06 abril 2019

Verdade histórica


Repondo os fatos sobre a Guerrilha do Araguaia
A máxima de Johann Wolfgang von Goethe de que “o erro repete-se sempre na ação, por isso deve-se incansavelmente repetir a verdade em palavras”, mais uma vez se aplica ao caso da resistência armada à ditadura militar organizada pelo PCdoB.

Osvaldo Bertolino, portal Vermelho

 

O raciocínio e o berro. Eis uma boa maneira de se entender os dois tipos básicos de jornalismo. Um é o da persuasão, feito à base de ideias; o outro é o dos insultos, feito com gritaria e denúncias vazias. O mérito maior do primeiro é fazer as pessoas pensar, refletir. Reexaminar certas questões. Já o segundo é vital para fixar nos corações e mentes falsidades e malignidades — de tanto serem repetidas elas ganham ares de fato estabelecido. É preciso reconhecer, desde logo, que há no Brasil um número considerável de seguidores desse segundo modelo de jornalismo.

Foi com ele que o jornalista de O Estado de S. Paulo José Nêumanne entrevistou o também jornalista, além de historiador, Hugo Studart, autor do livro Borboletas e lobisomens, um cartapácio produzido sob medida para, mais uma vez, atacar a Guerrilha do Araguaia e seu organizador, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), já devidamente desmascarado (veja aqui — 
Guerrilha do Araguaia: borboletas, lobisomens e inverdades e aqui — Em defesa da guerrilha do Araguaia). A entrevista, publicada quinta-feira (4) na edição online do jornal, tem a ver com a passagem dos 55 anos do golpe militar de 1964. É uma mera repetição das diatribes do entrevistado e do entrevistador, conhecidos e contumazes caluniadores da Guerrilha do Araguaia e do PCdoB. 

De todo modo, é importante repor os fatos para que não prevaleçam as versões. As falsidades começam na apresentação da entrevista, com o entrevistador dizendo que o livro de Studart “revelou que, ao contrário do que se propalou, a esquerda armada não reagiu ao endurecimento do regime militar”, citando a falsidade de que “o Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, foi fundado em 1962, em pleno governo democrático de João Goulart, com um programa-manifesto que denunciava o governo burguês de Jango e pregava a luta armada contra ele”. 

Como jornalista do berro, Nêumanne não dá a menor importância para os fatos e se esmera na propagação de uma versão sem nenhuma fundamentação histórica ou embasamento factual. Ela se desmonta por si só, à medida que não considera os documentos do PCdoB, públicos e disponíveis no 
Portal Grabois

Responsabilidade da resistência

O devaneio prossegue com o entrevistador reproduzindo outro trecho falacioso do autor do livro, agora o de que “o PCdoB enviou seus primeiro militantes para treinamento na Academia Militar de Pequim em fevereiro de 1964, ainda no governou de Goulart, com o objetivo de pegar em armas contra a democracia”. Mais uma vez, ambos ignoram os fatos, preferindo a versão, um recurso de quem, à falta de argumentos, se utiliza da calúnia. 

Uma pesquisa mínima destrói essa falácia (veja aqui - 
Maurício Grabois e os combates na Guerrilha Araguaia e aqui — O PCdoB e o caminho da luta armada). A formulação tem um objetivo claro — jogar nas costas da resistência ao regime militar golpista a responsabilidade daqueles acontecimentos. Studart diz na entrevista: “Observando o outrora com os olhos de agora, dá para concluir que as organizações da luta armada foram vetores importantes para o endurecimento do regime e a instauração da ditadura militar”. 

Há ainda na apresentação da entrevista um contorcionismo de Nêumanne para valorizar a obra, apresentada como referência fora do “radicalismo ideológico entre extrema direita e extrema esquerda, em que os dois lados tentam distorcer o passado e recontá-lo segundo as conveniências do presente”. Para ele, o livro representa “o equilíbrio na busca pela verdade histórica”, revelando “o modo como o Exército exterminou os guerrilheiros” e os “segredos que os comunistas vinham tentando manter ocultos”. 

Os arquivos do PCdoB

A dicotomia é mero subterfúgio para justificar a parcialidade da obra e da entrevista. Segundo Nêumanne, “paradoxalmente, vêm da extrema esquerda as reações mais violentas — manifestos, atos públicos de repúdio e até piquetes contra os lançamentos — por causa de segredos que os comunistas vinham tentando manter ocultos”. Entra nessa afirmação, totalmente desprovida de verdade, o famoso marketing da divergência como recurso de propaganda da obra.

Nas perguntas, o entrevistador se limita a fazer escada para o entrevistado jorrar suas invectivas. Numa delas, Nêumanne pergunta: “O que despertou seu interesse na história trágica da guerrilha rural do PCdoB na região do Araguaia, em plena guerra suja travada pelos grupos armados de esquerda contra as Forças Armadas do Estado brasileiro, naquela conturbada segunda metade do século 20?” 

Foi a deixa para Studart repisar a tese, sem nenhuma base factual, de que “nem os militares revelaram como venceram, nem o PCdoB contou como perdeu”. “O partido só começou sua abertura a partir de 1996, ainda assim de forma lenta, segura e gradual, revelando seus arquivos somente para historiadores ideologicamente confiáveis (para eles, é claro)”, disse ele, mais uma vez ignorando que os arquivos do PCdoB estão disponíveis no 
Portal Grabois e as obras biográficas sobre João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar e Carlos Nicolau Danielli, dirigentes do PCdoB diretamente responsáveis pela Guerrilha do Araguaia, fartamente documentadas. 

Passagem dos 55 anos do golpe

É evidente que essa postura faz parte de um ardil, de um jogo de cena para atacar um lado fingindo que está criticando ambos. “Paradoxalmente, as principais revelações estão vindo de militares”, diz ele, uma revelação absolutamente esclarecedora sobre as reais intenções da obra. Segundo Studart, na entrevista, “houve uma forte reação negativa da parte do PCdoB contra meu trabalho, tanto que eles já divulgaram 23 manifestos, mais de quatro horas de gravação e fizeram quatro atos públicos de repúdio, incluindo um piquete contra o lançamento do livro no Rio de Janeiro”, uma afirmação ao vento, sem nenhum traço de verdade. 

Onde estão esses manifestos e essa gravação é um mistério conhecido apenas por sua mente imaginativa. Os “quatro atos públicos de repúdio” também são invectivas — o que houve foram manifestações contra as calúnias do livro, como as organizadas pela “Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos” na Universidade Federal de São Paulo (veja 
aqui) e o “escracho” promovido pelo “Grupo Tortura Nunca Mais-RJ” no ato de lançamento do livro na livraria Argumento, no Rio de Janeiro (veja aqui). Em ambas sem nenhuma participação do PCdoB.  
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