e da direita. O apoio do ex-presidente e de seu clã é condicionado ao compromisso de que será indultado, anistiado, caso seu projeto conquiste a vitória.

As forças democráticas e progressistas devem elevar suas ações e mobilizações em respaldo ao STF, no sentido de que o julgamento se conclua sem pressões ou intimidações de qualquer espécie, com a punição exemplar de Bolsonaro e demais golpistas.

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"Permitam-me a impaciência" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/minha-opiniao_10.html 

Humor de resistência

 

Céllus

Cláudio Carraly opina

Por que o capitalismo vive de bolhas?
Cláudio Carraly*

Você já ouviu falar da febre das tulipas? Em pleno século XVII, na Holanda, o preço de certos bulbos de tulipa chegou a valer mais do que uma casa, sim, uma futura flor valia mais do que um imóvel. Isso durou pouco, um dia, os compradores sumiram, os preços despencaram e muita gente perdeu tudo.

Esse episódio, conhecido como a primeira bolha especulativa documentada, ajuda a entender uma lógica que se repetiria inúmeras vezes ao longo dos séculos. Da tulipomania às criptomoedas, passando por bolhas como a da internet nos anos 2000 ou a do mercado imobiliário em 2008, o que se vê é um padrão: a economia entra em euforia, os preços disparam, o medo desaparece, até que tudo desaba. Mas por que isso acontece com tanta frequência? Seria só ganância? Falta de regulação? Ou será que, no fundo, o capitalismo precisa dessas bolhas para continuar existindo? Vamos entender melhor:

1. Tulipas, luxo e ruína (1630–1637)

Na Holanda do século XVII, tulipas exóticas, especialmente as com padrões raros e cores incomuns, eram tão valorizadas que passaram a ser negociadas como ações. As pessoas não compravam para plantar, mas para revender a um preço maior, um mercado de contratos foi criado, permitindo a compra e venda futura de bulbos que ainda nem existiam.

Os preços subiam porque todo mundo acreditava que alguém pagaria mais depois. Mas, quando o primeiro grupo decidiu não comprar, o sistema colapsou. Confiança virou pânico e o pânico virou uma quebradeira econômica generalizada. Esse episódio deixou claro um mecanismo que se repetiria, valores subindo sem conexão com a utilidade real ou valor intrínseco, ou seja, sem um motivo lastreado no mundo real para estar se elevando, hoje chamamos isso de bolhas.

2. A bolha do Mar do Sul (1720)

Na Inglaterra, a South Sea Company foi criada com o privilégio de explorar o comércio com a América do Sul, o que atraiu os investidores não foram os lucros reais, mas as expectativas vendidas pela elite política e econômica da época, que incluía parlamentares e o próprio rei. A promessa da empresa era de que a nova fronteira do comércio global estava em terras sul-americanas.

Assim, as ações da empresa dispararam, alimentadas por uma crescente propaganda, sem lastro em fatos, apenas em especulação e corrupção. Quando os lucros não apareceram, o mercado entrou em pânico, a elite inglesa perdeu fortunas, o Parlamento interveio e a confiança no sistema financeiro foi abalada. Mais uma vez, promessas infladas, fundamentos frágeis e um colapso previsível.

3. A bolha da internet ou empresas .com (1995–2000)

Nos anos 1990, empresas de tecnologia começaram a atrair investidores com ideias revolucionárias. Sites sem lucro, sem produto e às vezes sem funcionários receberam bilhões. A lógica era: “invista agora e venda depois com muito lucro”.

A imprensa e os mercados celebravam cada nova startup como a próxima revolução digital. Muitos investidores nem sabiam o que as empresas faziam, quando a realidade bateu à porta, centenas de empresas quebraram, milhões de pessoas perderam dinheiro, e o índice Nasdaq despencou. A bolha da “nova economia” estourou, mostrando o risco de confiar mais na expectativa do que no valor real do produto ou serviço.

4. A bolha imobiliária dos EUA – Crise do Subprime (2001–2008)

Nos anos 2000, o crédito imobiliário foi facilitado ao extremo. Nos Estados Unidos, qualquer pessoa conseguia comprar uma casa com prestações aparentemente acessíveis, bancos repassavam esses empréstimos para fundos, que criaram papéis financeiros (os famosos subprimes), vendidos no mundo inteiro.

Logicamente, havia um problema, muitos dos compradores não tinham condições reais de pagar os empréstimos tomados. Mas isso era ignorado, enquanto os preços subiam, o sistema parecia lucrativo e se retroalimentava. Quando os calotes começaram, o castelo de cartas ruiu como um verdadeiro esquema de pirâmide. O pânico se espalhou e grandes bancos quebraram.

O impacto não atingiu apenas os EUA, foi global, já que os papéis eram negociados em todo o mundo e as empresas e bancos atingidos operavam em muitos países, o que veio a seguir, foi, muito desemprego, despejos e recessão. A solução do mercado? Correr atrás do governo para resgates bilionários dos bancos. O lucro era todo deles, mas a dívida ficou para a população pagar.

5. Criptomoedas, NFTs e os ativos digitais (2017–2022)

Mais recentemente, vimos um frenesi em torno de bitcoins, altcoins e NFTs. Milhões acreditaram que essas tecnologias substituiriam o dinheiro tradicional e revolucionariam a economia. De fato, há inovações reais, mas também houve exagero, marketing agressivo e muita especulação.

Pessoas compravam imagens digitais de “macacos estilosos”, sim, pagavam fortunas por uma imagem intangível qualquer que se supunha valer algo, ou criptomoedas criadas em garagens, esperando lucros rápidos. Quando a confiança caiu, os preços despencaram. Empresas quebraram, carteiras digitais sumiram e os bilhões evaporaram, também em uma velocidade digital. Essa era a mais nova bolha, mas agora em tempo real, promovida por um novo operador do capital, os influenciadores.

6. O papel da regulação e o capitalismo financeiro

Uma das grandes questões negligenciadas em muitas discussões sobre bolhas é a falta de regulamentação eficaz, se o mercado é deixado sem controles rígidos, especuladores podem manipular valores e inflar ativos sem nenhum lastro real. Porém, o capitalismo precisa disso, aliás, se alimenta desse mecanismo, assim o sistema financeiro permite e até incentiva esse comportamento. Os governos muitas vezes falham na regulação porque enfrentam dois grandes obstáculos:

1. Pressão de grandes investidores e corporações, que lucram com as bolhas e influenciam as decisões políticas.

2. O medo de desacelerar a economia, já que impor limites pode frear investimentos e retirar liquidez do mercado, refreando picos econômicos, mesmo que esses sejam evidentes farsas.

·        Alternativas poderiam incluir:

- Tributação sobre transações especulativas, para reduzir incentivos ao investimento de curto prazo sem fundamento sólido.

- Maior transparência e fiscalização, exigindo que empresas e mercados publiquem informações realistas sobre riscos e projeções.

- Educação financeira, para evitar que investidores leigos caiam em esquemas altamente voláteis sem compreender os perigos.

Então voltamos à questão principal, o capitalismo precisa das bolhas? Tranquilamente podemos afirmar que sim, e que não só surfa nessas ondas como ajuda a produzi-las e mantê-las o maior tempo possível vivas. O capitalismo financeiro, precisa constantemente reinventar mercados e “produtos” onde o capital possa se multiplicar rapidamente. Esses ativos muitas vezes crescem em valor não por serem úteis, mas porque existe a expectativa de que alguém pague mais depois.

A economia produtiva é complexa e por vezes desacelera, fato normal no comércio mundial. Porém, para o capital financeiro, não são aceitáveis esses momentos de refração, então ele migra para ativos intangíveis ou promessas futuras de lucro, e joga em bilhões de pessoas mundo afora a ilusão de riqueza fácil e lucro imediato, assim como em um cassino, e como em todo jogo de azar, no final, só quem ganha é a banca.

As bolhas são, assim, válvulas de escape que mantêm o sistema aquecido, elas movimentam trilhões de dólares, criam ilusões temporárias de crescimento e permitem que os grandes acumuladores lucrem enquanto o otimismo ou miopia durem, antes de transferirem o prejuízo para o conjunto da sociedade, levando milhares à bancarrota.

A cada novo “produto milagroso” vendido como revolução, seja uma flor, um token, uma nova hipoteca da casa ou uma startup, surge uma nova onda de euforia. Isso é incentivado por plataformas digitais, influenciadores financeiros, mídia tradicional cada dia mais financista, além de uma cultura que transforma a especulação em virtude. Enquanto o lucro rápido for o motor da economia, e a valorização artificial for mais premiada que o trabalho produtivo, as bolhas continuarão surgindo, mais bilionários enriquecerão e maior será o abismo social do planeta. No fim, o problema não são só as bolhas — é um sistema que só existe para soprá-las.

Cláudio Carraly - Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

[Iustração: imagem produzida em IA]

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