Mitos sobre o crescimento do crime organizado no Brasil
Enio Lins
UMA DAS MITOLOGIAS mais toscas difundidas há décadas, diz que facções como o Comando Vermelho teriam matiz ideológico. Reportagem publicada n’O Globo, em 29 de outubro, afirma que a criação do CV se deu por conta de “Alteração na Lei de Segurança Nacional (LSN) realizada pelo governo militar [que] promoveu a mistura de presos políticos e bandidos comuns no presídio da Ilha Grande”. Ora, essa mistureba é coisa usual na história brasileira. O Forte do Brum, em Recife, por exemplo, ajuntava líderes revoltosos, como Bernardo Vieira de Melo, e presos comuns, nos idos de 1712.
NA ILHA GRANDE sempre foram amontoados presos comuns e políticos, conforme se pode ler no magistral “Memórias do Cárcere”. Graciliano Ramos foi prisioneiro lá, juntamente com o capitão Agildo Barata (pai do humorista Agildo Ribeiro), militar com experiência de combate, dentre muitos esquerdistas ali encarcerados entre os anos 30 e 40. Integralistas também coabitaram naquelas celas. Presos políticos e comuns conviveram naquela detenção insular por muito tempo, e isso, há oito décadas, não produziu quadrilhas de escritores, nem de paramilitares. Não brotaram comandos vermelhos, nem verdes, nem amarelos.
NOS ANOS 70, a coexistência entre “subversivos” e presos comuns, propiciou a estes, lições daqueles sobre leis e direitos. Sim. Relata a BBC: “com pouca ou nenhuma educação formal, os detentos mais antigos, a maioria presos lá por assaltos a bancos, não conheciam seus direitos. Souberam por meio da convivência com os presos políticos — em sua maioria filhos de classe média — que passaram a intermediar as negociações em busca de melhores condições”. Simples assim, sem ilegalidades, nem doutrinação política-ideológica. Não houve acordo para engajar quadrilhas comuns no combate político, tática utilizada pelos Estados Unidos na aliança entre a Máfia e a Casa Branca, com a Operação Underworld, entre 1942 e 1945, em comando compartilh ado com o capo Lucky Luciano, para o crime organizado sabotar Mussolini na Itália. Isto não aconteceu no Brasil de 1970. Mas algo mudou, há meio século. E de onde veio a lição que propiciou alteração tão marcante na organização dentro dos presídios?
LÚCIO FLÁVIO, bandido de classe média, assaltante de bancos, sem vinculação com a esquerda (nem com a direita), nos anos 70 passou a denunciar a pressão de policiais sobre o crime desorganizado. Os embriões das milícias atuais – facções criminosas dentro das polícias, como a Scuderie Le Cocq, o Esquadrão da Morte e os Homens de Ouro – estavam roubando demais os ladrões profissionais, e matavam os criminosos parceiros quando bem entendiam. Uma frase óbvia ficou famosa, dita por ele, em 1974, como denúncia e protesto: “Bandido é bandido, polícia é polícia”. Os policiais criminosos eram mais bandidos que os bandidos. Em 29 de janeiro 1975, Lúcio Flávio apareceu morto com 19 facadas no peito, dentro de sua cela, no Presídio Hélio Gomes, no Rio de Janeiro.
EM 1979, A CRIAÇÃO da Falange, rebatizada pela imprensa como “Comando Vermelho”, ocorre como uma reação organizativa de sobrevivência da bandidagem de origem humilde, pressionada pelo crime ultraorganizado dentro das polícias. Não tem pai nem mãe ideológica, é um movimento de autodefesa da marginalidade criminosa, dentro e fora dos presídios, combinando combates e alianças entre bandidos comuns e policiais bandidos. As mortes, como sempre, explodem apenas no lado dos criminosos excluídos socialmente, em benefício dos investidores no crime organizado, das milícias, e da necropolítica – todos são bandidos, mas uns morrem aos montes para lucro de alguns. É um círculo vicioso, sempre em crescimento. E é um circo sangrento, recorrentemente montado para apresentar o espetáculo “bandido bom &e acute; bandido morto”. Mas muitos acham um pecado esquerdista denunciar isso.
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Leia também: A arma retórica da necropolítica https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/narcotderrorismo.html

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