Internet: por trás do Grande Filtro
Através de fatos e
ficções, mergulho na realidade dos moderadores de conteúdo. Jovens, vigiados e
mal pagos, trabalham sob pressão máxima para limpar os esgotos das redes
sociais. Além do trauma, lidam com o fascínio
lúgubre da mídia e amigos
Joanne McNeil, no The
Nation | Tradução: Vitor Costa/Outras palavras
No circo de empregos de merda que as empresas de tecnologia
criaram nas últimas poucas décadas – de motoristas de Uber a “turcos mecânicos”
(mechanical turkers)
– os moderadores de conteúdo são os que mais se ferram: eles são os pagadores
de pecados, os bodes expiatórios. Eles sofrem para que nós, o resto da
humanidade, possamos continuar nossos dias rolando nossos feeds, protegidos da vasta
magnitude da depravação humana neste mundo, pelo menos tal como ela é
documentada e compartilhada em imagens nas mídias sociais.
Você já conhece essa história. Pessoas mal remuneradas são organizadas
em um ambiente de call center como trabalhadores contratados
para uma plataforma da qual você com certeza já ouviu falar, em um escritório
em algum lugar distante, provavelmente nas Filipinas ou no Sudoeste dos Estados
Unidos. Em suas mesas, em uma tela, elas assistem a imagens de pessoas sendo
estupradas ou mortas, de violência cometida contra crianças e animais: aí elas
veem e apagam as imagens da plataforma. Os trabalhadores sofrem por sua saúde
mental e o estresse pós-traumático os atormenta muito depois do último post que
eles filtraram.
O fato de conhecermos essas histórias é algo relativamente recente.
Houve alguns relatos anteriores sobre isso, mas uma publicação de Adrian Chen
para a revista Wired em 2014 foi particularmente mobilizadora.
Na matéria, Chen mostrava que um dos grandes problemas para os moderadores de
conteúdo é que a maioria das pessoas não sabe de sua existência. Chen tratou do
custo psicológico para esses trabalhadores, referenciando-se na pesquisa de
Sarah T.
Leia
também: As mudanças que afetam a retomada da economia global https://bit.ly/3NnFF3n
Roberts, professora da UCLA e codiretora do Center for Critical Internet
Inquiry, que publicou um livro sobre o assunto, Behind the Screen:
Content Moderation in the Shadows of Social Media, em 2019. No mesmo ano,
uma reportagem de Casey Newton no The Verge revelou como
acontece a exploração do trabalho no dia-a-dia dessas pessoas: pausas para
banheiro monitoradas, trabalhadores vigiados pela administração enquanto vigiam
a vida dos outros, uma enorme ansiedade no local de trabalho adicionada ao
trauma causado pela própria atividade. Aumentar a conscientização pública sobre
um problema como esse é bem importante – mas, agora que sabemos sobre a
moderação de conteúdo, o que devemos fazer a respeito?
Poderíamos perguntar aos próprios moderadores de conteúdo, mas, apesar
dos vários artigos e livros, suas identidades e experiências vividas permanecem
um mistério. Há uma ausência de ensaios em primeira pessoa, memórias e relatos
pessoais. Os ouvimos através de citações anônimas e como fontes não
identificadas. Quem são eles? Como eles acabaram aceitando esse trabalho? O que
eles fazem para se divertir? É difícil ter amigos e manter relacionamentos com
um trabalho tão traumatizante? Outra pergunta que podemos fazer é: o que eles
realmente veem?
É o que todos perguntam a Kayleigh, a narradora da novela de Hanna
Bervoets, We Had to Remove This Post. A tia de Kayleigh, seu
terapeuta e seu novo colega de trabalho querem saber como é trabalhar como
moderadora de conteúdo para a Hexa, uma empresa terceirizada de uma grande
plataforma de mídia social. “As pessoas agem como se fosse uma pergunta
perfeitamente normal”, diz Kayleigh, “mas que pergunta pode ser normal quando o
que você espera é uma resposta horrível?”
Com seu tom coloquial e um tanto contido, e uma narradora bem
inteligente, We Had to Remove This Post parece uma história de
uma mulher só – o que faz sentido, já que Bervoets é dramaturga, além de autora
de vários romances que exploram temas como reality shows, bioética, e fandoms
tóxicos. O livro, primeira obra da escritora holandesa a ser publicada em
inglês, foi lançado na Holanda no ano passado com uma tiragem de mais de 600
mil exemplares. A narrativa se estrutura como um testemunho não oficial de Kayleigh
a um advogado que está montando um caso contra uma empresa de mídia social.
Kayleigh agora trabalha em um museu. Todos, ela pensa, incluindo o advogado,
têm um interesse voyeurístico em sua experiência, enquanto presumem o pior
sobre seu estado mental: “Não posso deixar de suspeitar de uma certa fascinação
lúgubre, um desejo que os compele a perguntar, mas que nunca pode ser
totalmente satisfeito”. Os capítulos seguintes revelam a lacuna de entendimento
entre esses trabalhadores e o público, embora nem sempre como a autora
pretende.
A moderação de conteúdo é marcada por certas contradições que convidam a
esse tipo de narrativa. É um trabalho ligado ao cuidado – os
trabalhadores selecionam o material para o bem-estar dos outros –, que exige
insensibilidade ou um alto nível de tolerância, como Roberts escreveu, em
relação a “imagens e materiais que podem ser violentos, perturbadores e, na
pior das hipóteses, psicologicamente prejudiciais”. Com essa referência,
Kayleigh é uma personagem ideal para sondar as profundezas da mídia social: ela
é brusca, mas não sem emoção, reservada, mas não sem desejos privados.
O livro é em parte um romance de escritório e em parte uma crônica do
rompimento de um relacionamento. Kayleigh e Sigrid, outra moderadora, se
aproximam durante um happy hour no escritório e não demora
para irem morar juntas. Seu relacionamento é sustentado por limites tacitamente
compreendidos, mas cuidadosamente estabelecidos, entre a vida e o trabalho. “Eu
nunca perguntei a ela com o que ela sonhava”, conta Kayleigh. “Tive algumas
ideias. Mas eram todas coisas que eu preferia não pensar, pelo menos não à
noite, com as luzes apagadas e nossas mesas na Hexa a quilômetros de
distância”.
Mas à medida que o trabalho se torna mais difícil e angustiante, Sigrid
pede a Kayleigh algum apoio emocional: quem mais poderia entender os horrores
que ela via? Sigrid é assombrada por uma garota que postou fotos de
automutilação e parece ter morrido por suicídio. Sigrid encaminhou o conteúdo
para o departamento de proteção à criança da empresa. “Você fez o que podia,
baby, não foi?” É o que Kayleigh oferece em resposta. Mas sua tentativa de
consolar Sigrid é insuficiente.
Acontece que Kayleigh e Sigrid não são as únicas pessoas que ficam no
escritório da Hexa. As moderadoras de conteúdo se encontram com tanta
frequência na sala de amamentação que a empresa remove a fechadura da porta. É
um detalhe peculiar que se destaca e exige contexto adicional. Uma explicação
pode ser encontrada na história de Newton para The Verge. “Desesperados
por uma corrida de dopamina em meio à miséria”, relata ele, os moderadores do
Facebook eram frequentemente encontrados fazendo sexo na sala de amamentação,
então “a gerência removeu as fechaduras das portas da sala das mães lactantes e
de um punhado de outros ambientes privados”.
Um ponto de virada no romance também vem diretamente do artigo de
Newton. A equipe da Hexa observa um suicídio prestes a acontecer – não na tela,
mas na janela do escritório; há um homem de pé no telhado do prédio ao lado.
Sim, eles testemunharam cenas como essa muitas vezes antes, embora mediadas por
seus monitores de mesa – mas quando está acontecendo tão perto, na vida real, é
visceral. O cuidado que aparece na descrição da autora para o delicado
relacionamento de Kayleigh e Sigrid faz falta aqui. Esboçado brevemente neste
pequeno livro de pouco mais de 100 páginas, o evento torna-se, na narrativa de
Bervoets, uma observação confusa e não particularmente original de que a tela
embota emoções que as pessoas experimentam mais vividamente na vida real. “Esse
tempo todo era como se eu estivesse assistindo a um vídeo”, Kayleigh reflete
mais tarde. Bervoets não está plagiando o trabalho de Newton aqui: ela o lista
em uma seção “Fontes Selecionadas” no final do livro, junto com Roberts e Chen.
O problema é que, mesmo quando ela pega histórias dessas fontes, a ficção de
Bervoets carece de apostas: Kayleigh, ao contrário da maioria dos moderadores
de conteúdo da vida real, não vive sempre no vermelho.
O lançamento em The Verge foi chocante não porque nos
contou o que os moderadores de conteúdo veem e fazem – Roberts, Chen e outros
já haviam revelado isso –, mas porque expôs as demandas ultrajantes que esses
trabalhadores enfrentam, além do trauma. Newton escreveu que os moderadores de
conteúdo eram forçados a trabalhar no limite para obter pontuações de precisão
quase perfeitas, porque qualquer pessoa com pontuação abaixo de 95% corria o
risco de ser demitida. No Arizona, pagava-se pela hora de trabalho US$ 4 acima
do valor mínimo e todos os trabalhadores perfilados por Newton tinham
dificuldade de pagar as contas.
Kayleigh parece muito menos sujeita a essas terríveis condições
econômicas. Desde as primeiras páginas, vemos que ela “caiu para cima”, em um
bom trabalho em um museu, e nunca mais terá que assistir a um vídeo de
decapitação. Bervoets tomou a embaraçosa decisão de contar essa história do
ponto de vista de uma mulher de classe média. Kayleigh também é proprietária de
um imóvel, a casa de sua mãe, que ela herdou, e a certa altura ela despeja
alguns inquilinos de forma “educada”. Ela tem dívidas porque mimou muito sua
namorada anterior com uma televisão, um toca-discos, roupas extravagantes e uma
viagem a Paris. Tudo soa como o início de uma inverossímil abertura sombria da
franquia Confessions of a Shopaholic (Confissões de um/a
viciado/a em compras).
A “Hexa” não precisa ser descrita como um ambiente de panela de pressão,
é claro. A história se passa na Europa e talvez eles tirem todo o mês de agosto
de férias. Mas quando os colegas de trabalho de Kayleigh se radicalizam por
conta do conteúdo que filtram, como o negacionismo do Holocausto e a teoria da
Terra plana, exatamente da mesma forma que os trabalhadores do artigo de
Newton, eu tenho dificuldade em acreditar. Quem são esses trabalhadores? Por
que eles aceitaram esse trabalho? Por que eles não conseguem empregos em museus
– ou em qualquer outro lugar? We Had to Remove This Post não
tenta responder a essas perguntas ou complexificar os exemplos que extrai de
reportagens anteriores ou adicionar mais textura narrativa ou psicológica, o
que acaba apenas ecoando a conscientização pública que as fontes de Bervoets já
haviam alcançado. O público sabe que a moderação de conteúdo está acontecendo.
Isso é abordado, ainda que de brincadeira, em Kimi, o filme mais
recente de Steven Soderbergh.
Leia
também - Marcio Pochmann: Século 21 impõe novas bases para a educação
brasileira https://bit.ly/3Bv2KNR
Kimi, que foi lançado no início deste ano, é sobre uma supervisora de
tecnologia, Angela (interpretada por Zoë Kravitz), que monitora os feeds de
um produto de voz semelhante à Alexa, da Amazon, limpando seus dados e
codificando filtros automatizados. “Confie em mim, eu conheço o mal – eu já fui
moderadora no Facebook”, diz Angela a um colega em uma vídeo-chamada de seu
espaçoso apartamento tipo sonho do Instagram. Em mãos menos capazes, essa breve
dica de história de fundo pode não ter sido incorporada. Claramente, Angela não
trabalhou em um ambiente como o do artigo de Newton. Mas a riqueza da
personagem abre uma nova dimensão para a crítica. Para qualquer trabalhador,
ganhar mais dinheiro é melhor do que o salário mínimo, mas o que é uma
compensação justa, afinal, quando estamos falando de um emprego que não deveria
existir?
Em Kimi, Soderbergh encontra uma linha comum entre os
horrores aos quais os moderadores de conteúdo estão expostos e o trauma de um
piloto de drone: a vigilância aumenta sua angústia; a distância e a
incapacidade de intervir criam um sentimento duradouro de culpa. Outra
abordagem ao assunto da moderação de conteúdo, adotada por Sam Byers em seu
romance de 2021 Come Join Our Disease, é arrastar o leitor pela sua
“fascinação lúgubre” e forçá-lo a enfrentá-la. No romance, uma empresa de
tecnologia recruta uma mulher sem-teto chamada Maya para trabalhar como
moderadora de conteúdo, e ela luta nessa transição do desemprego para o
trabalho de escritório mais brutal do mundo. “Este foi um mundo que me cuspiu
sem hesitação ou remorso”, diz Maya. “Agora me aceitou de volta sem interesse
ou pedido de desculpas. Ao fazer isso, causou um novo tipo de desaparecimento.”
Ter sucesso nesse trabalho é ser invisível, tal como Maya foi no acampamento
onde morava. Nas descrições pesadas e revoltantes que se seguem, Byers mina o
objetivo expresso da empresa de mídia social fictícia: “Quando trabalhamos bem,
ninguém percebe que aquilo que fazemos precisa ser feito”. O romance me lembrou
de uma citação de um moderador em um dos relatórios de Chen, que comparou sua
posição a um “canal de esgoto e toda a merda do mundo flui para você e você
precisa limpar”. Nada disso torna a experiência de leitura mais agradável, mas,
mérito de Byers, essa é a questão.
“Lá em Albuquerque, trabalhamos em uma fileira de casulos cinzas como as
centenas de outros alinhados no call center. Fotografias de cenas
da natureza e slogans como ‘Não há “eu” na equipe’ pontilhavam as paredes.” É
assim que Rita J. King escreve sobre a época em que trabalhou como moderadora
de conteúdo para a AOL e o material vulgar que ela ajudou a filtrar de suas
salas de bate-papo agora extintas, em uma reportagem de capa para o Village
Voice em 2001. Sim, uma história mais antiga que o MySpace. A história
de King se destaca, depois de todos esses anos, porque foi escrita por alguém
que fez esse trabalho: uma voz apoiada pela experiência, não apenas uma citação
que prova que um humano estava lá. Em um relato mais recente, publicado em 2019
pelo New Republic, Josh Sklar, ex-moderador de conteúdo do
Facebook, aponta que a mídia se debruça sobre a “pornografia da miséria” sem
notar os “pensamentos reais dos trabalhadores sobre seu trabalho, além do que
eles odeiam. Eu gostaria que os próprios moderadores de conteúdo falassem sobre
isso”. Dessa forma, um projeto como We Had to Remove This Post corre
o risco de contar a história ignorando os trabalhadores reais: ele não
transcende a “pornografia da miséria”, a própria “fascinação lúgubre” que
Kayleigh critica. Há um descompasso entre o estilo envolvente da autora e o
assunto, que ela não consegue elevar – a imaginação de Bervoets para ali onde
termina a reportagem da qual ela se inspira.
Talvez, se ouvíssemos esses trabalhadores, tivéssemos menos suposições
malucas sobre seu trabalho e suas vidas. Em vez de perguntar o que eles viram,
uma pergunta melhor – e que uma ficção como essa pode tentar responder – é: o
que os moderadores de conteúdo de mídia social realmente querem?
Respeito e recursos — seguro de saúde, saúde mental, alimentação, moradia, creche,
melhores salários — seria meu palpite. Mas não é isso que falta a Kayleigh, a
bem educada proprietária de um imóvel, e por isso ainda ficamos alheios a essa
realidade.
Outra boa pergunta é, pra começo de conversa, por que precisamos desses
moderadores de conteúdo. Nas reportagens, e em todas as fontes de Boeverts, há
evidências mais do que suficientes para concluir: se a tortura dos
trabalhadores é uma parte intrínseca ao seu sistema, então é o Facebook que tem
que morrer. Ou o TikTok ou o YouTube: que morram todos.
Leia também: Despercebida durante um dia de trabalho típico
em ambiente remoto https://bit.ly/3Kgmngi
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