A educação na encruzilhada entre identidade e justiça
Há 25 anos, Nancy Fraser propunha, em
livro, romper barreiras entre ideias de “reconhecimento” e “igualdade”. Debate
tende a ressurgir num Brasil pós-Bolsonaro. Seus resultados terão impactos
profundos sobre o projeto de escola a construir
Roberto Rafael Dias
da Silva, Outras palavras
Justiça interrompida: reflexões críticas sobre a condição
‘pós-socialista’, cuja publicação original ocorreu no ano de 1997, chegou ao público
brasileiro no início deste ano, pela editora Boitempo. Nesta obra, Nancy Fraser,
uma das principais filósofas políticas da atualidade, ingressa na reflexão
sobre as teorias da justiça revisitando as tensões existentes entre os
defensores da redistribuição econômica e aqueles que, desde a virada do século,
assumiram uma defesa do reconhecimento. Ainda que estejamos vinte e cinco anos
distantes do contexto que deu condições para o advento da obra (e que a própria
autora tenha acrescentado novos elementos em sua concepção de justiça), o texto
ainda nos oferece questões instigantes para pensar a justiça social em uma era
pós-socialista. Neste pequeno ensaio vou recompor algumas linhas argumentativas
da obra para, na sequência, elaborar algumas novas indagações para pensar a
justiça social no campo educacional. Considero pertinente, neste momento,
recuperar este debate porque estamos diante da oportunidade de recompor a
agenda progressista no Brasil.
Para começar esse percurso reflexivo, considero que merece destaque na
obra a sua caracterização dos tempos contemporâneos como “pós-socialistas”,
entendidos como uma espécie de sentimento coletivo que caracterizou o
pensamento progressista após o ano de 1989. Esta condição pós-socialista, de
acordo com Fraser, dizia respeito a, pelo menos, três aspectos abrangentes. O
primeiro aspecto seria a ausência de uma visão progressista unificadora e
alternativa a ordem social vigente, após a deslegitimação do socialismo no
final da década de 1980. Valendo-se da formulação de Habermas, a filósofa
sinalizou o “esgotamento de nossas energias utópicas”. Em continuidade, o
segundo aspecto mencionado por Fraser, como uma condição constitutiva de nossa
época, seria a mudança na gramática das reivindicações políticas. Predominaram
as reivindicações culturais (na busca pelo reconhecimento), em detrimento das lutas
por igualdade (conquista da redistribuição). O terceiro aspecto que
caracterizaria nossa época é o advento do neoliberalismo e sua capacidade de
mercantilizar as variadas esferas da vida humana.
Leia
também - Marcio Pochmann: Século 21 impõe novas bases para a educação
brasileira https://bit.ly/3Bv2KNR
Em linhas gerais, a condição pós-socialista poderia ser caracterizada da
seguinte forma: “ausência de qualquer projeto emancipatório abrangente digno de
crédito, a despeito da proliferação de frentes de lutas; a dissociação geral de
política cultural de reconhecimento e política social de redistribuição; o descentramento
das reivindicações de igualdade diante da agressiva mercantilização e do
crescimento acentuado da desigualdade material”. Importante enaltecer que esta
condição também oferece um horizonte para a teorização política no presente,
levando-nos a interrogar criticamente o próprio campo progressista.
Necessitamos diagnosticar os recuos deste tempo e, ao mesmo tempo, defender “a
possibilidade e a desejabilidade do pensamento abrangente, integrado, normativo
e programático”. Explica a filósofa que não se trata de recompor algo como “o
socialismo”, mas a concepção de alternativas provisórias que possam servir de
base para novas políticas progressistas. Disso deriva-se sua elaboração em
torno de uma gramática que: a) recoloque em debate o deslocamento da redistribuição
para o reconhecimento; b) engendre novos horizontes para a justiça social.
Quero, agora, argumentar um pouco sobre estes dois tópicos.
Tanto na teoria social, quanto na gramática da ação política, a última
década do século XX colocou em disputa duas narrativas que buscavam hegemonia.
De um lado, aqueles que advogavam por políticas de classe, políticas sociais,
igualdade ou, mais recentemente, redistribuição. De outro lado, os movimentos
que defendiam as políticas de identidade, as políticas culturais, a diferença
ou o reconhecimento. Fraser sinaliza que, na maioria das vezes, essas agendas
nos levavam a realizar escolhas, não abrindo espaços no debate para que
redistribuição e reconhecimento pudessem ser combinados. No decorrer do livro,
a hipótese da pensadora é integrar estas duas dimensões em um “quadro teórico
abrangente”. Faz-se necessário, então, engendrar uma abordagem crítica que
integre “o social e o cultural, o econômico e o discursivo”, indicando para
novos horizontes para a justiça social.
Isso significa expor as limitações dos modelos neoestruturalistas de análise de discurso hoje em voga que dissociam ‘a ordem simbólica’ e a economia política. Isso exige cultivar, no lugar desses modelos, modelos alternativos que conectem o estudo da significação a estruturas sociais e instituições. Por fim, isso significa conectar a teoria da justiça cultural à teoria da justiça distributiva (FRASER, 2022, p. 21).
Em obras posteriores, Nancy Fraser acrescentou uma terceira dimensão – a participação – e, desse modo, sua concepção de justiça assumiu uma forma triádica. Importante salientar que reconhecimento, redistribuição e participação foram adquirindo uma forma muito produtiva, do ponto de vista político, e serviram de base para novos olhares para a questão da educação pública. Como podemos construir políticas e práticas educacionais em um cenário em que estas três dimensões sejam potencializadas? Garantia de acesso a escolas dignas e ao conhecimento historicamente elaborado? Valorização das diferentes culturas e reconhecimento de novas formas de vida? Desenhos curriculares que valorizem a voz dos estudantes e agenciem outros modelos democráticos para a participação estudantil? Essas são questões oportunas para o contexto brasileiro quando, em breve, poderemos estar restaurando nossas políticas progressistas.
Para nosso país, creio que podemos recompor este debate alargando nossa abordagem política em novas direções: 1) outros planejamentos dos tempos e espaços escolares, redefinindo a arquitetura escolar e redirecionando-a para um diálogo mais aberto e profundo com as comunidades; 2) reescrita da Base Nacional Comum Curricular, recompondo-a como um marco de qualidade educativa e como um campo para o entrecruzamento de narrativas plurais sobre a vida e sobre o mundo; 3) retomada das políticas de acesso à escolarização: ressignificando as dimensões do cuidado, da preparação para a cidadania, da ciência e da cultura; 4) democratização plena do acesso ao ensino superior e a elaboração de novos programas de educação tecnocientífica; 5) promoção de outras políticas docentes e a elaboração – compartilhada – de novos projetos educativos para o nosso tempo, abarcando questões da cidadania digital, do enfrentamento da crise climática e o fomento ao desenvolvimento local. Enfim, a justiça social que podemos construir para a escola brasileira carece de um reposicionamento que, neste momento, implica em um distanciamento dos imperativos do avaliar, regular e competir, substituindo-os pelas lógicas do bem-viver!
Referências:
FRASER,
Nancy. Justiça interrompida: reflexões
críticas sobre a condição ‘pós-socialista’. São Paulo:
Boitempo, 2022.
ACOSTA,
Alberto. O bem viver: uma
oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária,
Elefante, 2016.
SILVA,
Roberto Rafael Dias da. Posibilidades para una gobernanza escolar democrática
en los currículos de la educación básica en Brasil. Pedagogía y
Saberes, n. 57, v. 2, p. 51-60, 2022. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/362182691_Posibilidades_para_una_gobernanza_escolar_democratica_en_los_curriculos_brasilenos
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