Notícias sobre a arte incomum
Raul Córdula
“Uma das funções mais poderosas da arte é a revelação do “inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado anormal. As imagens do inconsciente são apenas uma linguagem simbólica que os psiquiatras têm por dever decifrar. Mas ninguém impede que essas imagens e sinais sejam, além do mais, harmoniosas, sedutoras, dramáticas, vivas ou belas, constituindo em si verdadeiras obras de arte.”
Mário Pedrosa
O sistema da arte, tal como conhecemos hoje, existe há mais ou menos meio milênio. O sistema da arte, não as formas e conteúdos que compõem o fenômeno artístico, ou ainda as atitudes dos artistas. Produzir objetos artísticos em ateliês e oficinas, entregar as obras a um comerciante ou colocá-las em lojas de decoração e galerias de arte, participar de concursos como bolsas, salões e bienais, competir uns com os outros como parte de uma corte ou uma elite comentada por jornalistas e estudada por críticos de arte, ou ainda conduzidos para os portais da fama pelos curadores são ações que passaram a fazer parte da vida dos artistas a partir do renascimento. Antes a maioria dos artistas trabalhava anonimamente, não se interessava pela assinatura no canto da tela, no vitral ou na escultura, embora alguns tivessem personalidades tão fortes que seus nomes sobrepujaram suas obras.
A burguesia européia transformou o artista num ídolo, numa estrela, ao incentivar a competição como fator de sucesso e de riqueza: o mais bem-sucedido era o mais bem pago. E é assim até hoje. Este “sistema de arte”, sobre o qual muitos teóricos preconizam a decadência e a morte, indicando como viva apenas a arte contemporânea, é excludente e injusto. Privilegia uma elite financiada por mecenas de gosto pessoal que corresponde hoje ao que foram os Reis e os Papas do Renascimento, representada pelo sistema financeiro e o poder governamental que, através das instituições de cultura imita este procedimento e o oficializa.
Os pintores neolíticos das cavernas européias, por exemplo, assim como os pintores da Serra da Capivara e da Pedra do Caboclo, no Sertão nordestino, os escultores africanos de Benin ou gregos das Cíclades, os pintores cretenses ou romanos da antiguidade, os escultores da Magna Grécia e do Império Romano, eram anônimos, e se conhecemos o nome de Praxíteles e Fídias, o sabemos através das suas importantes participações na vida da cidade de Atenas não apenas como artistas, mas como cidadãos que a transformaram num dos maiores monumentos urbanos da humanidade.
Em grego tradicional a palavra para arte é tecné: técnica, maneira de fazer. Saber fazer era o fator determinante para se atingir na antiguidade clássica o que chamamos hoje de arte. Mas o sistema grego – democracia, porém escravocrata – já preconizava uma certa hierarquia entre os artistas, tanto que o Renascimento Italiano se baseou em muitos princípios da arte grega, e ainda hoje essas relações são as mesmas que ainda conhecemos e exercemos. Os gregos e seus sucessores romanos eram competitivos por natureza, eram apolíneos, guerrei ros, conquistadores. Embora no teatro a polaridade entre o sentido apolíneo e o dionisíaco, a dicotomia que Nietsche se refere em “A Origem da Tragédia”, estivesse sempre presente, nas artes plásticas a verdade objetiva, a abordagem da realidade, imperava. Na Grécia antiga a estatuária, principal manifestação da arte grega, a expressão da realidade.
Mas se olharmos o passado antes do renascimento, se observarmos a antiguidade clássica e viajarmos pelo tempo indo à arte bizantina, à arte do extremo oriente e a arte islâmica, ou se voltarmos à Mesopotâmia, ou ainda, se viermos à América pré-colombiana visitar as civilizações andinas, centro-americanas e mexicanas, se vermos a arte ínsita, ou primitiva, ou ainda naife, como preferem chamar alguns, de todos os povos do Novo Mundo, veremos que muito pouco disso está, inserido no sistema e no mercado das artes visuais conforme conhecem os.
A escultura de Mestre Vitalino de Caruaru é tão vigorosa quanto a de Henry Moore ou a de Victor Brecheret, e as máscaras africanas e dos povos da Oceania que deram origem a muitas pinturas de Picasso, entre elas “Demoiselles d’Avignon”1, “Crucificação” e “Guernica”, ícones da cultura moderna, são tão eloqüentes quanto a arte moderna. No entanto Vitalino e seus pares aborígenes não estão no mercado de prestígio da arte, são apresentados como curiosidade e artesanato, à margem do mer cado. Entre Vitalino e Moore falta riqueza de conhecimento técnico, filosófico e estético. Falta riqueza financeira, dinheiro. Se Vitalino tivesse uma educação européia e os recursos que Moore teve para desenvolver sua obra, quem poderia dizer que ele não seria hoje reconhecido como um artista à altura de Moore? Mas Vitalino, como milhares de artistas como ele, viveu no apartheid social, à margem da Sociedade. A diferença entre “arte erudita” e “arte popular”, na verdade, é a diferença entre a “arte dos ricos” e a “arte dos pobres”. Entre a arte das galerias e a arte das periferias do mundo.
“À margem da Vida”, título do famoso romance de Tennessee Williams, foi também título de uma importante curadoria que o crítico de arte Frederico Morais realizou para Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1974, quando ele apresentou pinturas de crianças, de idosos, de presidiários e de pacientes psiquiátricos. Frederico mostrou pela primeira vez a obra de Artur Bispo do Rosário. Este grande artista, que foi reconhecido pela crítica de arte como um dos grandes artistas contemporâneos brasileiros, nunca foi integrado ao sistema oficial da arte por causa de sua condição de doente mental, embora ele tenha influenciado profundamente a arte contemporânea, a ponto de uma das suas maiores estrelas, o c earense Leonilson, no fim de sua vida (ele viveu pouco vítima de AIDS) ter tratado suas obras em toalhas e lençóis bordando-as, como fez Bispo do Rosário.
Bispo do Rosário não foi e não será um caso isolado. No Museu do Inconsciente, obra exemplar da psicanalista Nise da Silveira, encontram-se artistas da qualidade de Emidgio, Diniz, Raphael, Carlos, Octávio, Abelardo, entre outros que assinam assim mesmo, com um só nome, quase anônimos, e completamente desconhecidos, como todos os artistas de todos os centros de saúde mental que emprega arte-terapia, como este do Hospital Ulisses Pernambucano, onde estão Ailton, Marjorie, Patrícia, Dorgival, Raquel e Marcelo, e para onde tantos artistas solidários acorrem para partilhar com eles seus conhecimentos, como o pintor e ceramista Joelson Gomes, o fotógrafo Luis Santos, o escultor e ceramista José Paulo, o músico e poeta Gonzaga Leal, o percussionista e compositor Erasto Vasconcelos, e a artista multimídia Ana Santiago, atual arte educadora do Centro de Arte-terapia - CAT, da mesma forma como fizeram, na experiência do Museu de Imagens do Inconsciente, artista e críticos de arte como Almir Mavignier, Mário Pedrosa, Frederico Morais, Iberê Camargo e Martha Pires Ferreira, e Letícia Damasceno.
Este namoro entre a arte dos loucos e a arte dos normais é antigo e profícuo, vem desde a idade média, com Boch e Breugel, e passa pelos artistas românticos e pela atmosfera sutilíssima dos pintores pré-rafaelistas ingleses influenciados por Lorde Byron, pelo pintor e poeta visionário William Blake, pelo fantástico pintor Richard Dadd que numa crise de loucura matou o próprio pai, por Van Gogh, que pintou com tanta genialidade seus álter egos: o amigo Paul Gauguin e o seu médico, o psiquiatra Dr. Gachet. E ainda pelos artistas expressionistas alemães e nórdicos, com atenção para a obra de Munch, chegando aos dadaístas e surrealistas. “Corvos sobre o trigal”, a última pintura de Van Gogh, e “O Grito”, a pintura emblemática de Munch, são marcas fundamentais das ligações entre arte e loucura.
No belo artigo de Teixeira Coelho editado em “Psiquiatria, Loucura e Arte”2 intitulado “A arte não revela a verdade da loucura, a loucura não detém a verdade da arte”, está dito que o binômio Arte & Loucura foi uma questão importante do século XIX. Mas o mais interessante está nos comentários que o autor tece a respeito da relação entre este binômio e o nazismo. Ele revela, por exemplo, que em 1937 o regime nazista organizou em Berlim uma exposição sobre a “arte degenerada” “r&oa cute;tulo que compreendia toda a arte dita de vanguarda feita no início do século XX cronológico. Intenção do regime: deixar bem claro aquilo que dali por diante os artistas do nazismo não podiam mais fazer. Uma das obras que foram alvo do ataque nazista pode ser vista no acervo do Museu de Arte Contemporânea da USP: “A Santa da Luz Interior”, de Paul Klee, realizada entre 1921 e 1922. Sob o título de “Ética e Alienação”, o catálogo daquela exposição deu um destaque especial à obra de Paul Klee para dizer que não passava de fruto de um esquizofrênico fugido do hospício. No discurso de abertura da exposição Adolf ziegler3 lamenta-se: Em torno de nós vê-se o monstruoso fruto da insanidade, imprudência, inépcia e completa degeneração. O que esta exposição inspira é horror e aversão em todos nós.”
Teixeira Coelho continua a revelar a realidade do preconceito nazista na sua mais cruel verdade: “Num discurso sobre a arte moderna Adolf Hitler avisara: De agora em diante, iremos empreender uma guerra implacável contra os últimos remanescentes da desintegração cultural (...). Por tudo que apreciamos, esses bárbaros pré-históricos da Idade da Pedra podem retornar às cavernas de seus ancestrais e lá realizar seus rabiscos primitivos internacionais”.
Adiante ele esclarece: “Os nazistas souberam escolher seus inimigos; Klee entre eles. Pretendeu fazer uma arte internacionalmente baseada no “primitivo” e no “infantil. Mais tarde, esta mistura de primitivo e infantil iria resultar na chamada art brut, como a de Dubuffet, por exemplo”.
Voltemos aos artistas do Centro de Arte-terapia do Hospital Ulisses Pernambucano. Do ponto de vista de suas pinturas os pacientes aqui citados são todos artistas, criam símbolos visuais de grande beleza e expressão. Mas pela condição de pacientes psiquiátricos, porém, não chegam nem mesmo a ser completamente cidadãos, dependem do sistema médico e estão à margem do sistema da arte. Mas também não se consideram artistas, pois nada sabem do sistema da arte. No entanto, para muitos deles, a arte é o território da liberdade.
Território de liberdade é o lugar perfeito para a singularidade expressa por eles. Por isto suas pinturas e esculturas são chamadas também de “Arte Incomum”. Não que elas sejam raras, ao contrário, são muito mais abundantes e comuns do que se pensa antes de se entrar num hospital que possua um centro de arte-terapia como este do Hospital Ulisses Pernambucano. Mas ela é também abundante nas manifestações espontâneas da arte chamada de “popular” – a arte dos pobres, ou ainda nas expressões aliadas ao artesanato do barro e às estampas da poesia de cordel, por exemplo. Se nós verificarmos a arte dos índios veremos também como é abundante a expressão simbólica at ravés da criação de imagens do inconsciente, aquilo que chamamos, à priori, de arte. Porque então são todas incomuns, se são tão comuns e tão normais na sua maneira de representar o mundo íntimo de cada indivíduo que as prática?
Não se estabeleceu nenhum consenso a respeito do conceito de arte no decorrer dos últimos cinco séculos. Num universo onde o repertório simbólico é tão diversificado, onde se pode comparar um desenho a grafite com uma pintura a óleo, uma instalação de Joseph Beuys com uma fantasia de carnaval, um Parangolé de Hélio Oiticica com uma gravura de Rembrandt, ou o urinol que Marcel Duchamp transformou na sua famosa Fonte com o edifício do Museu Guggenheim de Bilbao, não se pode dizer mais que arte é isto ou é aquilo. O famoso diálogo de Waltércio Caldas ainda é um dos mais eloqüentes teoremas lingüísticos a respeito da definição da arte: “Isto é arte? Arte é isto”.
Frederico Morais, certamente inspirado pelo comentário de D. Formaggio “arte é tudo aquilo que os homens na história chamaram e chamam de arte”4, organizou um de seus mais instigantes trabalhos, o livro “Arte é o que eu e você chamamos de arte”, onde ele relaciona “801 definições sobre arte e o sistema da arte”.
Sobre esta questão quero relatar um fato que vivenciei em 1963 quando, convidado para a festa de aniversário de Lígia Clarck no seu apartamento da rua Prado Júnior, ela me pegou pelo braço e disse: “Paraibano, venha ver meu Klee”. Na parede do seu escritório havia um pequeno quadrado de madeira recoberta de algas secas pelo tempo, que ela tinha encontrado na praia. Alguns pregos enferrujados, furos feitos por animais marinhos e umas pequenas cascas de moluscos grudadas desenhavam esquematicamente uma carinha de menino sorrindo, como desenharia o artista suíço. A obra se fez pelo acaso, mas foi preciso que Lígia a notasse para ela se tornar uma obra de arte, antes disso ela não existia, e foi intitulada de Klee pela sua “autora”. At itudes como esta são foram inauguradas por Duchamp na década de 10 a 20 do século passado, e os objetos artísticos decorrentes disso chamam-se ready-made. Há praticamente um século a arte não se baseia mais nas questões acadêmicas nem aos cânones mercadológicos, incluindo as questões autorais, ela pode se basear na própria arte, em vez da natureza, e a estas apropriações há muito que se legitimaram. Portanto, o que seria arte? Ou melhor, podemos ter dúvidas sobre a arte dos pacientes psiquiátricos? Se compreendermos isto, uma pergunta se faz pertinente: os médicos, os terapeutas e o corpo funcional dos hospitais, normalmente pessoas de classe mé dia, informadas e relativamente cultas, possuem nas paredes de suas casas pinturas dos artistas internos dos hospitais psiquiátricos? Ou preferem pinturas escolhidas nas galerias de arte ou lojas de decoração, atendendo ao sistema oficial da arte? Ou ainda, quantas vezes nos espaços oficiais da arte nós temos oportunidade de ver mostras de pinturas de usuários do sistema psiquiátrico – Bispo do Rosário é um caso à parte –, a exemplo da curadoria de Frederico Morais em 1974?
“Arte Incomum” foi um dos segmentos da XVI Bienal de São Paulo, em 1981, que teve a curadoria da Professora Annatereza Fabris, com o texto curatorial “Cosmogonias outras”. O Curador Geral da XVI Bienal foi Professor Doutor em História da Arte e Crítico de Arte Walter Zanini A Bienal foi composta também por outros segmentos, como Arte Postal5, e as mostras do surrealista Delvaux e do americano, a meu ver também um artista incomum, Philip Guston. Toda a questão da Arte Incomum está colocada na Tese de Doutoramento em Psicologia “Olho D’Água. Arte e Loucura em Exposição: A questão das leituras”, defendida na USP por João A. Frayze-Pereira, em 1987.
O segmento “Arte Incomum” iria se chamar “Arte Bruta”, termo que Jean Dubuffet usou para classificar as manifestações da arte ligada ao inconsciente, como a dos loucos e dos “primitivos”, mas ele não permitiu usar o termo, registrado por ele, para uma exposição cujas obras ele não selecionara. Isto fez com que a Bienal procurasse outro título, encontrando “Arte Incomum”. Participaram de “Arte Incomum” trinta e dois artistas, os pacientes psiquiátricos como Carlos, Adelina, Emidgio, Fernando, Raphael, e artistas ligados ao mercado de arte, como Antonio Poteiro, artistas ditos “populares”, como Geraldo Teles de Oliveira – GTO, artistas de trânsito internacional, como os alemães Ado lf Wölfli, e Heinrich Anton Muller e os ingleses Scotie Wilson e Mdge Gill, e os arquitetos espontâneos Gabriel do Santos, do Brasil, e o carteiro francês Facteur Cheval.
Annatereza Fabris, no artigo “O paradoxo do outro”, que prefacia a tese de Frayze-Pareira7 define a obra de Dubuffet e coloca a participação do poeta André Breton, autor do Manifesto Surrealista, na construção teórica que levou o pintor francês a conceituar “Arte Bruta”. Assim nos fala Annatereza: “Não se pode esquecer que a própria produção de Dubuffet, a partir dois anos 40, é uma expressão bruta, uma representação elementar e “regressiva”, que se inspira no desenho infanti l e nas formas não-culturalizadas”. “Na base do pensamento de Dubuffet está a influência de Breton que percebia na produção “anormal” a possibilidade de renovar os conceitos mais consolidados da crítica de arte. Embora se interessasse também pala produção naife, é, contudo, na arte dos doentes mentais que Breton detecta um reservatório de saúde moral, longe do “falso testemunho social”, a liberdade total dos mecanismos de criação, a garantia da autenticidade absoluta”.
No mesmo artigo Annatereza Fabris relaciona as questões que o autor da tese nos coloca para pensar, vinte e seis anos depois, nos destinos de um centro de saúde mental como este hospital Ulisses Pernambucano, que se preocupa em projetar seu futuro numa perspectiva de inclusão social e cultural. Ela diz: “Partindo do pressuposto da exposição João Frayze-Pereira levanta perguntas difíceis e instigantes: o que significa expor loucura? O que significa conservar suas obras num museu? Terá a loucura, através da arte, encontrado um lugar que a “recupere” aos olhos da cultura contemporânea?”
Aprendemos nesta tese que a arte dos loucos foi considerada pela primeira vez em 1922 através do trabalho do alemão H. Prinzhorn “expressions de la folie8”, onde o autor realiza uma análise formal sobre 5.000 trabalhos de 450 pacientes esquizo frênicos. Frayze-Pereira informa que, entre outros artistas, “Max Ernst e Paul Klee manifestaram fascinação diante da estranheza a espontaneidade dessas criações que eles próprios procuravam atingir, muitas vezes, por meios artificiais”. Ele continua: “Entre nós, em 1933, Flávio de Carvalho organiza em São Paulo uma exposição com desenhos de crianças e loucos. A iniciativa não só questiona o academismo da Escola Nacional de Belas Artes como, segundo Annatereza Fabris, significa ‘uma ocasião para criticar o medíocre gosto da classe média, que, centrado em cenas de amor/procriação, repele o anormal por colocar em crise seu sistema de valores, por revelar o que há de mais profundo no homem e na natureza: o [...] demoníaco, mórbido e sublime’”. Pode-se ver por estes fatos que o questionamento sobre a arte dos loucos inicia-se na primeira metade do século passado. O autor cita os comentários de Mário Pedrosa sobre uma exposição de pinturas dos internos do Centro Psiquiátrico Nacional9 em 1947: “A realidade é que o mundo de agora não sabe o que é arte. Não consegue o público discernir o fundamental do fenômeno artístico”. “Daí sua incompreensão da chamada arte moderna, e sua incompreensão ain da maior em face de uma experiência como a exposição do Centro Psiquiátrico Nacional”.
O preconceito com a arte não acadêmica vigorou também no território da crítica de arte. Em 1949 o crítico de arte carioca Quirino Campofiorito, a respeito da exposição “9 Artistas do Engenho de Dentro”, que teve o apoio teórico e crítico de Mário Pedrosa, teceu o seguinte comentário10: “A nossa opinião sobre estes desenhos e essas pinturas é que são medíocres demonstrações artísticas e trazem as fraquezas das obras casuais, improvisações inconsistentes, deficient es todas dessas condições de inteligência e razão que deve marcar a criação artística. Se usamos dessa franqueza quando nos referimos à produção de muitos artistas profissionais, isto é, indivíduos absolutamente conscientes do que fazem e para que fazem, o mesmo devemos fazer nesse caso de uma mostra de trabalhos de enfermos mentais, recolhidos desde a infância a um hospital de alienados, e que só há muito pouco tempo foram levados a desenhar e pintar apenas por necessidade terapêutica. E com maior razão essa franqueza se impõe quando desejam muitos dar a esta exposição o valor de uma excepcional exibição de obras de arte. De excepcional aí só existe o resultado obtido com o definido tratamento terapêutico, que positivamente representa um humano benefício para essas infelizes criaturas”. Mário P edrosa reage a esta maneira de ver a arte dos loucos em texto de 1951: “um empobrecimento intelectual” “chocante”, “pernicioso e abominável” “Que reação tem o público em face das mesmas considerações no passado (refere-se às civilizações antigas) como altamente inspiradas ou dignas de consideração? A mais reles possível, a mais acanhada, preconceituosa e maléfica. E por isso é-se tão propenso a escarnecer de seus manifestantes, tão brutalmente solícitos em isolá-los, esmagá-los, pela camisa-de-força e o confinamento, a destruição moral, espiritual e física; é o reino do utilitarismo burguês, em uma de suas manifestações mais baixas e vulgares”.
Voltemos, pois, ao Artigo de Annatereza Fabris, onde ela coloca a posição de Nise da Silveira associada à de Mário Pedrosa na consideração desta questão: “Mas, como ocorre em nosso século o encontro entre a dimensão psicológica e a dimensão estética? Nise da Silveira e Mário Pedrosa poderão esclarecer a questão, uma vez que tipificam a leitura a partir da psicologia e a análise a partir da estética. Nise da Silveira, como João Frayse-Pereira demonstra, considera as produções do Museu de Imagens do Inconsciente como verdadeiras obras de arte, como expressões do inconsciente coletivo. Para compreender esta afirmação, é necessário lembrar que o muse u de Imagens do Inconsciente nasce de uma prática de ateliê, recobrindo três esferas principais – o interesse científico, a psicoterapia e a valorização das qualidades estéticas presente tanto nos primeiros álbuns organizados por Almir Vavignier quanto nos critérios adotados para organizar a mostra no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1949”.
Estamos, um quarto de século depois da “Arte Incomum”, no reinado da arte contemporânea, quando caíram todos os preconceitos, e todas as modalidades de arte são legítimas e aceitas dentro e fora do sistema da arte. Os territórios da liberdade são agora mais vastos e mais densos, as atitudes artísticas mais verdadeiras, a inteligência que coroa a obra de arte está mais próxima do outro, e as fronteiras entre arte e loucura se desvanecem como a bruma. Não cabe mais perguntar o que é arte, mas sim: o que são os artistas. E a resposta poderá ser: artistas somos todos nós quando queremos nos compreender mutuamente.
Olinda, outubro de 2005
1 Não se trata da cidade de Avignon, onde se encontra o Palácio Papal, mas à Calle Avignon, em Barcelona, rua de prostitutas nos anos 10 do século passado. 2 Organizado por Eleonora Haddad Antunes, Lúcia Helen Siqueira Barbosa e Lygia Maria de França Pereira – Ed Usp – 2000.3 O autor grafa assim mesmo, em minúsculas, assim como grafa também o nome de Adolf Hitler. 4 ” Arte”, 1985 – citado na tese de João Fayse-Pereira que comentaremos a seguir. 5 O Núcleo de Arte Contemporânea – NAC da UFPB participou de segmento Arte Postal com a intervenção “Arte Brasileira Fora do Eixo Rio/São Paulo”. 6 A mesa composta por Annateresa Fabris, Icléia Cattani, Irineu de Moura, Marilena Chauí e Walter Hugo de Andrade Cunha. 7 Publicada pela Editora Escuta. 8 Editado em Paris por Gallimard. 9 Hoje Centro Psiquiátrico Pedro II.
[O Jornal, 22.12.49].
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