Todo
dia é aquele
O golpe e a ditadura são lembrados todos os dias por cada
um de nós
Janio de Freitas, Folha de S. Paulo
A
ordem de comemorar os 55 anos do golpe de 64 seria,
vinda de qualquer cabeça antidemocrática, uma provocação tola e de mau
observador. No caso de Jair Bolsonaro, a incompreensão da realidade é, claro,
muito maior. Inclui até a falta de percepção do que tem sido sua vida.
Comemorar
—relembrar com outros— o golpe e a ditadura em data determinada é redundância.
Mais do que eventualmente inesquecíveis, o
golpe e a ditadura são lembrados todos os dias, por cada um de nós, sem
depender de vontade. Os restos de autoritarismo, apodrecidos mas ainda
criminosos; os cacos de legislação, os privilégios e impunidades; as
discriminações, boicotes e perseguição aos que não rezam pelo conservadorismo;
as preocupações e temores com o golpismo latente —tudo isso integra ainda a
vida neste país.
Todos
os dias são ainda lembranças e dejetos do 31 de março e do mais autêntico 1º de
abril, com suas reproduções cotidianas por 21 anos. Muitos milhares têm a
agradecer o que receberam da ditadura, por via direta ou pelas
circunstâncias. Por isso mesmo, também para esses beneficiados os dias são
derivações do golpe. Entre os beneficiados, está Bolsonaro. Em posição
particular e, por ironia, conquistada por meio da ditadura já na incipiente
democracia. Era o governo Sarney. Veja foi convidada à casa do tenente
Bolsonaro para um "assunto importante". O tenente não apareceu na
reportagem. Para os efeitos públicos, sua mulher então cumpriu o papel de
porta-voz: ou o governo aumentava o salário ("soldo militar") dos
tenentes, ou o abastecimento de água do Rio seria cortado pela explosão de
bombas em um ponto crítico das adutoras. Foi oferecido para fotografia um
croquis, bastante tosco, da linha de adutoras e das localizações. Não houve o
aumento exigido. Como reafirmação, um segundo plano seria a explosão de bombas
em quartéis, com a pretensa participação de outros tenentes. Não houve aumento,
mas a essa altura correram vagas informações de que o tal tenente estava sob
inquérito. O processo daí decorrente foi até ao Superior Tribunal Militar.
O
tenente Jair Bolsonaro agiu como terrorista. A publicação de Veja
difundiu muita preocupação, tanto pelo anunciado ato terrorista, como pelo
indício de grave agitação no meio militar, tão perto ainda do fim inconformado
da ditadura. Para os militares, não houvera mudança essencial. O que incluía o
STM, onde os dois juízes que evoluíram para a condenação à tortura e outras
violências da ditadura, general Pery Bevilacqua e almirante Julio Bierrenbach,
haviam sofrido a represália da exclusão. Ser apoiador da ditadura foi, desde
64, uma condição humana especial, com poderes e direitos acima de todos os
códigos e convenções do convívio civilizado. O essencial dessa aberração
parecia intocado, mas, afinal, o regime era outro.
Apesar
disso, e embora não por unanimidade, o tenente terrorista foi absolvido. No
centro de um conchavo, não lhe era sentenciada a devida condenação, mas
passaria para a reforma. O que ainda lhe rendeu, como bonificação dada na época
aos reformandos, promoção ao posto seguinte (por isso o "capitão
Bolsonaro") e o soldo correspondente e integral. Já na primeira eleição
posterior à reforma, Bolsonaro candidatou-se a vereador no Rio. Foi eleito
pelos militares e suas famílias, que depois lhe asseguraram sucessivas posses
como deputado federal. Uma vida fácil e improdutiva na Câmara ou fora dela,
assim como a eleição presidencial, que Bolsonaro só teve graças à
ditadura.
A
continuidade do tribunal militar de índole ditatorial, quando a imprensa temia
soar como provocadora e revanchista, protegeu o julgamento do tenente
terrorista com um silêncio que mais tarde não haveria. Nem, portanto, a
impunidade premiada.Além dos restos de 21 anos anticivilizatórios, imagens de
Jair Bolsonaro são lembranças diárias daquela desgraça nacional. A ordem de comemorações é só provocação redundante. Quem era quem no golpe: nove figuras decisivas em 1964
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