29 março 2023

Militares de extrema direita

Extremismo de direita nas forças armadas no mundo

O extremismo de direita que se encontra avançando em várias partes do mundo é uma ideologia, isto é, um conjunto de representações, valores, concepções e regras de comportamento que prescrevem aos indivíduos o que e como devem pensar, sentir e agir, seja para manter ou mudar determinada situação
Antônio Carlos Will Ludwig/Le Monde Diplomatique


O extremismo de direita que se encontra avançando em várias partes do mundo é uma ideologia, isto é, um conjunto de representações, valores, concepções e regras de comportamento que prescrevem aos indivíduos o que e como devem pensar, sentir e agir, seja para manter ou mudar determinada situação. Por ser uma entre as diversas que circulam no âmbito social sua compreensão deve ser feita por meio da categoria de ideologias arbitrárias, as quais possuem características próprias e diferenciadoras, são assumidas por determinados segmentos sociais, se manifestam no contexto da ideologia dominante ou expressam uma mai or ou menor harmonia em relação a ela. Observe-se que a ideologia dominante é própria dos setores hegemônicos da sociedade e ascende em todos os setores onde a existência humana é realizada.
Duas outras categorias fundamentais precisam ser expostas para tornar mais lúcido seu entendimento, quais sejam, o progressismo e o conservadorismo. O progressismo é uma doutrina que concebe o homem como um ente livre e racional, capaz de produzir uma organizaçã ;o comunitária desprovida de coação e sustentada pela cooperação espontânea de todos aqueles que a ela pertencem. Por sua vez, o conservadorismo, devido se apresentar de vários modos, possui diversas particularidades dentre as quais se sobressaem o distanciamento em relação à democracia, o predomínio da concepção funcionalista de sociedade onde cada qual ocupa um determinado lugar e exerce um papel específico e a ideia de que a desigualdade é essencialmente natural. Portanto, algumas pessoas são originalmente superiores a outras nos aspectos moral e intelectual, uns nasceram para liderar e outros para serem liderados. Ademais, ela não pode ser eliminada através de ações sociais e programas políticos.
Para completar esta interpretação cabe mencionar o possível enquadramento dos governantes e também dos governados na esfera política. A esse respeito sabe-se que ele leva em conta uma formação composta pelo centro, pela esquerda e a pela di reita. Nela vicejam a centro esquerda, a centro direita, a extrema esquerda e a extrema direita. Essencialmente, o centro tem por meta conciliar liberdade e igualdade, enfatizar o mercado e a justiça social; a esquerda objetiva defender a igualdade e a justiça social pela ação do Estado; a direita visa a instauração de um Estado mínimo garantidor da ordem social e da proeminência do mercado.
Conquanto a centro esquerda e a centro direita defendam suas propostas assentadas no regime democrático, a extrema esquerda, mesmo em desconsideração à democracia, tem em mira a destruição do regime capitalista e a divisão classista formada pelos grupos de dominantes e dominados. Por sua vez a extrema direita é avessa ao regime democrático, valoriza a soberania do país, alimenta o sentimento nacionalista e o afeto patriótico, exibe atitudes de preconceito e xenofobia e tende a rejeitar o avanço da globalização.
A extrema direita enquanto uma ideologia arbitrária própria do conservadorismo, está se expandindo pelos vários recantos do planeta ao lado da crescente autocratização de países. Relativo ao continente europeu tem-se na Itália um gov erno sustentado pelo partido Irmãos da Itália cuja primeira ministra fez uma campanha baseada no euroceticismo, nas políticas anti-imigração, na objeção ao aborto e na redução dos direitos do grupo LGBTQ, observando que nomeou alinhados linha-dura para os principais ministérios italianos. Na Suécia o partido Democratas Suecos, sintonizado ao neonazismo, teve um crescimento significativo após o acolhimento de fugitivos de guerra incidentes na Síria e no Iêmen. Na Hungria Orban, oriundo do partido Fidesz, recebeu apoio de segmentos ultra conservadores graças à sua política anti-imigração. Também se voltou contra a comunidade LGBTQ e proibiu a educação sexual nas escolas.
Na França Marine Le Pen do partido Frente Nacional já conseguiu chegar duas vezes no segundo turno eleitoral. Ela dota uma postura eurocética, é contra o fluxo migratório e se inclina para o lado do nacionalismo econômico. Na Alemanha o partido Alternativa Para a Alemanha com bandeira anti-imigração e postura contrária à União Europeia constitui uma das principais forças do Bundestag. Ao seu lado aparece os Reichsbürger que rejeitam a democracia alemã, demandam a volta das fronteiras geográ ;ficas do país vigentes em 1937, época do nazismo, e   conspiram contra a existência do Estado germânico. Também já foi identificada a presença de uma pequena minoria de radicalistas no Poder Judiciário e na Polícia.
Nos Estados Unidos da América do Norte existem algumas organizações extremistas já conhecidas: a longeva Ku Klux Klan contrária ao movimento de direitos civis dos afro-americanos; a White Supremacy, defensora acirrada da existência de uma raça branca; a Aryan Nations, cujos adeptos acreditam fervorosamente na superioridade biológica das pessoas com origem europeia e que os brancos estadunidenses devem ocupar o topo da hierarquia social; o movimento Alt Right que é avesso às minorias e aos grupos de esquerda. Em Israel, recentemente, Netanyahu formou uma coalisão política com aliados ultraortodoxos pertencentes aos partidos Judaísmo Unificado da Torá, Sionismo Religioso, Noam e Força Judaica.
Quanto ao Brasil aconteceu nos últimos quatro anos a impregnação do bolsonarismo, uma concepção extremista agregadora do apego à família tradicional, defesa do porte de armas, descaso aos direitos humanos, exaltação do patriot ismo, negacionismo científico, postura anticomunista, aversão a alas de esquerda e apreço à militarização da sociedade. Ele engendrou o grupo dos famigerados patriotas que se postaram em frente a quartéis clamando pela aplicação de um golpe. Possuídos da certeza de que os fardados impediriam a posse de Lula avançaram em direção aos prédios da Praça dos Três Poderes e cometeram execráveis atos de vandalismo. Estimulou também a presença de uma enorme quantidade de influenciadores nas plataformas digitais que disseminaram milhares de notícias falsas e inúmeras mensagens de ódio. Se compatibilizou ainda com a insensata doutrina pan-nacionalista de Ernesto de Araújo que ingloriosamente lutou para impregná-la no Itamaraty.
A história aponta que a extrema direita não é um fenômeno recente do cenário político. Houve a ocorrência original logo após a Revolução Francesa com os agrupamentos que almejavam o retorno da monarquia absoluta, emergiu o fascismo na Itália e apareceu a Ação Integralista em nosso país dentre vários outros casos. E é óbvio que houve fatores específicos que concorreram para o aparecimento deles os quais se encontravam inseridos na conjuntura das respectivas épocas. A atual também conta com certas particularidades que a diferenciam de suas congêneres do passado.
Pertinente à extrema direita hodierna os motivos deflagradores são outros. O mais importante deles é o avanço da globalização que de modo célere vai eliminando o isolamento dos países e instaurando lepidamente a aproximaç&atil de;o entre eles, um acontecimento que favorece a incitação do imaginário de muitos quanto à possibilidade e a conveniência do estabelecimento de uma governança mundial.
Ademais a globalização tem invadido muitas áreas da vida em sociedade. O setor educacional se encontra envolvido com o multiculturalismo resultante da presença de alunos oriundos de vários recantos do mundo. Ele exige respeito ao modo de pensar e de se c omportar de cada uma das etnias, o que também é válido para o segmento ocupacional e para a convivência nos demais setores da vida em sociedade, bem como impõe a necessidade do aprendizado de línguas estrangeiras para aqueles que almejam completar seus estudos, trabalhar ou viver em outros rincões do planeta.
Na esfera política ela tem incidido na ascendência de cada país, ou seja, na autonomia dos governantes para tomarem decisões relativas à defesa dos interesses nacionais. Essa pretensão se mostra muito difícil de vigorar porque quase todos os países do planeta se encontram bastante atados entre si frente às muitas dezenas de acordos, tratados, convenções, protocolos bilaterais e multilaterais que condicionam ostensivamente sua conduta tanto no âmbito interno quanto no externo. Assim sendo, o papel de agentes do desenvolvimento econômico e a função de garantir a coesão e a integração social e nacional se encontram enfraquecidos.
Outrossim deve ser lembrado que o atual momento da civilização tem se revelado bem diferente dos lapsos já idos. Há um conjunto de proeminentes intelectuais que afirmam estar a humanidade inserida em um novo período histórico intitulado pós -modernidade, muito embora também haja um grupo destacado de pensadores que asseveram a sua não existência porquanto dizem se tratar de uma modernidade diferenciada, uma altermodernidade.
De qualquer forma, os dias de hoje mostram a marcante presença de situações predominantemente instáveis, descontínuas, efêmeras, fragmentadas, caóticas e indicam que a história humana caminha em direção a rumos indefinid os. Para viver neste lasso ambiente o ser humano tem que ser flexível, atuante, protagonista, construtor de projetos de vida, comprometido com o desenvolvimento contínuo de suas múltiplas dimensões, voltado para a concretização de seus interesses, defensor intransigente da liberdade e participante de mobilizações coletivas favorecedoras de grupos sociais denegados que buscam garantir o reconhecimento e a concretização de seus direitos.
Não é preciso fazer sequer um mínimo de esforço intelectual para perceber que o ideário da extrema direita anteriormente caracterizado, é totalmente desarmônico e avesso ao atual momento histórico marcado pelo avanço da globali zação e da pós-modernidade. E por causa disso seus belicosos adeptos encontram bastante resistência e dificuldade para realizar no âmbito social os intentos almejados, os quais, de modo contraditório, devem muito a ambas suas aparições e desenvolvimentos, manifestadas na forma de uma conduta reacional.
Apesar das condições adversas o extremismo de direita está conseguindo penetrar nas Forças Armadas. Pesquisa de opinião recentemente feita na Alemanha revelou que uma parcela significativa da população acredita na presença da extrema direita nas hostes castrenses. Tal crença tem fundamento objetivo haja vista que em 2017 um tenente foi detido sob a alegação de ter tramado um atentado terrorista contra políticos pró-imigração. Também foi preso um soldado perto da cidade de Kehl suspeito de planejar um ataque contra a segurança nacional. No ano de 2021 o tribunal de Leipzig aplicou penalidade num militar do Comando de Forças Especiais ligado a grupos radicais por ter furtado armas, munição e explosivos do Exército. Já foi computado quase três centenas de suspeitas relativas a fardados envolvidos com a extrema direita segundo investigação promovida pela área de inteligência da Bundeswher, observando que duas dezenas de soldados já receberam a pena de expulsão. A força especial Kommando Spezialkräfte foi dissolvida após a realização de um inquérito que identificou mais de oitocentos soldados conectados ao terrorismo.
Relatórios produzidos em 2021 pela Universidade de Leiden na Holanda mostraram um crescimento da vigilância sobre militares holandeses devido o avanço do extremismo, principalmente o advindo do jihadismo. Nos últimos anos várias investigaçõe s realizadas resultaram na expulsão de um pequeno grupo de fardados radicais. Na Inglaterra foram reconhecidas mais de uma dezena de soldados revoltosos decorrentes de um programa de prevenção ao terrorismo.  Em 2018 um cabo recebeu condenação por ser membro do grupo neonazista National Action e outro foi advertido pela presença de uma suástica em seu alojamento. Dois integrantes da Marinha foram expulsos pela filiação ao Identitarian Movement conectado a grupos terroristas.
Nos Estados Unidos da América do Norte a situação revela gravidade semelhante, haja vista que extremistas adentram ao serviço militar visando obter treinamento logístico e de combate para, ao término dele, oferecerem seus préstimos a grupos radicais. Por sua vez, a atuação de fardados revoltosos tem sido notória. Um veterano do Exército, portador de condecoração, participou de um atentado em Oklahoma City no ano de 1995. Em 2006 um oficial aviador foi desonrosamente afastado da Força Aérea por passar mensagens glorificadoras de Hitler e ameaçar detonar explosivos num quartel.
Alguns soldados do Exército, em 2011, organizaram a milícia Forever Enduring Always Ready e assassinaram um colega por medo de que ele revelasse o plano que tinham elaborado para matar o presidente Obama, sequestrar militares de alta patente, invadir o Fort Stewart e tomar o governo. No ano de 2020 um soldado integrante de Brigada Aerotransportada foi preso por planejar um ataque a ela. Nessa mesma data outro soldado ligado ao culto satânico Ordem dos Nove Ângulos divulgou movimentos de tropas visando facilitar as ações do Al-Qaeda na Turquia. E uma pesquisa hodierna feita pelo Military Times apontou que muitos militares já testemunharam manifestações de colegas ligados a grupos partidários do nacionalismo branco e do racismo ideológico nas hostes castrenses.
A radicalização militar no Brasil se mostra diferente da europeia e da estadunidense. Em nosso país grande parte dos integrantes das Forças Armadas aderiu à extrema direita bolsonarista por meio do partido verde oliva que liderou a campanha presidencial no interior da caserna. Durante os quatro anos do governo de Bolsonaro milhares de fardados ocuparam cargos na administração federal. Na última eleição, após a derrota dele, comandantes de quartéis permitiram a presença dos famigerados patriotas em frente às guaritas os quais insistentemente clamaram pelo impedimento da posse de Lula. No início de janeiro deste ano ocorreu o envolvimento de militares da ativa e da reserva na execrável quebradeira do patrimônio público na capital federal. Vale lembrar também as várias manifestações de fardados em redes sociais nas formas de ativismo político, de afronta às autoridades do Poder Judiciário e de menosprezo ao Congresso Nacional.
Observe-se, entretanto, que a marcante atuação de oficiais comprometidos com a legalidade e a democracia impediu que o estabelecimento bélico embarcasse numa aventura golpista. Derradeiramente cabe ressaltar que nossos servidores de uniforme continuam ainda sendo mold ados por uma ideologia conservadora liberal próxima do radicalismo, integrada pelo corporativismo, pela visão de um Estado fragilizado, pela ética do sucesso e da meritocracia, pela concepção de que a política é um ofício específico das elites e pela ideia de que o comunismo é um inimigo histórico e contrário à ordem ocidental.
Frente às colocações postas anteriormente é válido inferir que o extremismo de direita impregnado nas Forças Armadas se encontra intimamente relacionado aos movimentos radicais pululantes no âmbito da sociedade. Porém não &eacu te; viável negar que ele também tende a ser sustentado por fatores endógenos. É bem possível que tal extremismo tenha a ver com as experiências em operações de combate. Com efeito, o repetitivo envolvimento com a violência e suas consequências tais como traumas e perdas de companheiros pode conduzir ao aparecimento de crenças radicais, especialmente entre aqueles que sentem desilusão pela política e pelos governantes.
Ademais, soldados veteranos podem adotar ideologias revoltosas como forma de enfrentar as cicatrizes psicológicas resultantes de contendas. Outrossim, é possível supor que a hierarquia e a disciplina castrense, exigentes da obediência individual e coletiva incli nem-se a contribuir para a disseminação e enraizamento dessas crenças. Não pode ser esquecido ainda o papel das redes sociais que fornecem uma plataforma para os fardados extremistas se conectarem, partilharem concepções e se mobilizarem.
Estudiosos do assunto já divulgaram diversos alertas pertinentes. Disseram eles que o avanço do extremismo de direita nas Forças Armadas é muito preocupante e perigoso. Os revoltosos podem utilizar o treinamento obtido e as armas disponíveis para tomar o controle do estabelecimento bélico, praticar atos de violência e de terrorismo que inclui assassinatos planejados, atentados a bomba, tiroteios em meio ao povo, derrubada de um governo democrático e instalação de um regime autoritário ou totalitário. No âmbito da caserna eles podem provocar divisões internas e criar uma cultura tóxica prejudicial ao imprescindível trabalho cooperativo. Após o encerramento do serviço militar e com o retorno à vida civil, os ex-fardados podem disseminar suas   crenças extremistas para o meio social e inspirar outras pessoas a adotá-las. Os adeptos do radicalismo podem ainda contribuir bastante para minar a confiança da população nas instituições castrenses e colocar em risco sua integridade e eficácia.
Outrossim, apresentaram também medidas solucionadoras que se seguem. Verificação dos antecedentes ideológicos antes do recrutamento.  Notificação geral sobre o impedimento regulamentar pertinente à disseminação do extremi smo.  Trabalho conjunto entre as agências de inteligência e de segurança e compartilhamento dos resultados de investigação sobre o reconhecimento de candidatos ao serviço militar comprometidos com o radicalismo. Campanhas de conscientização sobre os perigos da inclusão e permanência de revoltosos na caserna.  Promoção do espargimento da diversidade e da inclusão nas fileiras. Fornecimento de apoio psicológico aos fardados que vivenciaram situações de violência e trauma. Aplicação de penalidades aos partidários do extremismo. Realização periódica de pesquisa de opinião junto aos fardados.
Acrescente-se neste conjunto de propostas o acompanhamento dos processos de socialização e de educação formal, visando detectar a possível presença neles de atitudes indesejáveis, principalmente aquelas oriundas da implementaçã ;o do currículo oculto, ou seja, do conjunto de experiências vivenciadas no interior da escola que não se encontram previstas oficialmente, as quais contribuem de maneira poderosa para o desenvolvimento de condutas individuais e coletivas que podem ser tanto benquistas quanto condenáveis.
 
Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da For&cced il;a Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)
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