28 julho 2019

Crônica do cotidiano


Babel
Luciano Siqueira

Reza a lenda que por vontade divina a Humanidade, que se comunicava por meio de um único e uniforme idioma, teve misturados palavras e sons — gerando tremenda mixórdia entre os que ocupavam uma torre (Babel) destinada a alcançar o céu.

Dai em diante entender o que se diz e o que se ouve e o que se lê virou uma empreitada desafiante.

Começa pela diversidade de idiomas. Tem sentido dizer que, quando duas pessoas não se entendem, uma fala grego e a outra japonês.

Mas, entre os que se pronunciam através da mesma língua, desencontros são muito mais frequentes do que o razoável. Por isso, Antoine de Saint-Exupèry, pela voz do Pequeno Príncipe, proclamou: a linguagem é uma fonte de mal-entendidos.

E ainda tem os dialetos próprios de cada esfera do conhecimento e de atividade profissional.

A turma da tecnologia da informação se comunica por siglas cujos significados se traduzem em inglês.

Médicos se referem a patologias e entidades clínicas também por siglas, e assim por diante.

E os “manos” e as “minas” emitem expressões quase incompreensíveis.

Mais: com o advento das redes sociais, se alastra um dialeto que para mim é definitivamente incompreensível. E feio.

Palavras truncadas e quase sempre reduzidas a três ou quatro letras terminam se incorporando à linguagem cotidiana – e haja paciência para ouvir, e tentar entender, o que é pronunciado entre os dentes!

Prefiro ignorar.

O que não é nada educado, diria minha mãe Oneide, para quem ouvir com atenção era dever sagrado.

- Meu filho, escute com calma e paciência, mesmo aquelas pessoas que têm dificuldade de falar. Não ouvi-las é falta de caridade, sentenciava ela.

Mas, sinceramente, a essa altura da vida esforçando-me por fazer bom uso do tempo que me resta, aguentar aquele palavreado atravessado, dito como quem masca chiclete enquanto bebe, é de lascar!

E ainda tem os emotions, abusivamente (para mim) usados no WhatsApp. Entendo pouquíssimos, óbvios.

Tem uma carinha amarela com um ponto pequeno vermelho no canto esquerdo da boca, que eu interpretei a vida inteira como uma cereja – até que alguém me esclareceu tratar-se de um beijo de despedida!

Quantos beijos desses deixei de retribuir por pura ignorância!

E as mãos juntas elevadas como quem reza? Sempre as recebi com preconceito, sobretudo quando me pareciam nada terem a ver com o conteúdo do diálogo. Depois vim a saber que não se trata de oração, é um “highfive”, simboliza que dois amigos bateram as mãos num gesto de regozijo...

Claro que a turma de agora há que ter também suas queixas. Nosso pessoal, particularmente militantes e ativistas da luta social, tem cada uma que é difícil assimilar:

- Quero me inscrever para “defender contra”, é comum se ouvir em assembléias do movimento.

Vá entender essa dialética de mau gosto e depois me diga o que vem a ser mesmo “defender contra”, tudo bem?

[Ilustração: Composição a partir de detalhe de um desenho de Miguel Siqueira Ramos]


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