'Em 2050, não vai haver nenhuma economia europeia entre as 10 mais importantes do mundo'
Cristina J. Orgaz/BBC
Com a economia estagnada e uma crescente fragilidade política na França e na Alemanha, a Europa enfrenta momentos difíceis.Somam-se a isso a guerra na Ucrânia e o regresso de Donald Trump à Casa Branca, que já ameaçou impor tarifas às indústrias europeias, o que poderia desencadear uma guerra comercial extremamente prejudicial para os exportadores da região.
"Temos o melhor sistema de saúde, a melhor educação, as melhores estradas, mas isso custa muito caro. Até quando podemos sustentar isso?", questiona Jorge Dezcallar de Mazarredo, embaixador e ex-diretor dos serviços de inteligência da Espanha.
"A Europa está em decadência, e com a perda de sua influência também desaparecerá o altíssimo padrão de vida", afirma o diplomata espanhol em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
Em sua avaliação, o mundo está testemunhando o fim de uma era geopolítica, visão que ele explora em seu último livro, O fim de uma era. Ucrânia: a guerra que acelera tudo, no qual aborda como o conflito está precipitando o declínio do domínio ocidental.
"A guerra vai muito além de uma disputa territorial para assegurar áreas estratégicas. Ela reflete forças profundas de mudança na geopolítica que rege o mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Hoje, o Ocidente perde força, enquanto o Sul global ganha peso", destaca.
A fragilidade política da Europa ocorre em um momento de estagnação econômica: a previsão para 2024 é de um crescimento tímido de 0,9%, deixando uma região que representa um quinto do PIB global atrás de outras partes do globo.
Analistas apontam diversas razões para explicar esse cenário, como a perda de competitividade, o aumento da concorrência internacional e as políticas de austeridade.
A Europa precisa de inúmeras reformas: ampliar sua capacidade militar, reconfigurar seu sistema de energia, reinventar sua indústria tecnológica e repensar sua postura em relação à Rússia e à China. Tudo isso enquanto o descontentamento de seus cidadãos fortalece partidos populistas e de extrema direita em diversos países do continente.
Nesta entrevista com Jorge Dezcallar de Mazarredo, analisamos os fatores que levaram o Velho Continente à sua atual crise geopolítica.
Por que a Europa atravessa momentos tão turbulentos?
Em pleno século XXI, testemunhamos um conflito bélico no coração do continente que mais parece uma guerra absurda de expansão territorial em estilo napoleônico.
A invasão da Ucrânia reflete o descontentamento da Rússia com a arquitetura de segurança europeia herdada da Segunda Guerra Mundial.
No entanto, este é um fenômeno muito mais amplo, de alcance global: grande parte dos países do mundo está questionando a distribuição de poder e as regras estabelecidas pelas potências vencedoras após 1945.
Isso significa que estamos diante do fim de uma era geopolítica.
Naquele ano, algumas potências ocidentais criaram as Nações Unidas, o Conselho de Segurança, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, ou seja, repartiram o poder entre si.
Agora, quase 80 anos depois, vemos que França e Reino Unido ainda têm assento permanente no Conselho de Segurança, enquanto países como a Índia, com 1,4 bilhão de habitantes e status de potência nuclear, ficam de fora.
A África não tem nenhum representante, e o mesmo ocorre com a América Latina.
Os Estados Unidos não abrem mão do controle sobre o Fundo Monetário Internacional, e a Itália possui tantos votos quanto a China no Banco Mundial.
E onde a China se encaixa nesse sistema?
A China afirma: "Somos um Estado civilizacional, estamos acima do bem e do mal". Os Estados Unidos não dizem isso abertamente, mas sempre agiram dessa forma — basta olhar para o que aconteceu no Iraque e em outros lugares.
A Europa hoje reflete o que está ocorrendo no mundo, mas nos surpreende mais porque temos uma visão um tanto pretensiosa sobre ela.
Quando há conflitos mortais na África, isso nos parece quase natural. Mas quando acontecem na Europa, encaramos como um escândalo. Essa perspectiva não deixa de carregar um certo racismo.
Você acredita que a Europa ainda olha para o resto do mundo de forma pretensiosa?
Não tenho dúvida disso. A Europa dominou o mundo por muitos anos, graças à máquina a vapor inventada na Inglaterra, ao domínio dos mares e, em grande parte, à escravidão.
Essa visão de superioridade ainda persiste, mas a Europa está equivocada e perderá relevância.
Atualmente, 62% do PIB mundial e 65% da população estão na região do Indo-Pacífico.
Os mapas costumam colocar a Europa no centro, mas o continente olha para um oceano onde cada vez menos coisas acontecem, enquanto o centro de gravidade econômica do mundo se deslocou do Atlântico para o Indo-Pacífico.
A Europa está claramente em decadência.
Já ouvi você dizer que a Europa tem 6% da população mundial, mas representa 50% do gasto social global. Esse modelo é insustentável? Foi longe demais com o 'Estado de Bem-Estar'?
Sim, fomos longe demais. Em 1900, a Europa tinha 25% da população mundial, e hoje mal chega a 6%. Mesmo assim, ainda retém 17% do PIB global.
Temos o melhor sistema de saúde, a melhor educação, as melhores estradas, mas isso custa caro. Por quanto tempo conseguiremos sustentar isso?
Causamos inveja no mundo. Mantivemos esse sistema por tanto tempo porque dominávamos o cenário internacional. Mas a realidade é que, em 2050, nenhuma economia europeia estará entre as 10 maiores do mundo.
A Índia acaba de ultrapassar o Reino Unido em Produto Interno Bruto.
Outro fator que aponta para a decadência da Europa é sua população envelhecida e, além disso, cada vez mais reduzida, pois morrem mais pessoas do que nascem.
Em que se traduz essa decadência?
Em uma perda de influência. A Europa não tem uma política externa comum, nem uma capacidade de projeção militar compartilhada, e também não possui uma política energética ou migratória comum.
A Europa precisa se integrar mais se quisermos continuar a ter relevância no mundo.
Em seu livro, o senhor afirma que a guerra na Ucrânia uniu mais a Europa, mas com o Reino Unido fora da União Europeia devido ao Brexit e a provável relutância da Alemanha em continuar a contribuir com tantos recursos devido à sua fraqueza econômica, parece que o que espera a Europa é mais desunião. Qual a sua opinião sobre isso?
É verdade que o Brexit enfraqueceu a Europa, e a fragilidade da Alemanha e da França neste momento também não ajuda. Não acredito que o presidente francês, Emmanuel Macron, complete seu mandato, francamente. Mas o apoio à Ucrânia é inabalável.
Putin quer recuperar para a Rússia a influência global que a União Soviética teve em seu auge. Esse é o seu objetivo. E ele não percebe que não pode. Não pode fazer parte da elite internacional quando não tem o PIB necessário, quando sua população é envelhecida e quando só produz matérias-primas.
E então, com força de vontade e sua potência nuclear, ele tenta se impor. E isso é muito perigoso. Quando a Europa defende a Ucrânia, está, na verdade, se defendendo.
O grande fracasso de todos os europeus foi não ter sido capaz de incorporar a Rússia pós-soviética a uma estrutura de segurança que nos unisse a todos.
Mas é verdade que a Rússia não facilitou isso, pois, em vez de abraçar a democracia, se afastou cada vez mais para formas autoritárias.
Talvez a expansão da OTAN devesse ter sido feita de forma mais gradual, com mais cautela ou com outro tipo de compensações.
Em 8 de dezembro, Donald Trump reiterou que estava disposto a permanecer na OTAN apenas enquanto os europeus "pagarem suas contas". O que aconteceria se, como ameaçou Trump, os Estados Unidos se retirassem da OTAN?
Os Estados Unidos não podem sair da OTAN, pois, embora Trump tenha ameaçado fazer isso, seria necessário o apoio de dois terços do Senado, o que ele não tem.
O que ele pode fazer, no entanto, é esvaziar a aliança de conteúdo, ou seja, reduzir os fundos, diminuir o número de tropas ou até renunciar à aplicação automática do artigo 5º de defesa coletiva.
Se isso acontecer, a Europa ficará sem dinheiro, sem armas e sem proteção nuclear, estando sozinha diante da Rússia e sem capacidade militar, pois não tem uma defesa comum.
As balas feitas pelos belgas não se encaixam nos fuzis produzidos pelos checos. Os tanques fabricados pelos franceses não são compatíveis com os feitos pelos alemães. Não temos uma indústria unificada.
Porém, de acordo com o Instituto Internacional de Estocolmo para Pesquisa da Paz, o gasto militar da Europa superou o da China.
Os Estados Unidos gastam mais de US$ 900 bilhões em defesa, a China, US$ 296 bilhões, e a Rússia, US$ 109 bilhões.
Já os 27 países da União Europeia gastam juntos US$ 321 bilhões, efetivamente mais do que a China. Mas não de forma unificada. Cada um por conta própria.
A Europa precisa se unir e, se não o fizer, perderá sua influência no mundo. E, com essa perda de influência, também se perderá seu elevado nível de vida.
E no plano econômico, o que pode acontecer na Europa com a chegada de Trump?
Alguns aumentos de tarifas, entre 10% e 20%, prejudicarão a economia europeia, mas há mais.
Trump não acredita no aquecimento global. Consequentemente, é provável que ele diminua a redução das emissões de gases de efeito estufa.
Se isso ocorrer, os europeus estaremos em desvantagem para competir economicamente com as empresas americanas, porque teremos que pagar muito mais pela nossa contribuição na carbonização da atmosfera do que os americanos.
Isso nos colocará em desvantagem na hora de competir nos mercados internacionais.
E isso interessa a Trump?
Sim. Trump também não acredita na Europa. Ele acredita em países europeus como Alemanha, França, Itália ou Espanha, mas não enxerga a União Europeia como um todo.
Sempre se disse que os Estados Unidos não queriam uma Europa forte, e isso é verdade. No entanto, também não é do interesse deles uma Europa excessivamente fraca, como está agora.
Eu o ouvi dizer que a Europa cometeu três erros ao colocar sua segurança nas mãos dos EUA, a energia nas mãos da Rússia e o comércio nas mãos da China. Há alguma forma de reverter essas realidades?
O relatório de Draghi foi muito claro sobre isso. A Europa precisa investir 800 bilhões de euros por ano e criar uma estrutura industrial para salvar sua economia.
Além disso, pela primeira vez, há um comissário responsável por assuntos de defesa, que tentará harmonizar e promover economias de escala na indústria militar europeia.
Estão sendo feitas algumas ações, mas é necessário acelerar o processo. Acredito que este é o momento de dar um grande passo, e talvez a chegada de Donald Trump seja o estímulo de que a Europa precisa para, finalmente, tomar as decisões que sabe que tem que tomar.
Mais união, mais integração, mais Europa. Quanto menos Europa houver, menos influência mundial teremos e mais rapidamente nossa decadência se acelerará. A única forma de evitá-la é nos integrarmos.