06 setembro 2023

Neoliberalismo tupiniquim

Banco Central e Tesouro Nacional: um caso de captura regulatória

Como uma economia ortodoxa “fora de lugar” protege o rentismo no Brasil
Andressa Borges e Bruno Mader Lins/Le Monde Diplomatique


 

Em um importante ensaio denominado “As ideias fora de lugar”, o crítico literário Roberto Schwarz argumenta que, para pensar o Brasil, é preciso entender como, aqui, o liberalismo é uma ideologia de segundo grau. Se, nos países centrais, o liberalismo é considerado uma ideologia por ser um discurso parcialmente verdadeiro, Schwarz aponta que, em solo nacional, a ideologia liberal não alcança uma verdade sequer parcial, posto que descarrila por completo. Pensemos, por exemplo, na Constituição de 1891, que citava conceitos como livre indivíduo e igualdade, independente se completamente indefensáveis no contexto escravista da época. 

Essa bizarra peculiaridade da cultura brasileira foi excelentemente retratada por Machado de Assis, considerado pelo crítico como “um mestre na periferia do capitalismo”. Segundo Schwarz, Machado trabalha o assunto expondo suas principais implicações: a formação de uma classe média alta e elite amalucada (até mesmo literalmente, como é o caso em O alienista), que vive como se estivesse na Europa ao invés do Brasil. 

Dentre as diversas produções de Machado, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” foi a obra principal à qual Schwarz recorre para fazer a sua análise. Brás Cubas, um jovem rico que cresce no Brasil maltratando escravos, que se envolve com uma prostituta, entre outras situações, opta por estudar direito na Europa quando sente a necessidade de se formar intelectual e socialmente. Na opinião de Schwarz, Brás Cubas é um retrato paradigmático da elite nacional, que absorve diretamente a cultura e a educação europeias, ainda que se beneficiando da violenta realidade escravista brasileira.

As contribuições de Schwarz 

Dando sequência aos insights de Machado, Schwarz, por sua vez, propôs abordar duas questões fundamentais. A primeira delas é porque nossa interação é conduzida por uma semântica claramente desalinhada com a realidade local. Na opinião do crítico, o “amalucamento” de nossas elites é um reflexo direto de uma colonização que ocorre também no campo ideológico: característica da formação brasileira é a incorporação e uso descontextualizado de ideias provenientes de fora. 

A segunda questão é: se é evidente que estamos operando com ideias fora de nosso contexto, por que a comédia não se apresenta como tal? Em resposta a essa pergunta, destaca Schwarz que, se, por um lado, as ideias permanecem desconectadas de suas origens, por outro, o modo como são deslocadas é moldado pelos interesses das estruturas de poder locais, que, por sua vez, precisa ser ocultado para a manutenção do status quo.

No Brasil “a comédia é outra” 

Mais especificamente, Schwarz argumenta que a comédia brasileira surge quando, à elite nacional, interessa esconder o fato de que ideias descontextualizadas estão, na verdade, sendo reorganizadas para servir à manutenção de seus privilégios. Ou seja, importante característica da sociedade brasileira, segundo o crítico literário, é que a perpetuação dos privilégios da elite exige que se acoberte a forma sistêmica na qual ideias são ajustadas para atender ao seu interesse. 

Inclusive, observa Schwarz que isto deve ser escondido também daqueles diretamente beneficiados, elites. O que, por sua vez, dá o fundamento da nossa particular “comédia ideológica”. Pondo de maneira simples, é como se as classes altas brasileiras, ao serem confrontadas a ponderar as injustiças que sustentam os seus privilégios, seguissem a lógica do “se fazer de sonsas”. Ou, mais precisamente, e pensando a partir da complexidade que pressupõe o conceito de ideologia, segundo o qual subjetividades incorporam as relações de poder histórica e socialmente determinadas, “sejam honestamente sonsas”. 

Notem como, nesse enquadramento, o liberalismo descontextualizado cai como uma luva: não só esconde uma realidade de privilégios como permite ao topo da pirâmide social interpretar as “suas conquistas” (ou seja, seus privilégios) de maneira heroica, “é mérito próprio”. A implicação última, entretanto, é que os fatos passam a estar subjugados à necessidade política da teoria de ocultar a realidade injusta e desigual. Fruto direto desse enredo, o liberalismo nasce, no Brasil, mais capataz do que empírico. Instaura-se, assim, a comédia ideológica brasileira.

Uma teoria que passa por dois deslocamentos 

Mais especificamente, o liberalismo brasileiro é fundamentalmente de segundo grau, pois, para Schwarz, ele é resultado de dois deslocamentos. O primeiro deslocamento é o mesmo subentendido no conceito marxista de ideologia: um discurso verdadeiro e falso. Segundo essa escola, o liberalismo é em parte verdadeiro, quando, no âmbito político, a luta pelos direitos universais estabelece um Estado que assegura um patamar mínimo a todos os cidadãos nos países centrais. Reflete, portanto, mudança nas dinâmicas políticas a favor da classe trabalhadora europeia, ou, em termos do liberalismo político, da “vontade geral”. O que, por sua vez, dá embasamento empírico ao argumento da liberdade individual e da meritocracia. Contudo, o liberalismo é também falso quando as desigualdades geradas na esfera econômica minam constantemente a concretização dos próprios ideais liberais. 

O segundo deslocamento, por sua vez, é aquele particular à realidade brasileira, reflexo de sua condição colonial: a importação e reprodução descontextualizada de ideias liberais em país escravista. Ocorre que, aqui, os autointitulados liberais nunca abalaram as velhas hierarquias, das quais as elites locais se beneficiam diretamente: não expandiram a democracia, não questionaram os latifúndios, mantiveram relações de escravidão mesmo após a lei áurea, etc.  

Assim, nota-se, que, se o primeiro deslocamento expõe o liberalismo como meia verdade, o segundo, particular ao Brasil, retira qualquer resto de verdade que existia no primeiro. O que faz com que, em solo nacional, o liberalismo descarrile por completo. Diferentemente do seu par europeu, que é expressão do real jogo de forças político de lá, o liberalismo brasileiro não trabalha a favor de uma conciliação de classe favorável à classe trabalhadora. Pelo contrário, trabalha em nome das elites. 

Uma contradição particular ao Brasil 

Notadamente, o liberalismo brasileiro precisa cumprir a façanha dupla de, ao olhar de fora, servir de verniz, ou seja, assegurar que nossa elite esteja em consonância discursiva com os valores humanitários do estrangeiro civilizado; ao olhar interno, acobertar como operam as reais estruturas de poder locais, segundo a máxima: modernizar a nação sem comprometer os históricos privilégios da elite escravista. 

Por isso, Schwarz defende as “ideias fora de lugar” como paradigma e método: uma dialética particular e necessária àqueles interessados em pensar o nosso país. A qual defende como relevante ponto de partida para análise não apenas da formação do Brasil enquanto nação, mas também para uma interpretação mais profunda da cultura e das características ideológicas que constroem a nossa farsa. 

Metodologicamente, é possível sintetizar seu procedimento analítico da seguinte maneira: a realidade concreta emerge da interação entre dois pólos distintos. No primeiro pólo, encontramos o discurso tal como opera em sua origem na Europa. Nesse ponto, destaca-se sua função sistêmica e contradições originais, ou seja, as ideias enquanto reflexo das concretas relações de poder entre grupos e classes de lá. No segundo pólo, a realidade brasileira assume autonomia: um país com um histórico de escravidão que jamais experimentou uma revolução de baixo para cima, resultando na formação de uma desigualdade estruturante, que se caracteriza por sua capacidade de organizar as ideias e instituições ao invés de ser moldada por elas. O concreto, por sua vez, emerge da reconciliação desses dois pólos: resulta do exame sobre como ideias, mercados e instituições são distorcidas no contexto nacional, em prol das elites.

Um paradigma e método atual?  

Embasados no autor, a questão que o nosso artigo busca responder é: o paradigma continua sendo válido para compreendermos a realidade neoliberal? A conclusão a que chegamos é que “sim”. Como mais bem detalhado na sequência, da era liberal à ascendência do neoliberalismo, a problemática perdura: a ortodoxia econômica replica o que fizera o liberalismo brasileiro clássico, especialmente mediante a condução da política econômica.  

Ocorre que, durante a recente tentativa de instituir o Estado de Bem-Estar Social no Brasil, as elites neoliberais deturparam novamente as instituições, desviando-as dos princípios da própria teoria na qual alegam basear-se. Esse cenário é particularmente visível no que diz respeito à chamada política monetária: ao contrário do resto do mundo, no Brasil, ela não funciona como determina a teoria, mas foi deturpada para servir ao rentismo.  

Como consequência desse cenário, o Brasil é, frequentemente, a nação com as taxas de juros reais mais elevadas globalmente, tanto no âmbito do mercado de dívida pública quanto no mercado de crédito. O que por sua vez, permitiu com que a elite proprietária de capital, juntamente com o setor bancário-financeiro, acumule, em média, quase 30% do Produto Interno Bruto sob a forma de rendimentos oriundos de juros.

Contexto histórico  

Se Schwarz retrata o liberalismo oitocentista, que era de cunho político, a atualização que esse artigo busca fazer retrata a fase neoliberal, que nasce nos anos de 1970, e é de cunho econômico.  Notadamente, o neoliberalismo brasileiro tem suas origens no período pós-crise do petróleo (1973), um momento em que o país enfrentou sérias adversidades. Nesse período, diante do difícil contexto macroeconômico, nossa elite reagiu de maneira exploratória: instituições foram subvertidas, visando a obtenção de taxas de juros excessivas. 

Mais especificamente, capitalizando sobre os dilemas característicos de um país periférico, que enfrentava a crise da dívida externa e a hiperinflação nas décadas de 1980 e 1990, ocorreu que os detentores de capital, em prol da manutenção de suas taxas de lucro, exacerbaram a necessidade do Banco Central e Tesouro Nacional em buscar financiamento interno, demandando delas simultaneamente liquidez, segurança e altos rendimentos. 

Essa situação teve implicações significativas: ao atender a essas demandas, o Brasil fortaleceu sua moeda nacional, evitando a fuga de capital e a dolarização da economia (como ocorreu na Argentina). No entanto, títulos indexados e juros reais altíssimos permitiram a formação de uma hegemonia financeiro-rentista, que expandiu drasticamente seu poder político e econômico nas últimas décadas.

Instituições operando fora de lugar 

Uma análise histórica da atuação das duas instituições atesta a relevância do paradigma de Schwarz, pelo menos àqueles que buscam entender a comédia promovida pela economia ortodoxa, que está disposta a praticar qualquer tipo de malabarismo teórico para justificar o injustificável: o Brasil ser, frequentemente, o país dos juros reais mais altos do mundo. Mais especificamente, em relação à política monetária, o duplo deslocamento se torna evidente, quando: 

(i) nossas instituições não reproduzem o que dita a teoria econômica tradicional. Idealmente, o Tesouro Nacional emitiria títulos préfixados, enquanto o Banco Central conduziria operações de mercado aberto do tipo definitiva. Porém, a realidade brasileira difere do resto do mundo, visto que nosso Tesouro emite títulos indexados e o Banco Central realiza operações do tipo compromissadas;  

(ii) a teoria ortodoxa trabalha em prol de ocultar o caso de captura regulatória que vive as instituições. Escondem que, diferentemente dos outros países, no Brasil, ocorre uma disputa por financiamento entre Banco Central e Tesouro da qual resulta uma sistemática vantagem para os detentores de capital em detrimento das classes médias e baixas, que se veem obrigadas a arcar com altos custos para execução da política fiscal e monetária. 

Dividir para conquistar 

Notadamente, mais de vinte anos após o Plano Real, é possível inferir que talvez o que alguns economistas nomearam de “efeito contágio”, “falta de sinergia”, “fusão das finalidades” entre Banco Central e Tesouro Nacional, seja, no fundo, reflexo da capacidade dos detentores de capital de tirar proveito do Estado brasileiro. Deixemos, portanto, claro ao leitor o seguinte: o que o segundo deslocamento ideológico esconde na atual fase neoliberal é que as instituições estão sendo extorquidas segundo a máxima maquiavélica “dividir para conquistar”. 

Se não for essa a explicação, como então justificar uma realidade na qual papéis, em ambos os mercados, foram indexados à taxa de juros Selic, tornando-se substitutos perfeitos? De fato, no Brasil, investidores têm a opção de alocar seus investimentos em títulos indexados à taxa Selic no mercado de reservas (repos), administrado pelo Banco Central, e no mercado de títulos (LFTs), administrado pelo Tesouro Nacional; num arranjo que perpetua altos rendimentos para a elite investidora. 

Ao vencedor as batatas 

As implicações do contexto de captura regulatória estão sendo atualmente expostas pela heterodoxia econômica a partir da análise dos “canais-rentistas” operados pelo sistema financeiro brasileiro, como detalhado no texto “Por que o Brasil tem os juros mais altos do mundo?” Nesse artigo, porém, focamos em comentar as consequências diretamente relacionadas ao arranjo competitivo entre Banco Central e Tesouro. Do qual deriva a impossibilidade do Tesouro de corrigir individualmente as problemáticas aqui retratadas. 

Ocorre que, mesmo quando o Tesouro tentou ir na direção correta de reduzir o alto custo do financiamento, aumentando, de 2008 em diante, a emissão de títulos préfixados e com prazos mais longos, em 2015, ele acabou sendo forçado a retroceder: passou a emitir novamente mais títulos indexados à Selic, cedendo à pressão provinda do mercado com o qual compete diretamente, o de reservas bancárias organizado pelo Banco Central. Notadamente, neste segundo mercado em particular, investidores têm enorme facilidade em forçar o Banco Central a ofertar as compromissadas desejadas por eles. 

À guisa de conclusão 

Em suma, o particular arranjo brasileiro consolida um enorme desequilíbrio de forças: detentores de capitais passam a facilmente subjugar ambas as instituições à lógica do “quem oferecer maior retorno em menor tempo, vence”. Da estrutura competitiva entre Banco Central e Tesouro, deriva que nenhuma tentativa isolada resolve o problema, uma vez que os detentores de capital são proficientes em compensar perdas de um mercado com ganhos no outro. Em outras palavras, embora o Banco Central não restrinja diretamente a emissão do Tesouro, ele exerce influência sobre a composição de sua carteira, impossibilitando a realização de qualquer correção individual que busque abordar o problema. 

Em sentido teórico, conclui-se, que, do liberalismo clássico ao neoliberalismo, teorias continuam “fora de lugar” no Brasil. A diferença é que, no neoliberalismo, a função ideológica foi repassada à ortodoxia econômica, que, ressaltemos aqui, segue cumprindo de maneira exemplar a função de ignorar e ocultar a forma na qual instituições são deturbadas para servir à elite rentista. Dando sequência à comédia brasileira, agem como se o Tesouro Nacional e o Banco Central daqui funcionassem como os de lá. Resta à heterodoxia econômica, portanto, fazer tanto o papel das esquerdas, como também o papel de um verídico liberal: investigar a disfuncionalidade dos dois mercados, em contraste com sua eficácia em proporcionar altos retornos para os agentes superavitários da economia. 

Andressa Borges é formada em letras na UFRJ, mestre em Estudos Anglo-Americanos pela Universidade do Porto e autora do livro “Ditadura Feminazi, Satânica, Pós Moderna”. 

Bruno Mäder Lins é cientista social formado na USP, mestre em Política Econômica pela Universidade de Genebra, e doutorando em economia pela UFRJ.

[Ilustração publicada  no Viomundo]

Nem todos os caminhos levam aonde se quer https://bit.ly/3Ye45TD

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