Amores literários volúveis
Cícero Belmar*
Isto que eu chamo de realismo mágico: escritor falecido há 10 anos volta a causar frisson no mercado editorial, num mundo onde cada vez se lê menos, com obra inédita. O lançamento do seu livro está sendo aguardado pelos fãs, como um show de um popstar ausente. Depois de amanhã, 6 de março, será conhecido em vários países um romance póstumo de Gabriel García Márquez: Em Agosto, nos Vemos.
Eu sou um desses fãs de sua obra irretocável. Acho que ele escreveu textos incríveis como Notícias de um Sequestro ou Ninguém Escreve ao Coronel, além, claro, dos popularíssimos Cem Anos de Solidão e Amor nos Tempos do Cólera. O que me impressiona nos romances e contos dele é a capacidade de enxergar sutilezas da vida, valorizar detalhes realmente importantes, é a maneira cativante das narrativas.
Gabriel García Márquez tinha uma força criativa tão genial que nos fazia acreditar não só em personagens que existiam apenas em sua imaginação, como também num universo subjetivo por onde eles transitavam. A poesia, uma poética mágica, determinava as atitudes das criaturas dessa ficção.
Houve uma época em que Gabriel García Márquez foi o papa de minha religião. Na verdade, eu troquei o papa anterior por ele. Tinha sido Jorge Amado. Que, aliás, continuo amando. Sofro da síndrome dos amores literários volúveis, estou sempre trocando de papa.
Descobri Jorge Amado quando foi inaugurada a primeira biblioteca pública de minha cidade, Bodocó-PE, em meados da década de 1970. Eu teria, se muito, 12 anos. Estava orgulhoso de poder pegar um livro emprestado sem precisar da anuência dos meus pais. Era Capitães da Areia. Para quem vinha da leitura de A Moreninha, O Guarani, A Cabana do Pai Tomás e Meu Pé de Laranja Lima, aquilo foi uma porrada.
Jorge Amado mexeu com a minha cabeça. Eu não sabia que um escritor sério podia escrever palavrões, dizer o nome ou o apelido dos genitais, as cenas quentes que eu só tinha lido até então nos livros de bolso e nos romances de Cassandra Rios e Harold Robbins. Li Jorge Amado num fôlego, Dona Flor, Tereza Batista, Gabriela, livros de capa dura, cor de vinho, com páginas novinhas e cheirosas. Por causa do Amado, me viciei em cheirar livros novinhos.
Jorge Amado me perturbou e me deu entusiasmo pela literatura. Eu já estava morando no Recife quando conheci os livros de Gabriel García Márquez. Fiquei empolgado com o realismo mágico, Cândida Erêndira, a família Buendía, a solidão do coronel que esperava mensagem pelos correios.
Eu via um ponto em comum em Jorge Amado e Gabriel García Márquez: ambos seduzem porque são grandes contadores de histórias. Por causa deles, achei que era fácil escrever, assim como quem ouve Gal Costa e acha que é fácil cantar. Mas, só quem tenta imitá-los é que sabe o quanto é difícil encontrar a palavra exata para secar as feridas.
2024: vinte anos se passaram desde que o velho Gabo escreveu o seu último livro, Memórias de Minhas Putas Tristes. Lembro-me que a narrativa me remeteu ao A Casa das Belas Adormecidas, do japonês Yasunari Kawabata. Ou seja, “meu coração galinha de leão” já tinha novo amor literário. Outro papa.
Hoje, eu sei que o meu amor é o mesmo pela leitura dos livros do baiano e do colombiano. Eles foram escritores porque acreditavam na arte literária, nas verdades da arte literária, na magia da arte literária. Acreditavam no jogo sutil de dizer coisas importantes através dos seus personagens.
Jorge Amado foi cremado em 2001, Gabriel García Márquez em 2014. O que eterniza num artista é aquilo que ele compartilha, o que reparte com os outros. É a sua luminosidade de estrela enquanto esteve aqui.
*Jornalista, escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário