Luciano Siqueira
É um desses restaurantes de auto-serviço (opa! tenho que escrever self service) onde a comida é boa e variada e não é cara.
Mais: as mesas são dispostas de tal modo que é possível comer e observar os comensais.
Esse hábito eu trago desde a adolescência: prestar atenção às pessoas em ambientes públicos imaginando-as bichos, aves em particular, ou personagens de uma peça ou de um filme.
Ate figuras complexas como Abelardo I e Abelardo II, de o Rei da Vela, de Oswald de Andrade, ja "vi" em longa espera no salão de embarque do Aeroporto de Congonhas.
Também estive cara a cara com Capitu, personagem de Machado de Assis em "Dom Casmurro", por sinal lindíssima.
Agora, aqui no restaurante, ela — a jovem que observo a uma distância de quatro metros — lembra uma delicada águia. É o que me veio à mente apesar da minha ignorância sobre águias, pois nem sei se elas podem ser delicadas ou não.
Mas não são os traços fisionômicos afilados, digamos assim, que atraem a minha atenção. É a sua capacidade de expressar no rosto se não exatamente o que diz, a emoção que experimenta.
Pois entre uma garfada e outra, dirige-se à amiga com quem divide a mesa, não sei se contando uma história ou discorrendo sobre a personalidade de alguém naturalmente ausente.
Sim, ela parece falar de alguém "pelas costas", como se dizia no século XX.
E bom sujeito (o sujeita?) certamente não é, pois a jovem falante exibe expressões de indignação, ironia ou mesmo desprezo.
Ora os olhos parecem saltar do rosto, quando se esforça para enfatizar o que diz; ora comprime os lábios...
Agora a águia deu um intervalo e escuta as ponderações da amiga. Observo, enfim, que se trata mesmo de uma bela mulher, cujos traços fisionômicos se transformam ao calor da emoção.
Controlasse o que sente, bem que permaneceria bonita mesmo quando indignada.
Em entrevista, a atriz Fernanda Torres disse observar atentamente as pessoas nos vários ambientes que frequenta e se vale do que viu ou imaginou perceber para compor futuros personagens.
Não sou ator, mas confesso que aprendo muito ao observar atentamente as pessoas no meu entorno — mesmo quando desconhecidas e à distância.
Afinal, a luta politica a que me dedico há décadas é de gente que trata, tendo a felicidade coletiva como horizonte desejado.
Termino o almoço e saio do restaurante me sentindo devedor da bela águia capaz de traduzir a natureza humana em mutantes expressões faciais.
[Ilustração: Van Gogh]
"O custo de um pequeno gesto" - uma crônica sobre a indiferença https://tinyurl.com/27mvmzdw
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