“Niilismo histórico” e a luta pela emancipação nacional
A saga do Brasil por sua libertação teve início nos primórdios da formação nacional. A resistência nasceu com as primeiras gerações surgidas em solo pátrio. É esta rica trajetória do povo brasileiro que se quer apagar da memória com a imposição do “niilismo histórico”
Sérgio Cruz/Hora do Povo
Este “7 de setembro” é uma boa oportunidade para enfatizarmos algo que é básico, porém, ainda não inteiramente absorvido entre nós, o de que a espinha dorsal de qualquer nação é a sua história e seus heróis. Atacá-los com o objetivo de subjugar um país é o objetivo central de todos os opressores e exploradores.
A arma ideológica dos impérios para manter seus privilégios é a imposição do “niilismo histórico”, ou seja, a negação da luta dos povos. É o ataque sistemático aos heróis e à resistência dos países oprimidos, com o objetivo de minar a sua luta.
Eles sabem bem que denegrir o passado de resistência de qualquer povo é a melhor arma para enfraquecer a sua luta no presente. A saga do Brasil por sua libertação teve início nos primórdios da formação nacional. A resistência nasceu com as primeiras gerações surgidas em solo pátrio. O Brasil já surgiu lutando contra a espoliação colonial. Da ação do índio rebelde, do escravo negro insubmisso e dos europeus que adotaram o Brasil como sua pátria, foi forjada a nova “civilização dos trópicos”.
Como apontou o clássico de Darcy Ribeiro, a “nova civilização” foi fruto da miscigenação do negro, do índio e do branco europeu, que lutaram juntos. Fruto desta convivência e das batalhas pela liberdade nasceu a Nação Brasileira.
O povo começou a se bater contra o opressor já nos quilombos, seguiu no levante dos Emboabas, nos Mascates, na luta de Felipe dos Santos, na Batalha dos Guararapes, na Inconfidência Mineira, nos Alfaiates, na luta libertária dos irmãos Andrada e em Pirajá, na abolição e na República, na Revolução de 30, na luta pelo petróleo, contra a ditadura e, agora, ela segue com o intento de enterrar de vez o fascismo.
É essa rica trajetória brasileira que se quer apagar da memória nacional. Riscar o povo de sua história e “teorizar” que não existiram heróis e nem heroísmos no Brasil, apenas jogo de interesses, ambições e mesquinharias. Criaram narrativas de que os conflitos no país só se resolveram por meio de “cambalachos” e “negociatas”.
IDEOLOGIA IMPOSTA DE FORA
Essa tese elitista, arrogante e antinacional foi devidamente desmascarada pelo saudoso general Nelson Werneck Sodré, um dos maiores historiadores brasileiros. Ele a caracterizou como a “ideologia do colonialismo”.
Em suas palavras, “uma ideologia imposta de fora para dentro com o objetivo de eternizar a dominação”. Lula, mais recentemente, simplificou essa discussão afirmando que essa ‘ideologia’ não passa de puro “vira-latismo”. Ou seja, os “vira-latas” acham que só tem valor o que ocorre na Europa, nos EUA ou em qualquer outro lugar. O que é feito no Brasil não presta.
Este método de dominação ideológica – apagar a história, denegrir heróis e quebrar a autoestima dos povos – vem sendo tema de discussão recente de estudiosos chineses. Foram eles que criaram o termo “niilismo histórico” e o imputaram ao mesmo colonizador inglês. Os mesmos que dominaram o Brasil durante praticamente todo o século XIX e início do XX. Assim como ocorreu por aqui, a Coroa inglesa subjugou e explorou o gigante asiático. Os chineses caracterizam esse período de semicolônia como o “Século das humilhações”.
A rica e milenar história chinesa só começou a ser amplamente reconhecida, dentro e fora do país, a partir de 1949, com sua revolução nacional e a expulsão definitiva das potências coloniais e imperialistas que parasitavam as riquezas da China. Hu Zhongyue, pesquisador do Centro Chinês de Estudos Estratégicos e Internacionais, examinou recentemente também as causas do colapso da União Soviética (URSS) e concluiu que o país-irmão da Eurásia, se deixou sucumbir, principalmente nos anos 90, pelo “niilismo histórico” imposto pelo ocidente. Ele enfatizou a necessidade do trabalho ideológico dentro da China e a vigilância contra essas tendências introduzidas na sociedade.
CONFIANÇA NO CAMINHO
“Devemos nos proteger ativamente e combater firmemente a invasão do niilismo histórico; manter a confiança em nosso caminho, em nossas teorias orientadoras, em nosso sistema político e em nossa cultura”, afirmou o estudioso (Leia aqui).
A Rússia, país analisado por Zhongyue, de fato viveu uma situação desse tipo. Com a ascensão ao poder de dois serviçais do imperialismo, Mikhail Gorbachov e Boris Yeltsin, o país concluiu a destruição de sua economia e iniciou uma violenta perseguição ao seu passado. Uma nação que havia se transformado na segunda maior potência mundial, que esteve na vanguarda tecnológica e espacial e que derrotou a máquina de guerra nazista, viu sua história ser renegada completamente.
Os governos pró-imperialistas – começando por Nikita Kruschov – atacaram a URSS e destruíram a imagem de seus heróis. Atualmente, tanto Vladimir Putin quanto Gennady Ziuganov, líder do PC da Federação Russa, este último mais do que o primeiro, já perceberam o mal que essa política fez ao país e ao seu povo e desenvolvem um trabalho intenso de resgate de seu passado, particularmente das glórias da União Soviética. Consideram essa questão como fundamental para a vitória contra a OTAN e seus lacaios.
De volta ao Brasil, vimos que, no “7 de setembro” de 1822, o país deixou formalmente de ser uma colônia portuguesa. Deixou de ser um país sem nenhuma autonomia política e sem poder produzir nada internamente, a não ser açúcar e ouro que deveria enviar para a metrópole. Tornou-se a partir desta data um país autônomo, desligado de sua antiga metrópole colonial. Conquistamos a independência política e a consolidamos pouco depois, em novembro de 1822, com a vitória na Batalha de Pirajá, e com o 2 de Julho do ano seguinte, na data considerada a “Independência” da Bahia.
PREPOTÊNCIA INGLESA
No entanto, assim que foi vencido o domínio português, a ganância e a prepotência dos monopólios ingleses, que já vinham parasitando outros países, conseguiu se interpor no caminho da liberdade e do desenvolvimento do país e logrou nos manter, pela força das armas e do dinheiro, na triste condição de semicolônia inglesa.
Em que pese toda a luta em sentido contrário – José Bonifácio foi exilado por defender a abolição dos escravos – o país foi forçado a manter um modelo arcaico de monocultura escravista e exportadora.
Permaneceu o domínio dos latifundiários escravistas internos, desta vez associados aos banqueiros ingleses. Continuamos sem conseguir produzir nada de significativo internamente e não logramos impedir a invasão de mercadorias estrangeiras. Eles nos impuseram os produtos industriais ingleses em troca do açúcar. Caímos na armadilha do endividamento crônico do país. Predominou a agiotagem da libra que asfixiou o país.
Por mais de sessenta anos os patriotas republicanos e abolicionistas lutaram contra esse descalabro.
Este foi o período em que o Brasil foi tomado por revoltas em quase todos os seus quadrantes. O país inteiro se levantou contra o regime monárquico, escravista e submisso à Inglaterra. A Revolta dos Farrapos, de 1835 a 1845, no Rio Grande do Sul; a Cabanagem, no Pará, de 1835 a 1840; a Sabinada, na Bahia, de 1837 a 1838; a Balaiada, no Maranhão, de 1838 a 1840; a Revolução Praieira, de Pernambuco, de 1848 a 1850 e a Revolta dos Malês, na Bahia, em 1835. Praticamente todas elas defendiam, de uma forma ou de outra, o fim da escravidão e da monarquia.
A vitória abolicionista e republicana veio em 1888/89. Ela foi um golpe importante nos banqueiros ingleses e em seus sócios internos do latifúndio escravista. Mas, a família Rothschild, em conluio com a reação interna, conseguiu se rearticular e impedir a consolidação dos planos industriais da República.
Desestabilizaram de todas as formas – inclusive com ataques especulativos e transferências clandestinas de reservas – os governos Deodoro e Floriano Peixoto. Fizeram tudo para retornar ao regime anterior. Intensificaram a sabotagem contra os dois primeiros governos republicanos e, ao final, conseguiram nos impor a oligarquia cafeeira. Em consequência disso, seguimos atrasando o nosso desenvolvimento industrial por muitos e muitos anos.
Esta “vitória inglesa” manteve o Brasil por décadas como um país atrasado, rural e empobrecido, uma verdadeira fazenda exportadora, agora de café, e importadora de produtos industriais ingleses. Só em 1930, com a vitória da revolução liderada por Getúlio, o país vence essa etapa semicolonial e inicia o seu processo de industrialização e modernização.
Derrotado o domínio inglês, o país se desenvolveu e se industrializou aceleradamente. Uma moderna legislação social e trabalhista foi implantada no Brasil e o mercado interno se expandiu. Passos importantes foram dados no sentido da conquista da independência econômica e política, principalmente econômica.
Foram suspensos os pagamentos da dívida e feita uma auditoria em seus métodos de cálculo. Liberto das amarras financeiras, o Brasil investiu maciçamente em mineração, na siderurgia, na fabricação de motores, no petróleo, na eletrificação geral do país, etc. As decisões econômicas foram finalmente assumidas por brasileiros e o Estado Nacional se consolidou.
IMPERIALISMO AMERICANO
Nesta fase, o imperialismo americano, que saiu fortalecido da II Guerra Mundial, tomou o lugar da Inglaterra em sua intenção de impedir a concretização definitiva da independência brasileira e do desenvolvimento do país. Sua meta foi manter o Brasil, já não como uma semicolônia, mas como sua “área de influência”, ou melhor, como um país de capitalismo dependente. Neste período já se utilizavam largamente os instrumentos monopolistas, os meios de coerção financeira e as agressões militares.
A luta contra o imperialismo americano ocupou o centro da vida brasileira na segunda fase da Revolução de 1930, quando os ingleses já não eram os inimigos principais. Os artífices desta nova fase foram Getúlio, que já havia liderado a primeira etapa, Jango, Juscelino, Brizola, Arraes, Prestes, Julião e muitos outros. Os comunistas e a classe operária foram, crescentemente, se perfilando junto deles nas batalhas pela libertação nacional.
Em 1964 é implantada uma ditadura com apoio da Casa Branca e da CIA e operacionalizada pelos entreguistas e traidores internos. Com o golpe e a mudança forçada da política econômica, se interrompeu – ainda que parcialmente – o ímpeto desenvolvimentista iniciado com a Revolução de 30 e a política nacional desenvolvimentista que se seguiu a ela.
A ditadura rompeu, com o uso da força, da tortura, dos assassinatos e dos exílios, a aliança dos operários e da burguesia brasileira com o Estado Nacional na luta para completar definitivamente a independência nacional. Em seu lugar formou-se um regime de força, essencialmente antinacional e entreguista. A luta pela efetiva independência econômica foi interrompida. Uma fase negra se abateu sobre o Brasil.
LÍDERES E PATRIOTAS
Por mais de duas décadas, toda uma geração de patriotas, aí já com uma intensa participação de dirigentes comunistas, em grande parte formada por jovens, deu a vida para recolocar o Brasil novamente em seu roteiro histórico de progresso, de democracia e de efetiva soberania nacional. Esta foi uma época em que figuras como Ulisses, Brizola, Teotônio, Tancredo, Lula, Quércia, Marighela, Lamarca, João Amazonas, Cláudio Campos e outros passaram a ocupar o cenário principal da luta.
Enterrada a ditadura e elaborada uma das mais avançadas constituições do mundo, os brasileiros passaram a ter que se defrontar com o surgimento da fatídica “onda” neoliberal, uma farsa doutrinária, parida em Washington, para intensificar a exploração dos trabalhadores e o roubo dos povos.
A “onda neoliberal” visou salvar mais uma crise capitalista, iniciada na década de 70, desta vez, de caráter estrutural, e manter vivos seus mastodontes multinacionais ineficientes e em plena decadência.
Esta é a fase em que nos encontramos até hoje. Uma fase amplamente dominada pela oligarquia financeira dos EUA e seus instrumentos de poder, em avançado estado de putrefação, principalmente após a crise financeira de 2008. O Brasil se bate atualmente para concluir o processo de independência, interrompido em 1964. Este quadro se dá num momento de transição de um mundo unipolar, dominado pelos EUA, para um ambiente de multipolaridade onde os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) assumem papel cada vez mais proeminente.
ROMPER A DEPENDÊNCIA
Três são os problemas a serem enfrentados nesta fase. O primeiro, na economia, é a ruptura com o modelo dependente imposto ao país a partir do golpe e aprofundado na década de 90. Desde o Consenso de Washington, foi imposta ao Brasil uma camisa de força econômica que suga o país e impede o seu crescimento. Este modelo destruiu a indústria brasileira. Enterrar essas amarras do neoliberalismo e retomar o controle econômico do país é o grande desafio para a geração atual.
Para isso é fundamental derrotar ideologicamente o niilismo histórico e retomarmos o “fio da meada” da luta de libertação nacional. Temos que resgatar a nossa história para seguir firmes na luta atual. Não podemos aceitar que se retrate a independência política do país em 1822 como um simples “acordo de elites” ou um mero “cambalacho da monarquia”. Isso é uma afronta ao país e ao seu povo.
Não podemos conviver com a tese de que a conquista da abolição e da República, uma luta que mobilizou e empolgou o país inteiro durante mais de 60 anos, e que enterrou a escravidão e a velharia monárquica, tratar-se-ia de um mero golpe de Estado, dado por meia dúzia de militares.
GETÚLIO E A REVOLUÇÃO
Esta foi uma luta que envolveu milhares de pessoas de todas as camadas sociais, entre elas, Luís Gama, Castro Alves, Benjamin Constant, Silva Jardim, Lopes Trovão, Rui Barbosa, Deodoro, Floriano e muitos outros. Dos levantes do período regencial à Revolta do Vintém, milhares de pessoas deram a vida para derrubar o trono e libertar os escravos.
Essas versões estapafúrdias de “golpe sem povo” são a mais torpe e inverossímil deturpação da realidade. Precisamos compreender definitivamente que a independência foi uma grande conquista, que a abolição e a República foram avanços estruturais, do maior significado para o país, e que Getúlio Vargas conduziu uma revolução burguesa radical, que enterrou a república velha e a oligarquia latifundiária.
Que a chamada “Ditadura de 37” foi uma democracia para o povo e uma ditadura para a oligarquia, a reação e os seus apoiadores. O que a “ditadura democrática revolucionária” de Getúlio fez foi enterrar politica e economicamente a reação feroz da oligarquia latifundiária, antidemocrática e golpista que sugava o povo e impedia o país de avançar e se desenvolver.
Aqueles que anunciaram aos quatro ventos que pretendiam enterrar a “Era Vargas”, na verdade, representam os ecos desse passado retrógrado que foi derrotado. Repetiam – com ares de coisa nova – o velho e surrado receituário da oligarquia latifundiária, reacionária e submissa ao imperialismo. O que eles queriam era impedir que o Brasil se tornasse uma grande nação. Mas, nisso, eles não tiveram êxito. A história mostrou que o país e seu povo não se renderam. É com este espírito que comemoramos o “7 de Setembro”, dia da liberdade.
Leia também: democracia e soberania nacional https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/editorial-do-vermelho_10.html
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