A borboleta de Rubem Braga
A
arte de tornar um lepidóptero vulgar mais importante que as notícias
Sérgio Rodrigues,
Folha de S. Paulo
Em
setembro de 1952, o cronista Rubem
Braga (1913-1990) fez uma experiência literária e tanto:
manteve os leitores pendurados no suspense de um minifolhetim em três capítulos
protagonizado por uma borboleta.
Carro-chefe
do livro “A Borboleta Amarela”, de 1955, o tríptico saiu no jornal Correio da
Manhã como “Borboleta” só (sem número, II e III). Seu sopro de enredo é o voo
do bichinho nos arredores da Biblioteca Nacional, no centro do Rio.
Nada
acontece propriamente, mas isso não era novidade para os cultores de um gênero
que, nas palavras do crítico Antonio Candido, “pega o miúdo e mostra nele uma
grandeza”.
A
maestria com que o autor extrai grandeza do miúdo lepidóptero com o qual
esbarra na Cinelândia é que dá peso e permanência —por prazo indeterminado— a
uma criatura que é a própria encarnação do leve e do fugaz.
Isso
se deve primeiro ao talento de Braga para o borboleteio textual. De sua
cobertura arborizada em Ipanema, aquele cara rabugento era um especialista em
batucar uma prosa de jornal que dizia muito mais do que parecia dizer.
Ocorre
que, naquele momento, o voo atingia uma altura rara até para seus padrões.
Consta que Clarice Lispector acabou
de ler a terceira crônica, passou a mão no telefone e ligou para ele em
prantos.
Qual é o
segredo desse texto? Bom, não tenho a menor intenção de “empalhar a borboleta”,
expressão usada por Millôr Fernandes para criticar os tradutores de Shakespeare
que julgava eruditos demais —e escritores de menos.
Seria
ridículo tentar destrinchar aqui a mágica que faz o maior cronista brasileiro
da história atingir aquela voltagem lírica dele. Melhor desfrutar seus textos e
pronto. Mas arrisco dizer que a excelência de “A Borboleta Amarela” deve muito
à sua duração.
Que os
cronistas batiam asas por aí como vadios era sabido. Embora pudessem falar —e
muitas vezes falavam, pois encher jornal atrás de jornal era dureza— de
notícias, sua matéria-prima principal era o oposto delas.
Braga e seus
colegas brilhavam mais ao lidar com o banal, o detalhe revelado por um olhar
mais atento ao que constitui o cotidiano do que àquilo que dele se destaca.
Nesse
sentido, a borboleta é, para o cronista, uma espécie de assunto ideal: frágil,
desimportante e efêmera, mas também bela, “poética”, indutora de sorrisos.
Contudo, ao
se desdobrar por dias e virar heroína de série, a borboleta de Braga se torna
algo mais enigmático e aflitivo. Pela força de séculos de tradição narrativa,
passa a carregar em seu fiapo de corpo o peso da ansiedade leitora. De certa
forma, vira notícia.
Trecho do
último parágrafo: “Cheguei a receber telefonemas: ‘eu só quero saber o que vai
acontecer com essa borboleta’. Havia, no círculo das pessoas íntimas, uma certa
expectativa, como se uma borboleta amarela pudesse promover grandes proezas no
centro urbano”.
Não podia.
No fim ela simplesmente some, ou melhor, o cronista a perde de vista entre
edifícios e estátuas, e para disfarçar sua decepção se põe a contemplar umas
rolinhas.
Nada
aconteceu —ou sim? Que a pergunta sirva de convite à leitura de Braga e da
grande crônica brasileira, também conhecida como “gênero menor”.
Há muito
tempo tenho vontade de imitar o cronista, fugir das graves notícias que nos
assolam e escrever sobre a desimportância de uma borboleta amarela. Que pode
acabar sendo, ao seu modo, o mais importante de tudo. Cheguei a pensar que
nunca fosse conseguir.
Veja uma dica de leitura: Raimundo Carrero https://bit.ly/3pCHkXY
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