08 setembro 2023

Educação libertária

"No entanto, ela se move"

O conservadorismo sabe do papel político dos conteúdos escolares e elege a escola como sua inimiga. Isso mostra que o que ensinamos pode ter impacto no modo como os alunos pensam, sentem e veem o mundo. Em outras palavras, ter uma escola que ensine conhecimento científico, artístico e filosófico não é algo menor; trata-se de algo temido pelo bolsonarismo
Helio Messeder Neto/Le Monde Diplomatique



O que a escola deve ensinar? Essa pergunta está longe de ter respostas fáceis e não passa despercebida pelo debate público. Por exemplo, são muitas as publicações na internet que, em forma de memes, insistem em dizer: “Mais um dia se passou e eu não usei a fórmula de Bhaskara em nada na minha vida”. O debate sobre que tipo de conhecimento e como ele deve aparecer na escola é antigo, e as escolhas feitas têm estreita relação com o sujeito que queremos formar. Sim, toda nação (e cada escola) tem um projeto político-pedagógico; portanto, dizer quem queremos formar e para que é responder também sobre o que queremos ensinar na escola.

O conservadorismo sabe do papel político dos conteúdos escolares e, não à toa, elege a escola como sua inimiga. Em uma fala recente,¹ Eduardo Bolsonaro comparou professores a traficantes, afirmando que um docente doutrinador causaria discórdia na família, já que ensinaria crianças a ver opressão em tudo. Tal discurso faz, nas linhas e entrelinhas, uma convocação para que a família reconheça nos professores os inimigos que querem destruir seu lar e, mais do que isso, que os conceitos ensinados na escola precisam estar de acordo com os dogmas ensinados em casa; caso contrário serão considerados destruidores da família. Isso leva, claro, os professores a ficarem temerosos em ensinar certos conteúdos, como teoria da evolução, debates de gênero e sexualidade, questões raciais e sociais, que trazem resultados contrários ao q ue o conservadorismo considera ideal.

Poderia aqui seguir argumentando com os leitores que a escola tem problemas mais graves e dificilmente consegue realizar o trabalho de ensinar (de fato) esses conteúdos em sua plenitude, e que, diante das condições materiais concretas da escola pública, gastamos mais tempo de nossa aula tentando organizar minimamente a sala e gestando problemas de comportamento. Poderia acrescentar ainda que os alunos são sujeitos do processo educativo, ou seja, refletem sobre o que os professores dizem, não sendo simplesmente receptores passivos de informação.2 No entanto, o que quero destacar é que a preocupação do bolsonarismo acerca dos conceitos escolares nos mostra, por contraste, que o que ensinamos pode ter impacto no modo como os alunos pensam, sentem e veem o mundo. Em outras palavras, ter uma escola que ensine conhecimento científico, artístico e filosófico não é algo men or; trata-se de algo temido pelo bolsonarismo.

Tamanha é a importância dos conteúdos escolares como ferramentas para questionar a realidade que a defesa de seu esvaziamento não está apenas nos discursos inflamados dos bolsonaristas. O vácuo de conceitos se concretizou, em sua face perversa, com o Novo Ensino Médio (NEM). Está mais do que claro que o NEM oferece para nossa juventude da escola pública, cuja maioria é negra e periférica, uma formação precarizada, voltada para um mercado de trabalho sucateado, retirando ou diminuindo a carga horária de disciplinas básicas, como Química, Física e Sociologia, para em troca oferecer matérias que envolvem fazer brigadeiro gourmet.3 O que temos para nossa juventude é a retirada da possibilidade de aprender conteúdos escolares, os quais são substituídos por demandas pragmáticas, imediatas, que visam aprofundar a diferen&cced il;a de classes sociais no Brasil. A revogação do NEM é urgente, e o resgate de uma escola que defenda o ensino de conteúdos fundamentais é imprescindível.

Contudo, não é todo conteúdo escolar que terá esse papel de atuar sobre a visão de mundo do estudante. A crítica de Paulo Freire a uma educação bancária, que simplesmente ensina os alunos a decorar nomes e fórmulas sem sentido, deve ser feita e é legítima. A escola precisa pensar em um ensino de conteúdos que ajudem a entender a vida real, de carne e osso. Mas veja que eu disse a vida concreta, e não apenas o dia a dia. Entender a vida quer dizer compreender a riqueza, as potências e os limites do conhecimento humano produzido e como ele foi gestado coletivamente, imerso em contradições. Aprender sobre tais aspectos é importante mesmo quando, individualmente, não lidamos com esse conhecimento em nossa profissão. Não aprendemos a fórmula de Bhaskara na escola simplesmente porque vamos ou não usá-la em nosso cotidiano, mas aprendemos (ou deveríamos aprender) para entender que não existe um dia neste mundo que a tal fórmula, desde que foi descoberta, deixou de ser útil para a humanidade produzir, projetar e resolver inúmeros problemas relacionados à ciência e à tecnologia. Entender a vida real, coletiva em suas necessidades humanas, é central numa escola que nos quer mais humanos.

Defendo aqui, portanto, que cabe à escola ensinar Ciências da Natureza, Ciências Sociais, Artes, Filosofia, Educação Física, entre outras disciplinas, pautando-se no máximo que conseguirmos avançar em nossa história humana, mostrando também seus impasses e seus limites. Uma escola viva, que ajude o estudante a olhar não só para si, mas para o coletivo, a entender o mundo em movimento e, por isso, sentir a necessidade de transformá-lo diante das mazelas sociais.

Uma escola que ensinar conteúdos nos termos que aqui apresento será uma escola comprometida com a verdade histórica e, desse modo, ajudará a compor o antídoto contra as fake news que assolam nossa vida. O ensino da Matemática concreta ampliará nossa capacidade de raciocínio lógico; as Ciências da Natureza e Sociais nos ajudam a pensar o que fazer diante de dados e fatos; as Artes nos ajudam a entender o que somos, como e por que sentimos; a Biologia, a Sociologia e a Educação Física nos ajudam a pensar o que é a cultura corporal e como ela pode se expressar em mim e no outro; a Filosofia concreta nos ajuda a ter um olhar analítico sobre diferentes proposições do mundo e até mesmo sobre as religiões. A escola que ensina conteúdos vívidos se põe contra todos os mitos e contribui para a formação do tal pensamento crítico de que tanto ouvimos falar nos discursos educacionais.

Talvez o leitor possa pensar que este texto defende uma escola chata e conteudista, na qual jovens e crianças ficam o dia todo sentados na carteira. Não é verdade. Defender que a escola ensine conteúdos artísticos, científicos e filosóficos, em vez de bobagens pragmáticas neoliberais simplificadoras, significa defender uma escola rica, que pensa o sujeito como um todo e vai além da palavra vazia, buscando as melhores formas de ensinar (dentro das condições possíveis) para vincular a dor e a delícia da humanidade de produzir seu conhecimento apontando sempre para práticas mais coletivas e respeitosas.

Pessoas e livros já foram queimados quando ousaram defender a verdade. O conhecimento sempre foi combatido pelo conservadorismo. Galileu Galilei, diante do julgamento da Inquisição, teve de negar o heliocentrismo, mas reza a lenda que, ao abjurar o movimento da Terra, teria dito em voz baixa: “No entanto, ela se move”. 

Entendo que, nestes tempos de avanços obscurantistas, precisamos continuar – dentro de nossas possibilidades individuais e coletivas – disputando o conhecimento científico, artístico e filosófico, aprendendo com os que nos antecederam e lutando pela verdade histórica. Por mais que insistam que a escola precisa se silenciar em relação ao movimento da Terra, às questões da evolução da espécie, aos debates de gênero, ao socialismo e a tantos outros conteúdos importantes, seguiremos dizendo: “Apesar de tudo, ainda nos movemos”.

*Helio Messeder Neto é educador popular, professor de Química da UFBA e doutor em Ensino de Ciências pela mesma universidade. Contato: helioneto@ufba.br.

¹ “Eduardo Bolsonaro compara professores a traficantes; PF deve analisar fala”, CNN Brasil, 10 jul. 2023.

² Para ver essa discussão com detalhes, sugiro a leitura de Gaudêncio Frigotto (org.), Escola “sem” partido, LPP-Uerj, Rio de Janeiro, 2017.

³ “Após reforma do ensino médio, alunos têm aulas de ‘O que rola por aí’, ‘RPG’ e ‘Brigadeiro caseiro’”, Exame, 13 fev. 2023.

O caleidoscópico tempo presente https://bit.ly/3Ye45TD

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