Covid: ciência e cobiça nas
novas vacinas de mRNA
Eficazes
contra múltiplas variantes do coronavírus, elas foram desenvolvidas rápido e
abrem campo promissor para a ciência. Mas devido às patentes, serão para poucos
– embora tenham sido criadas com dinheiro e pesquisa pública
Gabriel Brito, Outra saúde/Outras
palavras
Estados
Unidos e Europa aproximam-se de novo inverno e, além de gás russo para aquecer
suas casas, a população precisará de novas vacinas contra a covid-19 e suas
variantes. Não haverá dificuldades. Pfizer-Biontech e Moderna, as duas
corporações farmacêuticas convidadas pelos governos europeus e norte americano
a fornecer imunizantes, entregarão, nas próximas semanas dezenas de milhões de
doses, que protegem tanto contra o vírus original quanto contra a ômicron e
suas subvariantes. Faturarão bilhões de dólares e euros.
Tirarão
proveito, contou ontem matéria do Wall
Street Journal, da tecnologia muito potente do RNA mensageiro (mRNA). A partir
de bases de dados globais, que contém milhões de amostras de vírus, os
cientistas “desenham” o código genético (DNA) da proteína que estimulará o
sistema imunológico a produzir os anticorpos necessários a proteger a população
vacinada. Deste DNA deriva-se o mRNA e se produzem a partir daí as vacinas.
Poupa-se o exaustivo trabalho consumido, antes, para cultivar os vírus,
enfraquecê-los ou neutralizá-los e prepará-los para injeção segura no corpo
humano. No caso da Pfizer, relata a matéria, a fase final do processo de
produção das novas vacinas consumiu apenas dez dias. A tecnologia faz milagres.
Ainda
assim, o abismo vacinal que marca a covid desde o início da pandemia
prosseguirá. Os novos imunizantes não serão destinados à população do Sul do
planeta – um terço da qual não recebeu ainda nenhuma dose. Pfizer-Biontech e
Moderna bloquearam, com apoio da
Organização Mundial do Comércio (OMC) a produção das vacinas fora de seus
laboratórios. Agora brigam entre si pela propriedade da patente.
Mas
há, nesta exigência de exclusividade, um aspecto pouco divulgado. Nenhuma das
corporações desenvolveu a tecnologia que permite a produção tão rápida das
vacinas. Em sua fase inicial, ela foi totalmente criada em laboratórios
públicos. Mais tarde, para o desenvolvimento final, as empresas privadas
receberam rios de dinheiro dos Estados. Um apelo dos Médicos sem Fronteiras
sustenta: também por isso, as empresas deveriam ser obrigadas a partilhar do
conhecimento desenvolvido. Se isso fosse feito, mais de 100 países teriam
condições de produzir imunizantes.
A
história do financiamento público está contada em textos como este
artigo do
National Center for Biotechnology Information (NCBI). Barney Graham, diretor do
Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID) – um órgão público
dos EUA – foi o principal responsável pela descoberta do RNA mensageiro como
potencial criador de uma proteína eficaz contra o antígeno que dá origem a este
tipo de gripe. Ele e outros colegas receberam mais de 8 milhões de dólares de
financiamento desta agência pública, distribuídos em 24 projetos, para
investigar a proteína originária do betacoronavírus humano, associada a esta e
outras doenças respiratórias.
Posteriormente,
o próprio Departamento de Defesa dos EUA passou a oferecer financiamentos para
pesquisas de alto risco em doenças respiratórias. Foram US$ 33 milhões que um
de seus braços, o Defense Advanced Research Projects Agency, concedeu desde
2011 concedeu à CureVac (braço da Sanofi) e à In-Cell-Art para desenvolver
pesquisas que utilizassem a tecnologia do mRNA como chave para a criação de
vacinas. Em 2013, outros US$ 25 milhões foram concedidos à Moderna para
desenvolver vacinas contra a chicungunha e o zika vírus a partir da mesma
técnica.
Mas
é após a eclosão da pandemia que o financiamento estatal explode. Foram 18
bilhões de dólares que a Operation Warp Speed, parceria público privada lançada
pela Casa Branca, despejou em seis empresas candidatas a desenvolver uma vacina
contra o coronavírus. Responsável por aportar US$ 6 bi à Moderna, o National
Institute of Health inclusive é coproprietário de sua patente. Desenvolvida a
vacina, a empresa já vendeu mais de 500 milhões de doses ao governo
estadunidense e abocanhou ao menos outros US$ 4 bilhões.
“Foi
o Estado quem desenvolveu a vacina”, afirmam enfaticamente Richard G. Frank,
Leslie Dach, Nicole Lurie na publicação Health
Affairs. Além do aporte econômico, os pesquisadores frisam que o Estado
tirou todas as barreiras burocráticas, tais como riscos na pesquisa, obstáculos
em comprovar sua eficácia, capacidade de armazenamento e garantia de compra
mesmo que não houvesse demanda. Ainda lembram que a Biomedical Research and
Development Authority (BARDA) investiu ao menos US$ 19 bilhões, conforme
detalhamento do orçamento
oficial do
país, enquanto a jornalista Lisa Cornish projeta em até US$ 39 bilhões os
aportes totais, em um trabalho que mapeia todo
o investimento global de resposta à covid-19.
Agora,
seus executivos aparecem em uma lista
da Forbes dos mais ricos dos
EUA. Tamanho lastro de dinheiro público, fez da vacina um grande negócio.
Com
6,5 milhões de óbitos oficiais, mas suspeitas da OMS de um total real de
até 17
milhões de mortes, vivemos mais uma história em que o capitalismo mostra sua
incompatibilidade com a universalização de necessidades e direitos básicos e a
afirmação de uma sociabilidade pautada pela ética.
A pressa é inimiga da opinião https://bit.ly/3n47CDe
Nenhum comentário:
Postar um comentário