Quanto custa proibir as drogas?
O combate ao tráfico de drogas é a justificativa para incursões policiais bélicas em territórios específicos que deixam centenas de corpos pelo caminho. Mas você já parou para pensar nas demais consequências da política proibicionista?
Mariana Siracusa, Rachel Machado e Paula Napolião/Le Monde Diplomatique
Há mais de 200 anos o Estado brasileiro proíbe o consumo e a venda de certas substâncias psicoativas. A legislação vigente, conhecida como Lei de Drogas (11.343/06), despenalizou a posse para o uso – ainda passível de outras sanções seguindo, portanto, na esfera criminal – mas manteve as penas de privação e restrição de liberdade para o tráfico de drogas, que variam de 5 a 15 anos. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) discute a descriminalização da posse de drogas para consumo pessoal.
Desde a sua aprovação em 2006, a lei provocou um aumento vertiginoso no encarceramento de jovens negros, moradores de favelas e periferias. O combate ao tráfico de drogas é a justificativa para incursões policiais bélicas em territórios específicos que deixam centenas de corpos pelo caminho. Mas você já parou para pensar nas demais consequências da política proibicionista? Nessa guerra ao pequeno varejo das drogas, os moradores têm sua vida afetada em múltiplas dimensões: são impedidos de sair para trabalhar, crianças têm aulas suspensas, unidades de saúde têm o funcionamento interrompido e o comércio local não consegue funcionar.
Tudo isso tem um custo social e econômico para o Estado e a sociedade. Porém, essas cifras eram, até então, desconhecidas. Por isso, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) se dedicou à tarefa de mensurar os custos orçamentários e financeiros da guerra às drogas através do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir.
Implementar a legislação proibicionista requer a atuação de diversas instituições e mobiliza muitos recursos públicos. Processar, julgar e encarcerar pessoas por crimes relacionados a drogas tem impactos nos orçamentos estaduais e federais. Calculamos que apenas os estados do Rio de Janeiro e São Paulo gastaram, em um ano, 5,2 bilhões de reais para implementar a Lei de Drogas, considerando as despesas das sete instituições do sistema de justiça criminal: Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Defensoria Pública, Tribunal de Justiça, Sistema Penitenciário e Sistema Socioeducativo.
As operações policiais também impedem que jovens tenham pleno acesso à educação. A comparação entre dois grupos de alunos da rede municipal do Rio de Janeiro, semelhantes em várias características socioeconômicas, mas expostos a diferentes níveis de violência armada permitiu avaliar o impacto da guerra às drogas no desempenho escolar desses jovens. Os resultados demonstraram que os tiroteios no entorno de escolas provocaram perdas de 64% no aprendizado esperado em Língua Portuguesa e de todo o aprendizado esperado em Matemática para crianças do 5º ano da rede pública municipal, de acordo com os dados da Prova Brasil, avaliação padronizada realizada pelo Ministério da Educação. Os danos provocados pela exposição à violência armada no desempenho escolar podem converter-se em prejuízos eco nômicos: ao longo da vida produtiva, um estudante poderia ter uma redução em sua renda de até 24 mil reais.
Os impactos da guerra às drogas no estado de saúde dos moradores e na oferta dos serviços também são devastadores. Para medi-los, aplicamos questionários a 1.500 moradores de seis comunidades do Rio de Janeiro que, apesar de semelhantes do ponto de vista socioeconômico, foram expostas a diferentes níveis de violência armada. Constatamos que conviver com tiroteios adoece: as proporções de adultos com hipertensão arterial, insônia prolongada, ansiedade e depressão são maiores nos territórios onde esses tiroteios ocorrem com frequência quando comparados a outras áreas. Aproximadamente 51% dos moradores das comunidades com mais tiroteios sofrem com algumas dessas condições em relação a 35,9% do grupo de moradores não afetados pela violência armada. Viver em locais constantemente violentados pelo braço armado do Estado também aumenta em 42% as chances de desenvolver hipertensão e dobra o risco de sofrer com sintomas típicos de ansiedade e depressão.
Além de afetar a saúde física e mental de moradores de favelas, o Estado ainda arca com os custos de sua desastrosa escolha política: o fechamento das unidades de saúde nos três territórios frequentemente expostos a violência armada tem um custo anual de cerca de 317 mil reais para os cofres públicos e para a sociedade.
Debater a escolha pela guerra às drogas é debater orçamento público e desperdício de recursos. Cabe lembrar que os gastos com esta política são distribuídos por toda a sociedade, mas uma parcela específica sofre diretamente as consequências dessa escolha e paga o preço mais alto: moradores de favelas e periferias, majoritariamente negros. As substâncias ilícitas circulam em todas as áreas da cidade, sendo, inclusive, amplamente consumidas e vendidas em áreas privilegiadas. Ainda assim, as favelas são o palco dessa guerra e as operações quase diárias nesses locais causam prejuízos na renda de moradores e no faturamento de comércios/prestadores de serviços.
Para mensurar esses impactos, entrevistamos 800 moradores maiores de 18 anos dos complexos de favelas mais afetadas por tiroteios envolvendo agentes de segurança entre junho de 2021 e maio de 2022 (dados fornecidos pelo Instituto Fogo Cruzado) na cidade do Rio de Janeiro: Penha e Manguinhos, ambos localizados na Zona Norte. Aproximadamente 88% deles relataram a ocorrência de ações da polícia nos 12 meses anteriores à pesquisa. Esse dado demonstra que os moradores são obrigados a vivenciar uma rotina de medo e insegurança que os impede de realizar atividades cotidianas como trabalhar, estudar e comparecer a consultas médicas. Entre aqueles que relataram a ocorrência de ações da polícia e exerciam atividades remuneradas, 60,4% ficou impedido de trabalhar devido à violência policial. Durante essas aç ões, bens privados como caixas d’água, paredes e portas, eletrodomésticos, móveis e veículos são danificados ou destruídos. Todos esses impactos afetam a renda dos moradores dos complexos da Penha e Manguinhos, que podem perder até R$ 14 milhões por ano; R$ 9,4 milhões referente aos dias impedidos de trabalhar em função de tiroteios com participação de agentes de segurança e R$ 4,7 milhões por danos nos bens individuais.
Os comerciantes e prestadores de serviços dessas áreas também contam seus prejuízos. Embora estabelecimentos como salões de beleza, lanchonetes e lojas de roupa sejam fundamentais para a economia local, eles têm seu faturamento afetado por conta da violência do Estado. Para estimar essas perdas, selecionamos duas favelas com maior número de tiroteios com agentes de segurança nesses complexos: Vila Cruzeiro e Mandela de Pedra. Donos, gerentes ou funcionários de todos os 303 estabelecimentos foram entrevistados e relataram ter tido prejuízos com bens e mercadorias danificadas em função desses episódios. Na Vila Cruzeiro, 51,3% dos comerciantes e prestadores de serviços tiveram que fechar as portas em decorrência de ações policiais, o mesmo ocorreu com 46,3% dos empreendedores de Mandela de Pedra. O prejuízo total, considerando os bens e mercadorias avaria dos e a perda no faturamento, foi de 2,5 milhões de reais por ano, o que representa mais de um terço (34,2%) do faturamento médio dos empreendedores das duas áreas.
Os dados da pesquisa Quanto Custa Proibir revelam que a política de combate às drogas tem alvo, cor e endereço. Esta é uma escolha cara que produz graves consequências para moradores de favelas, constantemente na mira do tiro. Quando não mata, encarcera a juventude negra, interrompendo sonhos e projetos, e destrói famílias e comunidades inteiras que choram a morte de seus filhos, netos e amigos. Tudo isso legitimado pelo racismo, que historicamente desumaniza a população negra e respalda a atuação violenta e desordenada do Estado nesses territórios. Até quando vamos contabilizar essas perdas?
Mariana Siracusa e Rachel Machado são sociólogas e coordenadoras do Cesec.
Paula Napolião é antropóloga e coordenadora de pesquisa na mesma organização.
Viver é mais do que existir https://bit.ly/3Ye45TD
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