Quando
os chefes tudo veem, leem e escutam
Viagem ao universo da espionagem patronal. Como eles monitoram
humor, sinais de cansaço e amizades dos empregados, até fora do expediente. A
gestão despótica dos robôs-capatazes. A saída: enfrentar o poder privado, não
só a tecnologia
Zephyr
Teachout no New York Review
of Books | Tradução: Vítor Costa e Maurício Ayer/Outras
palavras
Décadas
atrás, quando me mudei para Nova York, me apresentei para uma vaga de
assistente pessoal de um escritor. Imaginei que me tornaria uma amanuense,
traduzindo pronunciamentos inspirados em poemas. Em vez disso, o que fiz foi
encomendar e devolver suéteres, programar cortes de cabelo e fazer planos de
refeições para literatos que nunca cheguei a conhecer. Minha chefe, seu marido
(um gerente de investimentos) e seus filhos moravam na Park Avenue, em uma
cobertura com cortinas georgianas e janelas com isolamento acústico triplo. Ela
contratava serviços personalizados: personal
trainers, personal
shoppers, professor particular de poesia, personal coach de ópera. Eu era uma das quatro funcionárias em tempo
integral, junto com duas babás irlandesas e uma empregada francesa. Durante
nosso almoço de trinta minutos, nós quatro corríamos para a cozinha para usar a
pequena torneira dourada que fornecia água fervente instantânea para fazer chá
e sopa. Bebíamos, ríamos e reclamávamos da nossa chefe.
Durante uma dessas
refeições, a babá-chefe começou uma ligação no canto da cozinha e depois
rapidamente desligou o telefone. Apontando para o aparelho, ela murmurou que
achava que nossa chefe estava ouvindo. Enquanto sorvíamos nossa sopa, eu disse
que nossa chefe sempre me pedia relatórios sobre o que conversávamos e a babá
sussurrou que tinha certeza de tê-la visto à espreita do lado de fora da porta
da cozinha. Na hora foi engraçado, mas logo passou: uma pontada de ansiedade
começou a se espalhar pela sala.
Algumas semanas
depois, a empregada foi demitida. Não ficou claro se sua demissão tinha
qualquer relação com algo que tenha sido dito. Mas uma vez que a paranoia mete
as garras em você, ela não solta assim tão fácil. Nossos salários e aumentos
eram imprevisíveis. Dois dos funcionários dependiam de green cards.
Essas circunstâncias, que haviam sido objeto de tantas conversas, de repente se
tornaram um motivo de insegurança. Nós, primeiro gradualmente, depois de uma
vez, paramos de almoçar juntos.
Essa pequena e
desanimadora experiência me vem à memória agora, quando vivemos uma explosão de
investimentos corporativos em vigilância no local de trabalho. O ano de 1995,
quando tive esse emprego, hoje parece quase pitoresco, uma era de ingenuidade
no mundo da vigilância. Não havia Facebook ou Google seguindo as pessoas aonde
quer que fossem, nem os assustadores anúncios personalizados. Naquela época, os
estadunidenses passavam uma média de 30 minutos por mês online, e a vigilância
da intimidade 24 horas por dia, 7 dias por semana, era reservada aos alvos de
investigações do FBI.
Nos vários
trabalhos que eu tive até os 24 anos, eu entrava e saía, começava a lavar a
louça mais rápido quando o supervisor passava, pesava os grãos que colhia,
negociava para sair mais cedo em troca de limpar uns banheiros a mais e
escrevia relatórios para a professora da terceira série que eu ajudava na sala
de aula. Até as gorjetas que recebi como garçonete eram problema meu, não dos
restaurantes. Meus chefes me conheciam superficialmente – minhas roupas, minha
produtividade geral – não o que eu pensava ou sentia fora do local de trabalho,
a menos que eu decidisse compartilhar.
Acontece que as
décadas de 1980 e 1990 representaram um ponto de virada na vigilância, foi o
período em que as empresas iniciaram seus primeiros investimentos em
monitoramento eletrônico de desempenho. Em 1987, cerca de 6 milhões de
trabalhadores eram observados de alguma forma mediada, geralmente por uma
câmera de vídeo ou gravador de áudio; em 1994, aproximadamente um em cada sete
trabalhadores estadunidenses, cerca de 20 milhões, estava sendo monitorado
eletronicamente no trabalho. Os números aumentaram constantemente a partir daí.
Quando a tecnologia da fita de vídeo foi suplantada por dispositivos digitais
que podiam escanear vários locais ao mesmo tempo, as primeiras câmeras
instaladas para proteger as empresas contra roubo redirecionaram seu olhar
insaciável das mercadorias para os trabalhadores.
O segundo grande
ponto de virada no monitoramento eletrônico de desempenho está acontecendo
agora. Ele é impulsionado pela tecnologia vestível (wearable tech), pela
inteligência artificial e pela covid. O uso de software de vigilância pelas
empresas aumentou 50% em 2020, o primeiro ano da pandemia, segundo algumas
estimativas, e continuou a crescer.
Essa nova
tecnologia de rastreamento é onipresente e intrusiva. As empresas rastreiam em
nome da segurança, da eficiência ou apenas porque têm essa capacidade. Elas
inspecionam, preservam e analisam movimentos, conversas, conexões sociais e
afetos. Se a primeira expansão da vigilância foi uma apropriação territorial,
afirmando autoridade sobre toda pessoa no trabalho, a segunda expansão diz
respeito a como estilhaçar esse espaço. Está mudando a composição estrutural de
como os humanos se relacionam uns com os outros e consigo mesmos.
Alguns motoristas
de longa distância têm que dirigir um caminhão de 15 metros por mil quilômetros
por dia com uma câmera de vídeo olhando para eles o tempo todo, observando seus
olhos, seus dedos, seus espasmos, seus assobios, seus movimentos de pescoço.
Imagine viver na frente daquela câmera intrometida com cara de chefe por meses
a fio enquanto ela examina o seu táxi, que serve como sua casa na maior parte
do tempo. Em um dos muitos fóruns furiosos do Reddit sobre câmeras voltadas
para motoristas, um caminhoneiro escreveu que só suportaria uma câmera “se o
proprietário da empresa me der um acesso irrestrito 24 horas por dia, 7 dias
por semana, na casa dele”. “Essas poucas centenas de quilômetros por dia são o único
tempo que tenho completamente para mim e sinto como se estivesse sendo
marcado”, acrescentou outro. “Eu só quero cutucar meu nariz e coçar meu saco em
paz.” Um motorista de ônibus descreveu o desejo humano de fazer uma cara
estranha ou falar sozinho, ou mesmo cantar uma música… “Eu podia sentir menos
cortisol fluindo pelo meu corpo no meu segundo emprego, onde os ônibus eram
mais velhos e não tinham câmeras dentro. Isso te adoece e te deixa esgotado.”
Os empregadores
leem os e-mails dos funcionários, rastreiam seu uso da internet e ouvem suas
conversas. Enfermeiros e trabalhadores de estoque são obrigados a usar crachás
de identificação, pulseiras ou roupas com chips que rastreiam seus movimentos,
medindo os passos e comparando-os tanto com os dos colegas de trabalho quanto
com os seus próprios de dias anteriores.
Os braceletes que
agora com frequência circundam a pele do seu braço, acariciando o seu nervo
mediano, podem no futuro ser usados para enviar sinais para você ou seu
empregador, medindo quantos minutos você passa no banheiro. A Amazon, que
rastreia minuciosamente cada momento da atividade de um funcionário do estoque,
cada pausa e conversa, tem a patente de uma pulseira que, segundo o Times,
“seria capaz de emitir impulsos de som ultrassônicos e transmissões de rádio
para rastrear onde as mãos de um funcionário estavam em relação ao estoque de
caixas” e, em seguida, vibraria para direcionar o trabalhador para a caixa
correta. Um “boné inteligente” (SmartCap) usado em caminhões monitora as
ondas cerebrais de cansaço.
Um software de
recursos humanos pode monitorar o tom de voz dos trabalhadores. Uma grande
empresa de tecnologia, a Cogito, divulga seu produto como “o coach alimentado
por IA [que] melhora o desempenho dos humanos por meio de análise e feedback de
voz em chamadas em tempo real”. Enquanto os trabalhadores ganham US$ 15 por
hora atendendo reclamações de consumidores irritados em um cubículo, eles devem
prestar atenção a uma tela pop-up que começa a piscar se eles
falarem muito rápido, se houver sobreposição entre sua voz e a voz do cliente
ou se fizerem uma pausa longa demais. “Empatia em larga escala”, orgulha-se a
empresa.
Em certo sentido,
rastrear o comportamento na intimidade não é novidade: o modelo de negócios de
empresas de tecnologia como Facebook e Google, afinal, depende do rastreamento
de usuários dentro e fora de seus sites. A mercantilização dos dados está em sua
terceira década de existência. Mas vigilância e gerenciamento automático no
trabalho são diferentes. Os trabalhadores não podem optar por sair sem perder
seus empregos: você não pode desligar a câmera no caminhão se isso for contra a
política da empresa; você não pode arrancar o dispositivo de gravação do seu
cartão de identificação. E a vigilância do trabalhador vem com uma poderosa
ameaça implícita: se a empresa perceber muita fadiga, você pode ser excluído da
próxima promoção. Se a máquina ouvir algo que não gostar, você pode ser
demitido.
As implicações
políticas da vigilância onipresente no emprego são monumentais. Embora os
chefes sempre tenham ouvido as conversas dos trabalhadores, eles só podiam
fazer isso raramente – qualquer coisa além disso era logisticamente impossível.
Agora não. Os funcionários precisam assumir que tudo o que dizem pode ser
gravado. O que acontece quando todas as palavras e o tom dessas palavras podem
ser gravados e reproduzidos? Sussurrar não funciona mais.
Em muitos casos, a vigilância
ao trabalhador é instalada por razões explícitas de segurança, por exemplo, as
câmeras térmicas instaladas para proteger clientes e colegas de um trabalhador
que esteja com febre. Mas ela não é, ao que parece, boa para o nosso bem-estar.
A vigilância eletrônica coloca o corpo da pessoa rastreada em um estado de
hipervigilância perpétua, o que é particularmente ruim para a saúde – e ainda
pior quando acompanhada de impotência em reagir. Os funcionários que sabem que
estão sendo monitorados podem apresentar ansiedade, desgaste, ou ficar
extremamente tensos e irritados. O monitoramento causa uma liberação de
substâncias químicas de estresse e as mantém fluindo, o que pode agravar
problemas cardíacos. Pode levar a distúrbios do humor, hiperventilação e
depressão. Professores de administração das Universidades Cornell e McMaster
realizaram recentemente uma pesquisa sobre monitoramento eletrônico em call
centers e mostraram que o estresse causado por isso era tão grande quanto o
estresse causado por clientes abusivos. Os trabalhadores sentem que o
monitoramento é usado para disciplinamento, não para melhoria do que seja, que
as expectativas não eram razoáveis e o uso do monitoramento era injusto. Eles
preferiam um chefe humano a um espião robô sempre presente com o poder de
afetar seus contracheques.
É alguma surpresa
que a saúde mental dos caminhoneiros esteja sofrendo? Ou que os funcionários do
call center estejam se deprimindo? Caminhoneiros e trabalhadores de call center
relatam uma espécie de neblina desestabilizadora, uma camada constante de
incerteza e paranoia: qual gesto de mão, qual pausa no banheiro, qual conversa
foi que me fez perder aquele bônus? “Sei que estamos trabalhando, mas, quero
dizer, tenho medo de coçar o nariz”, disse um motorista da Amazon ao Insider em
uma matéria sobre as câmeras voltadas para o motorista da empresa. A matéria
não mencionou o nome dele, por medo de represálias.
Em 2011, Travis
Kalanick, fundador da Uber, convidou os moradores de Chicago para uma festa no
Elysian Hotel. Em uma grande tela, ele exibiu o que inicialmente chamou de “God
View” (visão de Deus) e depois renomeou “Heaven” (Paraíso), um mapa
no qual a empresa conseguia rastrear os motoristas, sem que eles soubessem. Os
participantes assistiram com espanto a centenas de carros que circulavam pela
cidade em tempo real, atordoados em seu poleiro no topo do mundo.
Leia
também: As mudanças que afetam a retomada da economia global https://bit.ly/3NnFF3n
Esta anedota, de
Super Pumped: The Battle for Uber, de Mike Isaac, mostra Kalanick
exultante, saboreando seu poder de dominação. Mais frequentemente vemos ele, e
a empresa, exibindo sua habitual paranoia, espionando para proteger a
fortaleza. O livro começa contando o caso em que Kalanick, para responder à
fiscalização, contrata “funcionários que eram ex-CIA, NSA e FBI” com o objetivo
de construir uma “força de espionagem corporativa de alto desempenho” que
“espionava funcionários do governo, analisava profundamente suas vidas pessoais
e às vezes os seguia até suas casas”. Uma vez que os espiões corporativos
identificaram quem eram os fiscais que estavam tentando documentar um caso e
mostrar que a Uber estava violando leis locais, a empresa criou um código para
garantir que esses fiscais nunca conseguissem chamar motoristas da Uber e,
portanto, não pudessem investigar violações das leis de trabalho locais. Em
substituição, a Uber apresentava a eles um modelo simulado do aplicativo com
carros falsos. O fiscal achava que tinha conseguido um motorista, mas este
nunca aparecia. A Uber chamou o programa de “Greyball” (bola cinza).
Isaac é repórter de
tecnologia do New York Times e escreve frequentemente sobre o
Vale do Silício. Ele revelou a história do Greyball no Times em
2017, dois anos antes de seu livro ser publicado. Seu fascinante retrato da
Uber mostra a empresa desde seus primeiros dias até a expulsão definitiva de
Kalanick, retornando várias vezes ao modo como a Uber usava a vigilância para
ampliar seu poder. A empresa rastreava os clientes depois que eles deixavam
suas corridas, extraía dados de cartão de crédito para tirar informações sobre
os concorrentes e espionava motoristas que dirigiam para empresas rivais. Ela
construiu um “Grupo de Serviços Estratégicos” que usava “redes privadas
virtuais, laptops baratos e pontos de acesso sem fio pagos em dinheiro”. A Uber
também se fez passar por motoristas em chats de grupos privados para aprender
sobre rivais, tirou fotos de funcionários, seguiu pessoas e gravou conversas
privadas de concorrentes.
Isaac demonstra
como Kalanick gastou dezenas de milhões de dólares em espionagem e atividades
relacionadas. Em julho, Mark MacGann, ex-lobista-chefe da Uber na Europa,
Oriente Médio e África, vazou para The Guardian mais de 124
mil documentos que mostravam a extensão do desrespeito à lei da Uber entre 2013
e 2017 e como os executivos cortejavam chefes de Estado para construir seu
império.
Em 2017, após uma
série de escândalos de assédio sexual e discriminação no local de trabalho,
Kalanick foi substituído como CEO por Dara Khosrowshahi, anteriormente chefe da
Expedia. Khosrowshahi mudou a empresa em vários aspectos desde que assumiu, mas
a questão da vigilância não parece ter diminuído.
No período coberto
pelo livro de Isaac, a Uber supostamente recebia de 20 a 25% do custo da
viagem, além de complementos. Este ano, Khosrowshahi lançou um novo sistema
para pagar motoristas e preços de corridas em algumas cidades. A tarifa é
baseada em “vários fatores” – incluindo, de acordo com o site de notícias
investigativas online The Markup, “tarifas básicas, distância e
duração estimadas da viagem, demanda em tempo real no destino e preços de
pico”. Dessa forma, a remuneração dos motoristas ficou menos transparente e
pode variar. Um motorista compartilhou capturas de tela de seus pagamentos
com The Markup. Uma mostrava-o recebendo US$ 14 por uma corrida
enquanto a Uber recebia US$ 13, outro o mostrava recebendo US$ 6 dólares
enquanto a Uber levava US$ 9. Ninguém sabe por que o pagamento do motorista
flutuava. Sabemos que a Uber rastreia muitas métricas, como a velocidade com
que os motoristas freiam, para onde vão, suas classificações, as viagens que
aceitam e cancelam, quanto tempo levam para chegar a algum lugar: parece
provável que o pagamento esteja vinculado a todos esses dados.
Outras empresas,
como as plataformas de entrega de alimentos DoorDash e Instacart,
vêm fazendo algo semelhante, usando sistemas não transparentes para distribuir
pagamentos personalizados. A Instacart costumava pagar um valor base aos
entregadores, mas agora as decisões de pagamento são uma caixa preta. Os
trabalhadores temem que a empresa esteja usando tudo o que sabe para pagá-los o
menos possível. Mas eles não podem provar nada.
Tudo isso é
desmoralizante e distópico, mas o que isso tem a ver com democracia? Elizabeth
Anderson lançou em 2017 um livro vivaz e persuasivo, Private Government,
que oferece uma parte da resposta. Anderson, filósofa política da Universidade
de Michigan, dá um chacoalhão no leitor para tirá-lo da estranha rigidez que
permeia a discussão pública sobre governo. O emprego é uma forma de governo,
argumenta ela, muito mais relevante e imediata para a maioria das pessoas do
que as questões relativas a Washington.
Uma empresa
poderosa como a Amazon, por exemplo, define seus próprios termos de
empregabilidade e, ao fazê-lo, impacta os motoristas de uma empresa como a UPS
e o setor de logística em geral. Empregadores privados com influência em todo o
setor têm poder de coerção: o que Anderson chama de poder de governo. Esse
governo privado, personificado por grupos privados ou por monopólios econômicos
sancionados pelo Estado, era o alvo central de intelectuais e ativistas como
John Locke e os Levellers. Anderson vê em Locke, Adam Smith e
outros uma crença de que o poder arbitrário de rebaixar e disciplinar é uma
ameaça a uma sociedade livre, onde quer que apareça, e que o governo público e
responsável deve nos proteger contra a tirania privada.
Muitos “pensadores
e políticos modernos”, argumenta ela, são “como aqueles pacientes que não
conseguem sentir metade de seus corpos”: eles “não conseguem perceber metade da
economia: eles não conseguem perceber a metade que ocorre além do mercado, após
o contrato de trabalho ser aceito”. Como resultado, as empresas são geralmente
tratadas como sendo totalmente privadas.
Muitos
trabalhadores do setor privado, escreve Anderson, vivem sob ditaduras em suas
vidas profissionais. Normalmente, essas ditaduras têm autoridade legal para
regular também a vida fora do expediente dos trabalhadores – suas atividades
políticas, discurso, escolha do/a parceiro/a sexual, uso de drogas recreativas,
álcool, tabagismo e exercícios físicos.
Para ela,
trabalhadores de serviços que marcam ponto, ou técnicos e corretores de imóveis
e cozinheiros que parecem dotados de liberdades substanciais, são
sobrecarregados por um sistema legal que permite que as corporações demitam um
trabalhador com base no que ele faz em atividades fora do horário.
Os direitos de
expressão dos trabalhadores são praticamente inexistentes, exceto no que se
refere explicitamente à organização trabalhista, o que, argumenta Anderson, é
efetivamente letra morta nos dias de hoje devido à dificuldade de aplicação e
ao medo de desafiar as táticas do patrão.
Como as coisas
ficaram tão ruins? Anderson acredita que os problemas básicos que permitiram o
atual ambiente de trabalho distópico remontam gerações. Quando a Revolução
Industrial deslocou o “local principal do trabalho remunerado do lar para a
fábrica”, importou a longa tradição de poder totalmente arbitrário de dentro do
lar, em que os filhos não tinham liberdade em relação aos pais e às esposas
tinham liberdade muito limitada em relação aos seus cônjuges. A Revolução
Industrial poderia ter proporcionado uma fuga das tiranias privadas da vida
doméstica, mas, em vez disso, as replicou.
Durante o apogeu da
Ford Motor Company, seu Departamento Sociológico começou a inspecionar as casas
dos trabalhadores. Anderson escreve:
“Os trabalhadores
eram elegíveis para o famoso salário diário de US$ 5 da Ford apenas se
mantivessem suas casas limpas, fizessem dietas consideradas saudáveis, se
abstivessem de beber, usassem a banheira adequadamente, não aceitassem
pensionistas, evitassem gastar muito com parentes estrangeiros e fossem
assimilados às normas culturais americanas.”
Anderson ressalta
que, embora a Apple não visite as casas das pessoas hoje, ela exige que os trabalhadores
do varejo abram suas malas para inspeções antes de entrar no trabalho. Tratamos
isso como algo normal, ela observa, mas deveríamos? Quase metade dos
estadunidenses foi submetida a um teste de drogas sem suspeita. E muitos
trabalhadores não têm proteção contra serem demitidos pelo que dizem nas mídias
sociais. Para aqueles que afirmam que o local de trabalho não é um governo
porque você pode pedir demissão, Anderson retruca: “É como dizer que Mussolini
não era um ditador, porque os italianos podiam emigrar”.
Veja: Paul
Kennedy sobre a ascensão e a derrocada das grandes potências https://bit.ly/2YxEk2Q
O foco de Anderson
não é a vigilância, mas seu trabalho sugere duas coisas. A primeira é que, para
lidar com a espionagem constante, devemos nos concentrar na questão do poder,
não apenas na tecnologia. Os direitos trabalhistas e a fiscalização antitruste
devem ser respostas de primeiro nível às atuais – e cada vez piores –
estruturas de poder. Em segundo lugar, devemos tratar a vigilância do
empregador como fazemos com qualquer vigilância governamental – em outras
palavras, com profunda suspeita. É um truísmo dizer que a vigilância
governamental inibe o discurso e o debate e corrói a esfera pública; uma vez
que possamos perceber o local de trabalho como um local de governo, talvez
possamos construir um movimento político por maior liberdade nos lugares onde
os trabalhadores estadunidenses passam a maior parte de suas horas de vida.
Para entender a
realidade em que estamos, precisamos ser capazes de conversar uns com os outros
sem medo de que nossas conversas sejam usadas contra nós. As conversas privadas
entre os trabalhadores – e as amizades, debates, perguntas – fazem parte da
coesão e conexão que possibilitam não apenas a organização trabalhista, mas a
vida pública. Quando tudo o que dizemos está sendo ouvido – especialmente por
um grupo menor e mais poderoso de empregadores – pode ser mais fácil não falar
mais. Isso não é diferente do totalitarismo político contra o qual Hannah
Arendt nos alertou, onde o Estado visa desintegrar o privado e o público,
submergindo o privado no público e depois controlando o público. A conclusão
lógica da vigilância no local de trabalho é que a esfera privada deixa de
existir em casa porque ela deixa de existir no trabalho, onde a visibilidade
sobre a vida do trabalhador é irrestrita.
Três anos atrás,
enquanto eu estava escrevendo meu livro sobre monopólios e como eles agem como
governos privados, conversei com criadores de frango que a cada mês recebiam
valores diferentes dos grandes distribuidores de aves. Um fazendeiro se destaca
na minha memória. Amoroso, bravo e desalentado, esse homem descreveu como era
examinar um mês de pagamento de seu distribuidor de aves e não saber se o
pagamento refletia uma concorrência justa com outros criadores, uma retaliação
por algo que tenha falado ou uma evidência de que ele fazia parte de um
experimento. Ele contou que outros fazendeiros confessaram que ficaram tão
bravos que tinham vontade de matar os distribuidores.
Este sistema de
pagamento é chamado de sistema de “torneio”. Os agricultores competem para
serem os mais produtivos. Teoricamente, eles são pagos com base em quão
produtivos são em relação a outros agricultores. No entanto, não há mecanismo
de prestação de contas ou verificação de fatos: o distribuidor mantém todos os
dados e, quando distribui os contracheques, os agricultores, totalmente
dependentes do distribuidor para pagar suas contas, têm que aceitar que ele
está sendo honesto.
Uma estrutura
semelhante – um “torneio” – é o modelo de como a Amazon exerce poder sobre suas
contrapartes, sejam elas governos, vendedores ou trabalhadores. No segundo
livro de Brad Stone sobre o crescimento corporativo da Amazon, Amazon
Unbound, ele aborda a enorme expansão da empresa na última década e o
crescimento de seu poder político.
Jeff Bezos, no
relato de Stone, estava profundamente envolvido em todos os aspectos de RH,
tanto nos escritórios corporativos quanto nos depósitos. Ele adotou um sistema
de pagamento e promoção chamado “stack ranking”, no qual os gerentes de nível
médio classificavam seus funcionários e demitiam os de classificação mais
baixa. Os gerentes tinham cotas de quantas pessoas precisavam demitir e
esperavam classificá-los para chegar lá. Depois de uma matéria de primeira
página no Times sobre como a cultura da empresa colocava os
trabalhadores uns contra os outros, a prática foi encerrada.
Mas a filosofia –
forçar as pessoas a lutar entre si, expulsar os de pior desempenho – continua
ressurgindo em diferentes setores da empresa. Quando a Amazon contava com
terceirizados para fazer as entregas, desenvolveu um aplicativo chamado “Rabbit”
que rastreava a entrega. A equipe do Rabbit observava os motoristas, escreve
Stone, “saltar refeições, passar pelos sinais de trânsito fechados e prender
seus telefones nas pernas das calças para que pudessem olhar facilmente para a
tela, tudo para cumprir prazos de entrega desafiadores”. Aqueles que não
alcançavam as metas eram demitidos. Quando a Amazon decidiu que queria
construir uma nova sede, anunciou um torneio para determinar a localização –
obtendo gratuitamente os dados de 238 cidades no processo.
De acordo com
Stone, repórter de tecnologia da Bloomberg News, Bezos ficou
furioso quando o chefe de operações da Amazon tentou fazer com que a empresa
incorporasse a abordagem “Lean” da Toyota, na qual os trabalhadores
desenvolvem confiança e relacionamentos com seus gerentes com o objetivo de
manter o relacionamento de longo prazo no emprego. Quando o vice de RH do mesmo
departamento apresentou um artigo chamado “Respect for People”, Stone
relata: “Bezos odiou. Ele não apenas criticou isso na reunião, mas chamou [o
encarregado] na manhã seguinte para continuar a intimidação”. Em vez de uma
força de trabalho estável, ele queria que os trabalhadores do centro de
distribuição ficassem por no máximo três anos, a menos que conseguissem um novo
emprego internamente. Ele limitou severamente os aumentos após três anos.
Leia também: Uma
ordem mundial alternativa https://bit.ly/3xUwMZp
Para esses
trabalhadores, a empresa impõe exigências extraordinárias: proíbe falar,
rastreia tudo, demite trabalhadores que não cumprem suas cotas e espera que as
condições sejam ruins o suficiente para que os trabalhadores desistam. Antes da
pandemia, informou o Times, “a rotatividade de sua força de
trabalho era de aproximadamente 150% ao ano”.
“Você passa 10
horas em pé, num local sem janelas e sem permissão para conversar com as
pessoas – não há interações permitidas”, relatou um funcionário para uma
matéria da Vox sobre o crescente número de ligações para o 911 dos centros de
distribuição da Amazon. “Percebi em pouco tempo que eles forçam as pessoas a
trabalhar até a morte, ou até que fiquem cansadas demais para continuar
trabalhando.”
“Essa é uma das
grandes razões pelas quais as pessoas querem se sindicalizar”, disse, ao Washington
Post em dezembro passado, Chris Smalls, líder do Sindicato dos
Trabalhadores da Amazon, que organizou um depósito em Staten Island este ano.
“Quem quer ser vigiado o dia inteiro? Isso não é uma prisão. É um trabalho.”
Pode ser tentador
ver a vigilância da Amazon como um problema puramente do local de trabalho e o
pagamento variável orientado por vigilância como um problema puramente
profissional, mas os empregadores não enfrentam limites legais para incorporar
novos tipos de pagamento variável ao emprego formal – e abusos enfrentados por
contratados independentes estão se fundindo com aqueles enfrentados pelos
empregados formais. Este é um dos argumentos centrais de Your Boss Is
an Algorithm, dos professores de direito Antonio Aloisi e Valerio De
Stefano. O “Gig work”, onde o trabalhador é mais fraco, é um local de
experimentação de novas técnicas gerenciais. Esses experimentos tornam-se o
campo de provas para estratégias que são então levadas para outras formas de
emprego.
O futuro,
argumentam Aloisi e De Stefano, está na combinação das ferramentas de
rastreamento e recompensa do trabalho temporário com contratos de trabalho que
permitam mudanças nos salários. O kit de ferramentas existente é vasto:
O Activtrack inspeciona
os programas usados e informa aos chefes se um funcionário está sem foco, gastando
tempo nas mídias sociais. O OccupEye registra quando e por
quanto tempo alguém está longe de sua estação de trabalho. O TimeDoctor e
o Teramind acompanham todas as tarefas realizadas online. Da
mesma forma, o Interguard compila uma linha do tempo minuto a
minuto que monitora todos os dados, como histórico da web e utilização de
largura de banda, e envia uma notificação aos gerentes se os funcionários
detectarem algo suspeito. O HubStaff e o Sneek,
como rotina, tiram fotos de funcionários por meio de suas webcams a cada cinco
minutos para gerar um cartão de ponto e os fazem circular para aumentar o
moral. O Pragli sincroniza calendários profissionais e listas
de reprodução de música para criar um senso de comunidade, e também possui um
reconhecimento facial que pode exibir a emoção do mundo real de um trabalhador
no rosto de seu avatar virtual.
No momento, pode
haver provas limitadas de que essas ferramentas são usadas para variar a
remuneração em locais de trabalho tradicionais. Mas os autores argumentam que
essas ferramentas técnicas não são difíceis de combinar com as inovações legais
nos contratos de trabalho. Contratos que permitem salários variáveis podem
facilmente trazer muitas das condições do trabalho temporário para o emprego
tradicional. As corporações podem em breve abandonar o modelo de salário fixo
que tem sido uma característica dos empregos operacionais há décadas.
Não é coincidência
que a vigilância rotineira do trabalho tenha seguido de perto a revolução antitruste
de Reagan e o colapso da sindicalização do setor privado. Nada, exceto a
sindicalização ou novas leis, impediria um empregador de pegar todos os dados
que está coletando de sensores e gravações e usá-los para ajustar os salários
com mais precisão, até que cada trabalhador receba o salário mais baixo pelo
qual está disposto a trabalhar e todos os trabalhadores vivam com medo de
retaliação. Isso não é mais ficção científica do que o Facebook e o Google
servindo aos usuários conteúdo individualizado e anúncios projetados para nos
manter conectados em seus serviços o maior tempo possível, permitindo que eles
vendam o maior número possível de anúncios.
As roupas sob
medida que minha chefe da Park Avenue usava eram uma distinção de privilégio,
um degrau acima da fabricação em massa – ternos feitos para caber em seu corpo
individual, sapatos feitos sob medida para os sulcos e arcos de seus pés. A
promessa moderna da personalização tecnológica, com base em uma noção
romantizada de individualidade e autenticidade, é que todos podemos viver em
mundos feitos sob medida, com feeds de notícias ajustados às
nossas preferências e interesses profissionais e de lazer. Você pode ser um dos
poucos ouvintes que ama tanto Kenny Rogers quanto The Cure, mas o Spotify
conhece você e pode trazer músicas que falam à sua alma única.
Mas estender
esse ethos feito sob medida é muito pouco romântico: esses
olhos podem ter a intimidade e a memória de um amante, mas carecem de qualquer
afetuosidade. A consequência da tecnologia de vigilância moderna é que os
salários sob medida estão chegando a todos os locais de trabalho. Os salários
deprimidos dos não-sindicalizados massificados do final do século XX já eram
alarmantes, mas os novos salários de IA moldados especialmente sob encomenda do
século XXI permitem um novo nível de autoritarismo. Para pará-lo, teremos que
proibir determinadas formas de espionagem e usar leis antimonopólio e
trabalhistas para reestruturar o poder.
A tecnologia de
rastreamento pode ser comercializada como ferramenta para proteger as pessoas,
mas acabará sendo usada para identificar com precisão o pouco que cada
trabalhador está disposto a ganhar. Será usada para rebaixar os salários e
também para matar a camaradagem que antecede a sindicalização, dificultando a conexão
com outros trabalhadores, envenenando a comunidade que possibilita o debate
democrático. Será usada para romper a solidariedade pagando aos trabalhadores
de forma diferente. E isso levará à ansiedade e ao medo que permeiam mais
locais de trabalho, pois a névoa de não saber por que você recebeu um bônus ou
rebaixamento molda o dia.
Isso importa porque
o trabalho não é algo para se discutir depois de estabelecida a sociedade
democrática: as relações construídas no trabalho são um alicerce essencial. Com
trabalhadores totalmente atomizados, desencorajados a se conectarem uns com os
outros, mas forçados a oferecer um retrato completo e privado de si mesmos a
seus patrões, não consigo imaginar uma democracia.
Janelas abertas para o mundo https://bit.ly/3n47CDe
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