20 julho 2023

Uma crônica de Cícero Belmar

Corrida maluca

Cícero Belmar*

 

Estamos voando. Às vezes, fico em dúvida se o dia ainda tem as mesmas 24 horas e, a semana, sete dias. Tudo passa num piscar de olhos. Nunca dá tempo para fazer tudo o que é preciso. Desconfio seriamente que alguém deu corda no relógio do Universo. O calendário diz que hoje é 26 de junho, metade do ano já se foi, e a outra metade começa no próximo sábado. Apertem os cintos. Numa hora dessas, o piloto não pode sumir.

Existe uma frase que acho perfeita para os dias que voam. Diz, mais ou menos, que o tempo é um alucinado correndo atrás de você, com uma faca na mão. Não há como deter essa jornada angustiante ou voltar. É quase uma obrigação prosseguir como estivéssemos no automático, nessa eterna sensação de que estamos atrasados e aflitos. Quem corre fugindo de uma perseguição se descompensa também.

Uma amiga “analisada” está com a mesma sensação de que o tempo parece fora do padrão. Ela me disse que quem “tem um maluco, com uma arma na mão, correndo atrás de si” perde o controle, encontra o desespero, torna-se ansioso. Nunca fomos tão ansiosos. Parece até uma epidemia, queremos tudo ao mesmo tempo e agora. Arranjamos uma boa desculpa para a correria: vivemos sob o estímulo de atingir nossos objetivos, num excesso de energia e motivação. Quando percebemos, o dia passou.

Na vida cotidiana, temos um pé no presente e o outro no futuro. O Carnaval foi um dia desses, a Páscoa, o Dia das Mães, o dos Namorados. Num piscar de olhos chegou o São João, que já foi anteontem. Já-já será o Dia dos Pais, que engatará no Dia das Crianças, valei-me Nossa Senhora Aparecida em 12 de outubro e, finalmente, Finados. Quando chegarmos lá, o que restou de nós?

É até compreensível que, em tempos de tecnologias e do instantâneo, nós não possamos andar em passo de tartaruga. Mas, não vamos exagerar, também não somos pilotos de Fórmula 1. Por falar em tecnologia, talvez tenha sido ela mesma que nos deixou assim, querendo correr sem saber qual o destino que vamos alcançar. Os processos das máquinas são velozes. Cada vez mais velozes. Nós nos adaptamos às máquinas, em vez de elas nos servirem. A tecnologia nos impede de ver o tempo passando lá fora.

Somos inventores do tempo e agora achamos que toda espera, é longa. Ainda hoje disse ao motorista do Uber que quanto mais rápido, melhor. Esse desejo de ganhar tempo é quem está nos deixando sem tempo. “Vida, minha vida, olha o que é que eu fiz”: com a desculpa de estarmos ganhando tempo, no balanço de perdas e danos, estamos perdendo. Quem ganha tempo, adoece porque tira o pé do presente e se ilude pensando que já é o futuro.

Um dia desses, vendo os arabescos, portais e varandas em fachadas de casarões antigos do bairro da Madalena, onde moro, no Recife, cheguei à conclusão de que as pessoas que construíram aqueles sobrados tinham tempo de sobra para fazer aquelas obras de arte. Esmeravam-se nos detalhes que faziam cada casa ser única. São construções do início do século 20 e até mesmo de antes. As casas são a poesia concreta do tempo.

Vi as fachadas e segui no meu passo curto e rápido, sempre rápido, compreendendo que a falta de tempo nos rouba a criatividade. Afinal, quem viveu há um século não tinha essa mesma sensação de tempo correndo e por isso até as coisas tinham mais personalidade. Sinto muito senhores e senhoras passageiros e passageiras desse voo, mas nessa pressa não dá tempo sequer de deixarmos o registro de nossa passagem por aqui. (Passei da hora, fui).

*Jornalista, escritor

Navegar é preciso, viver não é preciso https://bit.ly/3Ye45TD

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