20 dezembro 2025

Minha opinião

Muita coisa mudou
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65   

A certa altura da vida, basta uma notícia fortuita para reacender lembranças de tempos idos, marcas na memória cotejadas ao longo da estrada. Leio agora que as vendas do comércio eletrônico brasileiro alcançaram o montante de R$ 24,12 bilhões em 2012, mais 29% do que o ano anterior, de acordo com a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm).

O brasileiro compra cada vez mais pela internet: roupas, acessórios, cosméticos e eletrodomésticos, sobretudo.

Lembro que num delicioso livro de viagem – Gato Preto em Campo de Neve – escrito por Érico Veríssimo em 1941, quando de uma excursão pelos EUA, li sobre a existência de coisas que sequer conseguia imaginar. Meu horizonte pouco ultrapassava os limites da Lagoa Seca, bairro de Natal, onde nasci e vivi até o meio da adolescência. (Mais tarde, já no Recife, outro livro, este do jornalista Mauro Almeida, também referente à vida nos EUA – Estados Unidos da América, civilização empacotada -, voltaria a me impressionar). Tudo me parecia moderno demais, inatingível ao nosso Brasil à época alvo de comentários depreciativos que ouvia na mercearia de meu pai. – Isso nunca vai chegar aqui, diziam frequentadores mais assíduos, mais dados à conversa do que à compra.

Pois hoje “tudo aquilo” chegou cá em nossas terras. Revistas especializadas, ditas temáticas, tem pra qualquer gosto e interesse: jardinagem, criação de felinos e cães, pesca e muito etc. a perder de vista. As chamadas lojas de departamento de antigamente, agora moderníssimos complexos plantados como âncoras nos chamados shopping centers.

Daí não mais se estranhar que nove milhões de brasileiros tenham feito sua primeira compra online em 2012. A previsão é que, em 2013, se amplie consideravelmente o consumo de bens digitais, como e-books, músicas e filmes “on demand”. Isso na proporção direta da expansão das vendas de tablets e smartphones.

- Muita coisa mudou, meu filho – dizia minha mãe diante da constatação de novas modernidades, que a surpreendiam sempre.

Tem gente que se queixa disso. Que preferiria os modos de compra antigos, na bodega da esquina e na feira livre; ou, no máximo, pelo reembolso postal. E que encontra sempre um veio por onde criticar as múltiplas facilidades advindas da tecnologia da informação.

Cá com meus modestos botões, prefiro saudar com entusiasmo tudo o que facilite os procedimentos corriqueiros, quase automáticos, que a vida em grandes cidades nos impõe – inclusive o indefectível ato de comprar. E, se possível, pegar carona nessa onda, e com isso livrar mais tempo para velhos costumes – como de ler livros e ouvir uma boa música e dar atenção à pessoas queridas. Se temos que correr muito nesse mundo de competição, de obstáculos à livre locomoção e de perda de tempo útil, pois que o façamos com a ajuda das modernas tecnologias e nos locupletemos todos das horas que ganhamos de sobra.

Crônica publicada  no Blog da revista Algomais e no Jornal da Besta Fubana em janeiro de 2013

Leia: "Beto de Shangai" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/05/minha-opiniao_11.html 

Rubem Braga, cronista

Rubem Braga, o humanista que fez da crônica literatura
Trinta e cinco anos após sua morte, Rubem Braga segue vivo na delicadeza com que ensinou o Brasil a olhar o cotidiano, elevando a crônica à condição de gênero maior
Cezar Xavier/Vermelho  

Rubem Braga nunca precisou levantar a voz para ser ouvido. Preferia a conversa mansa, quase um sussurro, como quem chama o leitor para sentar à sombra de uma árvore e observar o tempo passar. Há 35 anos, quando escolheu morrer do mesmo modo como escolheu viver — sem espetáculos, sem pressa e sem concessões —, deixou ao país não apenas mais de 15 mil crônicas, mas uma maneira de existir na literatura.

Morreu sozinho, em seu apartamento em Ipanema, depois de se despedir de amigos e de aceitar a morte como quem aceita o vento que muda de direção. Em seus últimos textos, escreveu sobre a insignificância do eu diante do mundo — não como desespero, mas como libertação. Era seu humanismo mais radical: retirar o ego do centro para devolver protagonismo à vida.

A grandeza do pequeno

Antes de Braga, a crônica era vista como um gênero menor, um intervalo entre notícias mais “importantes”. Depois dele, tornou-se morada definitiva da literatura brasileira. Não por acaso, críticos e escritores costumam dividir o gênero em “antes e depois de Rubem Braga”.

Sua revolução não veio pelo excesso, mas pela economia. Frases curtas, vocabulário límpido, temas aparentemente banais: um passarinho, uma amendoeira, o Natal solitário, o mar visto da janela. Mas ali, no que parecia pequeno, morava o essencial. Braga ensinou que o cotidiano é o grande palco da condição humana — basta saber olhar.

Humanismo sem discurso

O humanismo de Rubem Braga não se manifesta em tratados, slogans ou discursos morais. Ele surge na empatia silenciosa com figuras anônimas, na ternura pelos que passam despercebidos, na atenção quase reverente à natureza. Seus textos não explicam o mundo; acolhem-no.

Há quem diga que não há mais espaço na imprensa para isso. Em tempos de soluços entre lulismo e bolsonarismo, trumpismo e genocídio, haters do twitter e viralização no tiktok, parece desinteressar o debruçar sobre passarinhos, a praia, a borboleta, o pão quentinho de cada manhã, o sublime. Mas é bom lembrar que Braga escreveu entre o levante armado contra Getúlio em 1932, chegando a ser preso; foi correspondente de guerra da FEB na Itália, além de atravessar a censura da ditadura militar e a hiperinflação da redemocratização. Mesmo assim, a poesia sempre esteve lá.

“Sou um homem sozinho, numa noite quieta”, escreveu, e nessa solidão não havia isolamento, mas escuta. Braga escrevia como quem presta homenagem ao outro — fosse gente, fosse bicho, fosse paisagem. Em tempos de opiniões estridentes, sua literatura permanece como um convite à delicadeza.

O cronista que escolheu ser cronista

Formado em Direito, diplomata por circunstância, correspondente de guerra por dever, Rubem Braga só quis ser, de fato, cronista. Não ambicionou o romance total, nem o grande ensaio. Fez da crônica o gênero de sua vida e, ao fazê-lo, deu a ela estatura literária definitiva.

Influenciou poetas, prosadores, jornalistas. Bebeu do Modernismo, mas foi além: trouxe oralidade, lirismo e humanidade para as páginas dos jornais. Transformou o espaço efêmero da imprensa em território duradouro da literatura.

O sabiá continua cantando

Trinta e cinco anos depois de sua partida, Rubem Braga segue atual — talvez ainda mais necessário. Num mundo apressado, polarizado e barulhento, sua obra resiste como um gesto de calma. Lê-lo é reaprender a olhar, a sentir e a silenciar.

Se a crônica brasileira mudou depois dele, como tantos afirmam, é porque Braga provou que a literatura não precisa ser grandiosa para ser grande. Basta ser humana. E nisso, poucos foram tão altos quanto ele. Em 12 de janeiro próximo, o escritor capixaba completaria 113 anos, se não tivesse parado definitivamente de escrever em 19 de dezembro de 1990.

Para entender um estilo tão influente na literatura, fica aqui uma de suas crônicas mais marcantes, O padeiro, de 1956:

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento — mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
— Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?

“Então você não é ninguém?”

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não, senhora, é o padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém…

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina — e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; “não é ninguém, é o padeiro!”
E assobiava pelas escadas.

Rio, maio, 1956.

— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Global, 2019

[Se comentar, identifique-se]

"Meu ideal seria escrever...", crônica de Rubem Braga https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/uma-cronica-de-rubem-braga.html

Presença de Maiakovski

“...é indispensável/que sobre todos os tetos, cada noite,/uma única estrela, pelo menos, se alumie.”

Vladimir Maiakovski  

Leia um poema de José Martí https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/palavra-de-poeta_5.html 

19 dezembro 2025

Palavra de poeta

Lembrança alada
Mia Couto  

Em alguma vida fui ave.

Guardo memória

de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés

o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.

Liga-me à terra

uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes

com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.

Guardo a pluma

que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.

Em alguma ave fui vida.

[Ilustração: Gilvan Samico]

Leia também: "O baile", poema de Cida Pedrosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/palavra-de-poeta_18.html 

Brasil: janela histórica

A armadilha da austeridade permanente
Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS*/A Terra é Redonda   

Fui recentemente desafiado a pensar sobre os desafios estruturais que um programa desenvolvimentista enfrenta no Brasil contemporâneo.[i] Minha contribuição aqui busca articular duas dimensões desse desafio: primeiro, as restrições domésticas impostas pelo arcabouço fiscal à execução de uma política econômica desenvolvimentista; segundo, as oportunidades abertas pela reconfiguração geopolítica global, particularmente a rivalidade sino-americana, que criam condições históricas para uma estratégia de autonomia tecnológica e reindustrialização.

Meu argumento central é que essas duas dimensões estão intrinsecamente conectadas: sem reformar as amarras fiscais que inviabilizam investimentos públicos estratégicos, o Brasil permanecerá incapaz de aproveitar a janela geopolítica que se abre.

A armadilha da austeridade permanente

O chamado “arcabouço fiscal” ou “regime fiscal sustentável” representa a continuidade, sob nova roupagem, da lógica da austeridade que domina a política econômica brasileira pelo menos desde 2015. Embora apresentado como mais flexível que o teto de gastos de Michel Temer, o novo regime mantém o essencial: a subordinação da política fiscal a metas de resultado primário e a limitação do crescimento das despesas primárias a um teto móvel vinculado à 70% do crescimento da receita, com crescimento real máximo de 2,5% ao ano.

As consequências dessa arquitetura institucional são evidentes. Primeiro, ela perpetua a compressão dos investimentos públicos, que caíram de 3,5% do PIB em 2010 para menos de 1% atualmente. Segundo, ela impõe uma contenção permanente dos gastos sociais justamente quando o país deveria expandir sua rede de proteção e seus serviços públicos. Terceiro, e crucialmente para o argumento que desenvolvo aqui, ela inviabiliza a capitalização de empresas estatais e os investimentos em infraestrutura necessários para viabilizar um projeto desenvolvimentista.

O problema não é meramente técnico ou contábil. Trata-se de uma escolha política que prioriza a rentabilidade dos títulos públicos e a tranquilidade dos mercados financeiros em detrimento da capacidade do Estado de induzir o desenvolvimento econômico.

Como demonstrei em análises anteriores, essa escolha reflete um condomínio hegemônico entre o capital estrangeiro e o grande capital financeiro doméstico que se consolidou após o golpe de 2016 e que resiste a qualquer projeto que ameace suas estratégias de acumulação que integra a economia brasileira de modo dependente no capitalismo mundial.

A recuperação do gasto público, seja na infraestrutura social seja na econômica, ao contrário, é fundamental para ativar um modelo de crescimento econômico que combine apoio popular e investimentos públicos e privados orientados para atendimento das necessidades da população brasileira.

Reforma fiscal estratégica – exclusões necessárias

Diante desse impasse, o ideal seria propormos a superação do arcabouço. Se não tivermos força política para tanto, pelo menos devemos obter duas exclusões fundamentais do cálculo dos gastos limitados pelo arcabouço fiscal.

Primeira: exclusão dos gastos em educação e saúde. A racionalidade dessa proposta é evidente. Educação e saúde são investimentos de longo prazo na capacidade produtiva da nação, não gastos de consumo. Tratá-los como despesas ordinárias que devem ser contidas é condenar o país ao subdesenvolvimento permanente.

Mais ainda, em um momento histórico em que a competição econômica global se desloca crescentemente para setores intensivos em conhecimento – inteligência artificial, biotecnologia, transição energética, entre outros –, comprimir investimentos em educação, ciência e tecnologia é renunciar antecipadamente a qualquer possibilidade de inserção soberana na economia mundial.

Segunda: exclusão dos gastos com capitalização de empresas estatais e investimentos em infraestrutura realizados pela administração direta e unidades federadas. Esta exclusão é ainda mais crucial para o argumento que desenvolvo aqui. Sem capacidade de capitalizar empresas como Petrobras, Eletrobras (onde o Estado ainda mantém participação minoritária), BNDES e outros bancos públicos, o Estado brasileiro fica desarmado para implementar políticas industriais substantivas.

Contudo, tal capitalização, incluída no teto do arcabouço fiscal, é financeiramente inviável. Contudo, sem poder investir em infraestrutura logística, energética e digital fora do teto de gastos, o país permanece prisioneiro de gargalos estruturais que inviabilizam qualquer estratégia de desenvolvimento.

Um pequeno sinal disso é que, em 05/12, a LDO de 2026 aprovada pelo Congresso Nacional retirou algo como R$ 10 bilhões do teto do arcabouço para auxiliar na recuperação financeira dos Correios, viabilizando a continuidade de um serviço essencial para integrar a nação.

Meritória em si, a exclusão deste gasto do teto do arcabouço e da meta fiscal levanta uma pergunta óbvia: por que só atender a necessidades urgentes de investimento público – como os Correios ou a reconstrução de infraestruturas destruídas por desastres climáticos – ao invés de viabilizar a expansão planejada do investimento público orientado para restaurar o desenvolvimento econômico e social?

Essas exclusões não representam irresponsabilidade fiscal, mas sim uma compreensão mais sofisticada do que significa “sustentabilidade” em política econômica. Sustentável não é aquilo que agrada aos mercados financeiros no curto prazo, mas sim aquilo que constrói capacidades produtivas de longo prazo. Países desenvolvidos jamais impuseram a si mesmos as amarras que o Brasil se autoinflige.

A janela geopolítica sino-americana[ii]

Enquanto o Brasil se paralisa em debates sobre décimos de ponto percentual no resultado primário, o mundo passa por uma reconfiguração geopolítica de magnitude histórica. A ascensão da China como potência tecnológica e industrial, e a resposta estadunidense na forma de contenção e “desacoplamento”, criam oportunidades sem precedentes para países de desenvolvimento intermediário que souberem aproveitar as contradições dessa nova guerra fria.

Os dados são eloquentes. A participação da China no comércio exterior brasileiro saltou de meros 2% no ano 2000 para 31,3% em 2023, tornando-se nosso principal parceiro comercial. Simultaneamente, a participação dos Estados Unidos caiu de 23,9% para 10,3% no mesmo período. Essa reorientação comercial não é mero acidente estatístico, mas expressão de uma transformação estrutural na economia mundial.

Mais significativo ainda: essa transformação não se limita ao comércio. Empresas chinesas tornaram-se protagonistas em setores estratégicos da infraestrutura brasileira. Na geração de energia elétrica, empresas chinesas controlam 13% da capacidade instalada do país. Na transmissão, controlam 18% das linhas. Em telecomunicações, a Huawei consolidou-se como fornecedora fundamental, apesar das pressões estadunidenses para sua exclusão das redes 5G.

O segundo governo de Donald Trump, com sua ênfase em unilateralismo e protecionismo, tende a aprofundar essa tendência. Enquanto Washington impõe tarifas, restrições tecnológicas e exige subordinação geopolítica de seus parceiros, Beijing oferece financiamento, transferência tecnológica e parcerias sem condicionalidades políticas explícitas.

Esta é a janela histórica que se abre: aproveitar a competição sino-americana para negociar transferências tecnológicas substantivas e construir capacidades produtivas autônomas. Mas – e aqui retorno ao primeiro argumento – essa janela só pode ser aproveitada se o Estado brasileiro tiver capacidade fiscal e institucional para ser um parceiro relevante, não um mero receptor passivo de investimentos.

Parcerias estratégicas: transição energética, Inteligência artificial e semicondutores

Proponho três eixos concretos de parcerias estratégicas com capital estatal chinês, todos dependentes da reforma fiscal que defendo.

Primeiro eixo: transição energética e transferência tecnológica. O Brasil possui vantagens comparativas evidentes em energia renovável – hidroelétrica, eólica, solar, biomassa. Mas nossa inserção nesse setor tem sido predominantemente como fornecedor de matérias-primas e receptor de tecnologias já maduras.

A proposta é estabelecer joint ventures entre empresas estatais brasileiras (Petrobras, eventualmente uma nova empresa focada apenas em energias sustentáveis) e grupos estatais chineses líderes em tecnologias de transição energética – painéis solares de alta eficiência, turbinas eólicas offshore, baterias de armazenamento, hidrogênio verde.

O objetivo não é apenas atrair investimentos, mas estabelecer contratos de joint venture que incluam cláusulas explícitas de transferência tecnológica e produção local de componentes de alta intensidade tecnológica. A China possui tanto o interesse estratégico (diversificar cadeias produtivas diante de pressões ocidentais) quanto a capacidade tecnológica para viabilizar esse tipo de parceria. Mas isso exige contrapartida brasileira: capacidade de co-investimento via capitalização de estatais, algo impossível sob o atual arcabouço fiscal.

Segundo eixo: inteligência artificial e economia digital. A corrida pela supremacia em Inteligência artificial é o front central da competição tecnológica global. O Brasil não tem capacidade de competir diretamente com Estados Unidos ou China nesse campo, mas pode buscar uma inserção qualificada.

Proponho parcerias para desenvolvimento de aplicações de Inteligência artificial voltadas para especificidades brasileiras – agricultura de precisão tropical, gestão de biomas complexos como Amazônia e Cerrado, sistemas de saúde pública em escala continental, educação adaptativa para país de dimensões continentais e desigualdades regionais extremas.

Empresas chinesas de Inteligência artificial enfrentam crescente fechamento de mercados ocidentais. O Brasil pode oferecer não apenas um mercado de 215 milhões de habitantes, mas também dados e problemas únicos que enriqueceriam o desenvolvimento dessas tecnologias. Em contrapartida, exigimos transferência tecnológica, formação de quadros brasileiros e desenvolvimento de capacidades computacionais nacionais – data centers soberanos, processamento em território nacional, segurança de dados.

Terceiro eixo: semicondutores e autonomia tecnológica. A dependência brasileira de semicondutores importados é quase absoluta, tornado o país vulnerável tanto a choques de oferta (como vimos na pandemia) quanto a pressões geopolíticas. A China investiu centenas de bilhões de dólares na última década para reduzir sua própria dependência de chips ocidentais, especialmente diante das restrições impostas pelos EUA.

Proponho negociar com grupos chineses do setor a instalação no Brasil de plantas de fabricação de semicondutores de gerações anteriores (não necessariamente os chips mais avançados de 3 ou 5 nanômetros, mas chips de 28nm ou superiores que atendem 90% das aplicações industriais, automotivas e de infraestrutura).

Em troca, oferecemos mercado garantido via compras públicas, incentivos fiscais e, crucialmente, uma localização geográfica que oferece alguma proteção contra pressões geopolíticas estadunidenses.

Esses três eixos, por sua vez, devem estar conectados a projetos coordenados pelo Estado de expansão da infra-estrutura econômica e social orientada para um modelo de crescimento que combine redução de desigualdades, sustentabilidade ecológica e atendimento de necessidades reconhecidas da população brasileira.

Síntese – reforma fiscal como pré-condição geopolítica

Retorno ao argumento central: essas parcerias estratégicas não são viáveis sem a reforma fiscal que proponho. Joint ventures substantivas exigem que o parceiro brasileiro entre com capital, não apenas com território e mão-de-obra barata. Transferência tecnológica genuína só ocorre quando o receptor demonstra capacidade de absorção, o que exige investimentos massivos em educação, pesquisa e desenvolvimento institucional. Autonomia tecnológica não se conquista com passividade fiscal.

O momento é agora. A janela geopolítica aberta pela rivalidade sino-americana não permanecerá aberta indefinidamente. Se o Brasil não aproveitar a atual conjuntura para negociar parcerias substantivas, voltaremos à condição de receptores passivos de investimentos em setores de baixo valor agregado.

As eleições de 2026 devem ser disputadas em torno dessa escolha civilizatória: continuar prisioneiros de uma austeridade que nos condena ao subdesenvolvimento permanente, ou realizar as reformas institucionais – começando pela fiscal – que viabilizam uma estratégia soberana de inserção na economia mundial do século XXI.

A pergunta que coloco para debate não é se podemos fazer isso, mas se teremos a coragem política de fazê-lo.

*Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor titular Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A era Vargas: Desenvolvimentismo, economia e sociedade (Editora da Unicamp). [https://amzn.to/3RxhzIe]

Notas


[i] O texto foi preparado para responder ao desafio posto pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo-FESPSP, na figura de Angelo Del Vecchio e Ubiratan de Paula Santos, que organizaram reunião ampla em 06/12/2025 para voltarmos a debater, como em 2017, a urgência de um novo projeto de Nação.

[ii] Este item baseia-se no paper Donald Trump’s Unilateralism, Brazilian Nationalism, and the China-BRICS Nexus, apresentado na Fudan-Latin America Universities Consortium – FLAUC 7th Annual Meeting (PUCp, Lima, Peru, dec. 04-05th).

[Qual a sua opinião?]

Leia também: Terras raras: por que evitar aproximação com os EUA https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/reservas-estrategicas.html

Humor de resistência

 

Enio

Leia: A influência que fica https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/12/minha-opiniao.html 

Editorial do 'Vermelho'

Sob controle da direita, Senado reduz penas de criminosos golpistas
Lula anunciou que vetará o execrável projeto, que incentiva novas aventuras golpistas
Editorial do 'Vermelho' www.vermelho.org.br   

 

A aprovação pelo Senado do chamado Projeto de Lei da Dosimetria, que reduz a pena de condenados pelos atos do 8 de janeiro e dos que lideraram a tentativa de golpe de Estado, com o ex-presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro à frente, é um retrocesso que afronta a democracia. Foram 48 votos a favor da aprovação e 25 contra. A exemplo do que aconteceu na Câmara, o consórcio da direita e da extrema-direita, se valendo da maioria, impôs esse escárnio à consciência democrática da nação e conspurcou o julgamento histórico do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em entrevista coletiva nesta quinta-feira, 18, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que vetará o projeto. “As pessoas que cometeram um crime contra a democracia brasileira terão que pagar”, afirmou.

Na lógica do rolo compressor, a direita fez uso de uma manobra casuística. Diante da alteração de mérito do projeto, regimentalmente deveria ter retornado à Câmara para nova deliberação. Mas, para evitar isso, reduziram mudança de conteúdo a uma mera “emenda de redação”, o que motivará judicialização do caso.

A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), vice-presidente do PCdoB, disse que a aprovação do projeto no Senado fez parte da “pior pauta possível”, de “perdão, de alívio de redução de pena para quem atentou contra a democracia”. “Por mais que o texto tenha alteração no Senado, o que vai ficar, naquele texto, é exatamente a redução de pena, como se atentar contra a democracia fosse um crime menor”, avaliou. “É um acinte às ruas de domingo (as manifestações populares contra o projeto do dia 14), um acinte à luta democrática brasileira, um acinte às famílias que lutaram contra a ditadura e esses militares, um acinte à toda a luta que se construiu e a resposta que o Estado deu pela primeira vez na história.”

Como afirmou o relator da trama golpista no STF, ministro Alexandre de Moraes, não é possível atenuante “em penas aplicadas depois do devido processo legal, aplicadas depois da ampla possibilidade de defesa, porque isso seria um recado à sociedade de que o Brasil tolera ou tolerará novos flertes contra a democracia.”

A dimensão da gravidade do projeto, portanto, é gigantesca. Ele ameniza significativamente um crime de enormes consequências, um atentado à nação, à soberania popular e à salvaguarda de direitos fundamentais. Com resultados que a história conhece bem, em especial no Brasil, quando processos semelhantes triunfaram, sobretudo a ditatura militar imposta em 1964.

E com o agravante de que os golpistas interagiram com o intervencionismo de potência estrangeira, submetendo-se ao ditame do governo estadunidense de Donald Trump com seu tarifaço e outras medidas para ameaçar a soberania brasileira, proferindo chantagens explícitas ao Poder Judiciário do país, num contexto de intervencionismo imperialista na região, cujo extremo é a escalada de atos de guerra contra à Venezuela. Logo após, a votação da “dosimetria” na Câmara, a embaixada dos Estados Unidos no Brasil louvou o benefício aos golpistas. Jornalistas que fazem cobertura do Congresso, declararam que houve articulação direta da mesma embaixada com senadores.

Na votação no Senado Federal, na fase da Comissão de Constituição e Justiça, houve uma orientação de procedimento da liderança do governo aos senadores da base que provocou um contencioso público entre os parlamentares da base e com a própria coordenação política do Palácio do Planalto. A questão encerra controvérsia, mas o que fica é que não pode, como houve, se cometer erro numa matéria de magna importância como essa.

O certo é que o consórcio da direita e da extrema-direita, responsável pela aprovação do projeto na Câmara e no Senado, praticou uma agressão ao povo, ao país e aos que pagaram preço elevado para a conquista da democracia e de todos os benefícios sociais dela decorrente. Essa constatação remete à obrigatoriedade de um amplo e unitário movimento de resistência ao avanço do projeto nos seus trâmites finais e de denúncias sistemáticas sobre a ameaça que a impunidade aos criminosos golpistas representa.

Ou seja: o veto do presidente Lula precisa ser amplamente respaldo pelas forças democráticas, organizadas em movimentos sociais, partidos políticos e entidades representativas da sociedade. Respaldo que deve se estender ao STF, caso a demanda chegue à sua alçada. O Brasil democrático precisa se erguer com vigor nesse momento, deixando bem demarcado que criminosos golpistas e manobras para absolvê-los não terão êxito.

[Qual a sua opinião?]

O lugar do PCdoB na cena política https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/partido-renovado-e-influente.html 

Postei nas redes

Pastor evangélico influente na extrema direita protesta em público contra a pré-candidatura do senador Flávio Bolsonaro, do PL. Vale o ditado: "casa onde falta o pão, todos brigam e ninguém tem razão". Que assim seja — para o bem do Brasil. 

*

Tudo a ver: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/12/minha-opiniao_7.html

Boas notícias

Lula faz balanço positivo da gestão e projeta 2026 como o ano da colheita
Presidente avalia que a extema direita “não voltará a governar esse país”
Davi Molinari/Vermelho
 

Em conversa de fim de ano com jornalistas no Planalto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que encerra 2025 “mais feliz do que imaginava”, atribuindo o cenário aos resultados econômicos e à recomposição do papel do Estado após o ciclo bolsonarista. Ele destacou que o país voltou a crescer acima de 3% apenas em seus governos, afirmou que o Brasil tem hoje a “menor inflação acumulada em quatro anos”, a “maior massa salarial” e o “menor nível de desemprego e de pobreza da história”, além de ter saído novamente do Mapa da Fome.​

Lula associou os indicadores à estratégia de distribuir renda e estimular o consumo popular, defendendo que “muito dinheiro na mão de poucos significa miséria”, enquanto “pouco dinheiro na mão de muitos” faz a economia girar. O presidente reiterou que não governa “falando mal do governo anterior”, mas para “reconstruir” um país que, segundo ele, foi “semidestruído em todas as áreas”.​

Congresso, 8 de janeiro e STF

Questionado sobre o projeto de lei que reduz penas de condenados pelos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023, Lula foi taxativo ao anunciar que vetará a proposta se ela chegar à sua mesa. Segundo ele, não faz sentido discutir dosimetria antes de concluir os julgamentos e identificar financiadores dos atos: “Quem cometeu crime contra a democracia terá que pagar pelos atos cometidos”, afirmou. O presidente fez um aceno ao Congresso, mas lembrou que o jogo institucional prevê que deputados e senadores podem derrubar o eventual veto presidencial.

Sobre a indicação de Jorge Messias ao Supremo Tribunal Federal, Lula reafirmou o apoio ao advogado-geral da União, disse que manterá o nome e negou crise pessoal com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, a quem elogiou pela interlocução com o governo nas votações econômicas.​

Economia, juros e estatais

Lula voltou a defender o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e exaltou o desempenho da equipe econômica, afirmando que o governo aprovou “99% de tudo que mandou de interesse econômico” ao Congresso, incluindo a reforma tributária. Ele reforçou a tese de que o presidente da República precisa “montar um time”, não ser especialista em economia, e disse que o país sai de 2025 com “outra governança tributária”, menos concentrada sobre trabalhadores e classe média.​

Sobre o Banco Central, Lula reafirmou “100% de confiança” em Gabriel Galípolo, criticou a autonomia formal da instituição e disse sentir “cheiro” de que a taxa de juros começará a cair em breve, embora tenha evitado qualquer pressão pública: “Jamais farei pressão para que o Galípolo tome a atitude que tiver que tomar”. Em relação às estatais, lamentou o rombo dos Correios, prometeu “colocar a mão na ferida” com mudanças de gestão e descartou privatizações enquanto estiver na Presidência, admitindo apenas parcerias e eventual capitalização com economia mista.​

Relações exteriores, EUA, Venezuela e COP30

No front internacional, Lula celebrou o “retorno do Brasil ao cenário mundial” e disse que o país hoje é respeitado em fóruns como União Africana, União Europeia, Celac e encontros asiáticos. Ele classificou como “extraordinário sucesso” a COP30 em Belém, defendendo a escolha da capital paraense contra críticas que sugeriam Rio ou São Paulo, e exaltou a aprovação de um fundo permanente para florestas tropicais, iniciado com 3 bilhões de euros da Noruega, a ser gerido pelo Banco Mundial.​

Lula relatou conversas com Donald Trump e Nicolás Maduro sobre a crise na Venezuela, posicionando o Brasil como mediador e defensor de uma saída diplomática para evitar uma guerra na América do Sul. Ao comentar as tarifas impostas por Trump a produtos brasileiros, disse reconhecer o direito soberano de taxar importações, mas contestou as justificativas usadas e afirmou trabalhar por um acordo, sem descartar reciprocidade se não houver solução.​

Trabalho, 6×1 e disputa de 2026

O presidente voltou a defender o fim da escala 6×1 e a redução da jornada de trabalho, argumentando que ganhos de produtividade e avanço tecnológico tornam inevitável o debate. Ex-dirigente sindical, Lula declarou que “o país está pronto” para essa mudança e disse esperar ser “provocado” por sindicatos e pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social para enviar um projeto ao Congresso.​

Sobre as eleições de 2026, Lula demonstrou confiança na reeleição, afirmou que a extrema direita “não voltará a governar o país” e disse estar “tranquilo” para debater economia, inclusão social, clima e transição energética com qualquer adversário. Ele indicou que ao menos 18 ministros devem deixar o governo para disputar cargos, afirmou que Haddad tem “biografia e maioridade” para escolher seu caminho e sinalizou a necessidade de candidaturas fortes ao governo e ao Senado em São Paulo, sem antecipar nomes nem fechar a chapa com Geraldo Alckmin.​

Comunicações, programas sociais e compromisso com mulheres

Lula reconheceu que o governo ainda comunica mal suas entregas, afirmando que muitos ministros desconheciam políticas apresentadas no balanço de fim de ano e desafiando a imprensa a comparar o volume de ações com qualquer outro governo desde a proclamação da República. Entre as iniciativas citadas, destacou a expansão do Mais Médicos, que saltou de 12,7 mil para 28 mil profissionais, o envio de 800 vans odontológicas com prótese em 3D e a compra de 150 caminhões com exames de alta complexidade para atacar filas do SUS.​

Ao encerrar o encontro, o presidente manifestou solidariedade às herdeiras de Silvio Santos após ataques do cantor Zezé di Camargo, que classificou como “cretinice” dirigida a mulheres. Ele prometeu dedicar parte de seu mandato ao enfrentamento ao feminicídio e à violência contra a mulher no Brasil, pedindo que o tema seja tratado com centralidade na agenda pública.

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Palavra de Lula: “Isenção do IR ataca privilégios de uma pequena elite financeira” https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/12/lula-na-tv-imposto-de-renda-zero.html 

Fotografia

Sebastião Salgado

Enio Lins opina

O Congresso e seus posicionamentos contra os golpes
Enio Lins  

RENAN CALHEIROS, da tribuna do Senado, quando da votação do PL da Dosimetria, foi contundente e certeiro, criticando a articulação governista em benefício da aprovação da medida que alivia – inconstitucionalmente, segundo analistas como Reinaldo Azevedo – as penas aplicadas aos comandantes do golpe tentado (e derrotado) em 8 de janeiro de 2023. Seguem trechos desse discurso histórico do senador alagoano.

UM ALERTA SOBRE ERROS do Parlamento foi o início do pronunciamento: “O Golpe de 1964, idealizado fora, foi chancelado neste plenário, infelizmente. A voz sepulcral de Auro de Moura Andrade proclamou do alto desta Casa a vacância presidencial, uma mentira histórica. O Presidente João Goulart estava em território nacional articulando uma reação aos traidores da Nação. Apenas 178, dos 460 parlamentares, ouviram, presencialmente, que a nação estava acéfala. A heresia golpista sangrou milhões de brasileiros e atormentou gerações até o início da redemocratização, com Tancredo Neves e José Sarney e a Nova República em 1985”.

E DÁ SEU TESTEMUNHO sobre reparação: “Em uma das quatro vezes que tive a honra de presidir esta casa, anulamos aquela sessão da madrugada de 2 abril de 1964. Repor a verdade é uma imposição histórica. Anular aquela farsa representou a exumação da própria história. Recusamos uma falsidade e nos reencontramos com a verdade. A versão, calcada na mentira, é efêmera e inconsistente, já a verdade é eterna e sólida, com ensinou Francis Bacon: ‘A verdade é filha do tempo, não da autoridade’. A história da história não tem ponto final, especialmente se ela foi forjada na falsidade e, nesse caso, ela sempre será reescrita. O passado não se muda, o futuro sim”.

SITUA A INTENTONA DE 2023: “(...) eles tentaram de novo no 8 de janeiro, o dia da infâmia. Milhares de anônimos, massa de manobra, estão condenados. Agora, os cabeças começam a pagar pela tentativa de ruptura. Além de diálogos repulsivos, há uma fartura de provas, vídeos, áudios, mensagens, documentos, minuta de golpe, planos de fuga, dinheiro financiando a trama para perpetrar o golpe, assassinar pessoas, anular uma eleição legítima e tomar o poder à força. Métodos e milicianos que estão sendo condenados pelo Judiciário. Os atos para o golpe – preparatórios e executórios - são indesmentíveis. Ele não prosperou porque Exército e Aeronáutica desembarcaram”.

SEGUE ADIANTE:
 “O que pacifica o País é golpista cumprir pena. Não as cadeias de rádio e TV para insuflar a nação contra as instituições, mas as cadeias do sistema prisional. O divórcio da sociedade é tão surreal que testemunhamos os criminosos querendo ditar a lei. Os apenados querem escolher as próprias penas. Onde os criminosos ditam as leis, não há justiça e os todos os atos institucionais da ditadura foram pedagógicos. Um presidiário, que reconheceu o planejamento do golpe, deputados foragidos tentaram coagir o presidente desta Casa, intimidando o poder como fizeram com o Supremo. Desde quando golpistas têm legitimidade para mediar acordos de anistia ou dosimetrias? Seria o acordo da guilhotina com a cabeça. Se for, a nossa estará à prêmio”.

FINALIZA RENAN:
 “Somos o começo de um sonho democrático permanente, não os remanescentes de um pesadelo golpista. Vamos olhar nosso passado escuro para iluminar o futuro. Atenuar penas é emitir a duplicata do golpe, para não mencionar os incorrigíveis vícios e absurdos da proposta vinda da Câmara. Para reduzir penas não precisa de lei nova. Ela já existe e se chama Lei de Execução Penal. Pelo artigo 126, a cada 12 horas de estudo e 3 dias de trabalho, um dia a menos de pena. Pode parecer uma nova punição para quem nunca trabalhou ou estudou. Que dediquem seus dias lendo sobre a democracia”.

[Qual a sua opinião?]

Leia: A mentira como essência de uma estratégia https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/12/enio-lins-opina.html

Palavra de poeta

Mutatis Mutandis
Bartyra Soares   

Tomo a forma do mar.
Se é preciso que em minhas águas
navegue o vento e em mim
o sol refaça caminhos
de impulsos e chamas verdes
não me furto ao compromisso que hoje
me impõe esta manhã.

Minhas águas de sal e segredo
ferem-se na aspereza dos corais
e por não ser lâmina e por não
ser espinho não tenho
como revidar. Deixo que minha dor
em mim desabe. Recolho meu grito
de incertezas e convicções.

E quando a última gaivota
da tarde no poente pousar
a sombra do seu cansaço
só então serei quem fui.
Assim sobre penhascos
e dunas não mais depositarei
lembranças e sargaços.

[Ilustração: Socorro Lyra]

Leia também um poema de Jorge Luis Borges https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/palavra-de-poeta_13.html 

Minha opinião

Carro, pra que te quero?
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65   

Todos nós conhecemos aquele tipo que concentra todos os seus desejos no carro do ano, mesmo sem o poder aquisitivo para tanto, que trata a sua fubica com mais carinho do que à mulher amada. A comparação não é feliz, mas é a crua realidade. Tanto que jingles nas rádios e comerciais na TV reforçam essa atitude, digamos, rebaixada do ser humano envolto na areia movediça da sociedade de consumo.

Isso acontece aqui e em toda parte. Nos EUA, por exemplo, foi divulgada uma pesquisa patrocinada pela da Rede de Saúde do Homem e pela Abott, que revela que a maioria dos homens considera mais fácil cuidar do carro do que da própria saúde. Nada menos do que 70% dos 501 homens entre 45-65 anos entrevistados pensam assim.

Aí a gente fica sem saber se o problema é de descaso com a própria saúde ou de amor excessivo ao objeto de consumo. Na dúvida, crave nas duas alternativas.

A segunda é até compreensível no caso dos homens norte-americanos, onde tudo se consome sem o crivo da necessidade básica, às custas do resto do mundo. Pelo menos a população incluída no mercado, tirante os mais de 30 milhões de excluídos (segundo se divulga).

Mas não cuidar da saúde é coisa de gente pouco esclarecida, não é mesmo? Aliás, não é a primeira vez que me dou conta de que a tal “população culta e educada” que frequenta o imaginário de nós outros periféricos nem sempre corresponde à realidade.

Quando vice-prefeito do Recife, ainda na gestão do prefeito João Paulo e do nosso secretário de Saneamento, Antonio Miranda, participei de uma conversa com técnicos alemães que nos apresentaram tecnologias avançadas na revitalização de recursos hídricos. A certa altura, um deles, após explicar como haviam revitalizado o rio Reno, arrematou: “Mas foi necessário um imenso esforço de educação ambiental junto à população!”

Epa! Então a população alemã não havia até então assimilado a necessidade de preservar o ambiente?

De outra feita, em Paris, fotografei (e guardo em meu arquivo pessoal) a Praça Pigalle, nas proximidades do Moulin Rouge, absolutamente infestada de lixo – isso a umas 4 da tarde! Sinal de que para os franceses nem sempre cabe o rótulo de população “esclarecida”.

Por isso esse caso dos americanos que cuidam mais dos seus carros do que de si mesmo já não me surpreende tanto. Nem aos próprios – ou seja, às autoridades da área da saúde. Daí deflagrarem uma campanha com o objetivo de aumentar o conhecimento sobre as questões relacionadas à saúde do homem, incentivando exames periódicos para checar regulamente testículos, próstata, colesterol, testosterona e pressão arterial.

Bem que o slogan da campanha podia ser “O caminho da oficina passa pelo consultório médico”.

[Se comentar, identifique-se]

Crônica publicada no Blog da revista Algomais em abril de 2013

Leia também o poema "Não-coisa", de Ferreira Gullar https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/palavra-de-poeta_76.html

Arte é vida

 

Glauber Shimabukuro

Arte é vida

 

Miguel Ángel Blinchón Bujes

Leia: “Segunda-feira”, poema de Primo Levi https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/palavra-de-poeta_48.html 

Postei nas redes

Em tempos de intolerância política, lembremo-nos de Dom Helder Câmara: “Se tu diferes de mim, tu me enriqueces”. 

Leia: O mundo cabe numa Organização de Base https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/05/minha-opiniao_18.html 

18 dezembro 2025

Renildo Souza opina

O segundo choque global da China
Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
Renildo Souza/A Terra é Redonda 

Este final de 2025 ganhou animação na mídia econômica global a ideia de que a China hoje só vende e não precisa comprar mais nada, supostamente manufaturados.[1] Afora os tons aparentemente fantásticos, exasperados ou alarmistas do noticiário, vale indagar sobre as características e as implicações dessa inflexão no comércio externo da China. Nos últimos anos, os crescentes superávits comerciais chineses estão sendo caracterizados como o segundo choque chinês.

Desde o primeiro governo de Donald Trump, os Estados Unidos têm feito uma verdadeira campanha denunciando a overcapacity chinesa (sobrecapacidade produtiva, excesso de oferta). Do lado chinês, em resposta às barreiras tarifárias dos países centrais, os capitais realocaram suas plantas para México, Vietnã, Tailândia etc. Por triangulação, os bens da China continuam penetrando nos mercados mais ricos.

Vamos recapitular alguns pontos. A primeira década do século XXI conheceu a novidade do impacto avassalador da ascensão chinesa sobre o comércio internacional. A China inundava o mundo com bens manufaturados, ainda sem alto valor agregado, enquanto vorazmente adquiria alimentos, energia e outros produtos relacionados aos recursos naturais. A periferia capitalista animou-se com a forte melhoria dos termos de troca.

Os países centrais amealhavam os lucros das suas corporações na China. O Norte Global, contudo, começava a se assustar com a concorrência em bens manufaturados e os déficits comerciais crescentes, e reclamava do yuan desvalorizado.

De 28 bilhões de dólares em 2001, ano em que a China aderiu à OMC, o superávit atingiu o auge em 2008 com cerca de 349 bilhões. Em poucas palavras, essa é a história do primeiro choque chinês. Desde a pandemia da Covid, começou o segundo choque chinês.

O mercado mundial tem sido muito importante para a China. Segundo o Banco Mundial, a corrente de comércio como proporção do PIB da China era 38% em 2001, atingiu assombrosos 64% em 2006 e declinou constantemente para chegar a 34% em 2020. Desde 2021 parece retomar a expansão alcançando 37% em 2024.[2]

Os superávits da China no início do século XXI constituíram o estoque trilionário de reservas do país.  Mas, desde a crise global de 2008, os saldos comerciais não retomaram uma escalada, relativamente. Os níveis das exportações e importações chinesas se aproximaram.

A partir de 2021, porém, as exportações líquidas da China avançaram constantemente. As exportações de bens descolaram-se para cima da tendência percorrida até a pandemia. Desde então, as importações declinaram e estagnaram em um patamar inferior.

Além dessa divergência entre os movimentos de vendas e compras externas, cabe chamar a atenção para a queda das parcelas de bens e insumos manufaturados nas importações chinesas. Agora, parece que basta comprar alimentos e matérias-primas, porque a manufatura doméstica, supõe-se, já cobre todas as necessidades. O gráfico abaixo esclarece cabalmente o segundo choque global da China.[3] 


Notas: Os dados são mensais. As tendências são calculadas usando uma regressão logarítmica linear das importações e exportações ao longo do tempo. A observação mais recente é para agosto de 2025.

Como explicar a nova explosão exportadora chinesa? Voltemos à crise de 2008 que impactou momentaneamente as exportações da China. O governo reagiu com um gigantesco pacote de estímulos e protegeu a economia. Entretanto, a partir daí, ampliou-se a discussão, dentro e fora do país, sobre o assim chamado desequilíbrio do modelo chinês. Analistas ocidentais faziam carga contra o nível exagerado do investimento em relação ao PIB, o baixo consumo das famílias, a dependência das exportações.

Endividamento

Na década de 2010, o crescimento se desacelerou. Era o novo normal, expansão com qualidade, justificavam os porta-vozes de Pequim. A cada ano, entretanto, o governo continuou a despejar estímulos monetários e fiscais, ajudando a sustentar a economia. Os críticos denunciavam a artificialidade de uma certa economia de endividamento.

O governo, habitualmente, força a oferta de abundantes créditos dos bancos públicos, as empresas elevam os investimentos, inclusive improdutivos. Aumentam os casos de capacidade instalada ociosa. Nesse contexto, as obras de infraestrutura, transportes e urbanização criaram uma bolha, que começou a deflacionar em 2021.

Os governos locais promoveram a corrida de novos negócios. Da economia vem a legitimidade do regime. Cada grande centro municipal ou provincial, promovia o surgimento de inúmeras empresas, sobretudo nos setores de tecnologia digital, energias renováveis e carros elétricos, ao lado de incentivos para acelerada automação da manufatura. Dessa trajetória, a China teria, agora, colhido overcapacity, capacidade produtiva excessiva, superprodução e nova dependência dos mercados externos. 

Os países centrais cobram que parte dos bens exportáveis seja redirecionada para o mercado doméstico da China, com mais consumo das famílias chinesas. No final do mês passado, novembro de 2025, o governo chinês anunciou um pacote de incentivos ao consumo.[4] O economista Michael Pettis, perplexo, “tuitou”, dizendo que esse plano, equivocadamente, é para aumentar a oferta de bens de consumo, quando o problema é de escassez de demanda.[5] Michael Pettis, indignado, protesta contra os irrisórios 53% de consumo como proporção do PIB em 2025.

Michael Pettis insiste na necessidade de amplos programas de redistribuição de renda. A China é um dos países com mais desigualdade renda e riqueza. Desde 2010, os salários começaram a aumentar na China, mas ainda estão muito longe dos padrões dos países avançados. Além disso, há agora uma massiva precarização do mercado de trabalho, que foi assaltado pelo trabalho por plataformas digitais, a exemplo do serviço de entregadores.[6] Há uma certa melhoria na provisão de serviços sociais, mas certa mercantilização implica em vazamento da renda das famílias.

Tecnologia

Na China, estruturalmente, combinaram-se três fatores: (i) a imensa acumulação de capitais firmas estatais e privadas por muito tempo; (ii) a graduação tecnológica na mais larga arena competitiva dos mercados internacionais; e (iii) a centralidade das políticas industriais agressivas e abrangentes e os apoios ao sistema nacional de inovação desde antes da crise de 2008.

Os três fatores acima, combinados, constituíram a plataforma para lançamento de duas políticas estruturantes na década de 2010: a nova rota da seda (Belt and Road Initiative) e o Made in China 2025.

A nova rota da seda, com infraestruturas físicas e digitais, criou e consolidou mais mercados para as firmas e para os excedentes de bens da China. O Made in China preparou as empresas chinesas para a disputa da liderança mundial nos setores da fronteira tecnológica. O novo salto exportador, com competitividade insuperável em produtos de alto valor agregado, tem a ver, em parte, com os efeitos muito amplos dessas políticas, pois.

Em resposta à alegação de overcapacity, argumenta-se, do lado chinês, que a nova onda exportadora se deve aos avanços tecnológicos, ganhos de produtividade e, por conseguinte, legítimas vantagens competitivas. Além de fábrica do mundo, a China estaria se encaminhando para ser, ao mesmo tempo, o laboratório mundial de tecnologias avançadas. A China já estaria ganhando a corrida da inovação.[7]

Entretanto, as condições domésticas da China apresentam outros ingredientes para o enredo do segundo choque global. O processo deflacionário, que se arrasta há muitos anos, a selvagem guerra de preços e a compressão dos lucros denunciam a superprodução. Lá na China, esse estado de coisas está sendo chamado de involucionismo. É essa a fonte das pressões por vendas externas em busca de margens maiores de lucro.

Na verdade, o galope exportador expressa tanto a concorrência por inovação (diferenciação, qualidade, competitividade), quanto a velha competição por preço. É ilustrativo, nesse sentido, o debate no recente Fórum do Automóvel em Xangai. O representante da BYD defendeu a guerra de preços dentro da China e disse que esse involucionismo é correto. O representante da Geely atacou a guerra de preços, como algo nefasto, citando até Deng Xiaoping (desencarnado há mais 30 décadas).

Para concluir, vale questionar as implicações dessa nova escalada exportadora. Deixemos de lado o hipócrita lamento do Norte Global. Então, das características novas desse segundo choque chinês, há de se perguntar quais as implicações para o Sul Global.

Se a China monopoliza a manufatura de alto valor agregado (além de autossuficiência produtiva geral) e as tecnologias na fronteira do conhecimento, em benefício da sua acumulação de capitais, onde fica a periferia capitalista na nova hierarquia de poder e riqueza? A desindustrialização nos países do capitalismo dependente parece ganhar agora novos componentes.

Nessas circunstâncias, parece ser hora de sair do embasbacado deslumbramento com as maravilhas chinesas. Pense, extasiado, por exemplo, nas ferrovias de alta velocidade, e sim é uma realização grandiosa, com o foram a máquina a vapor, o carro, o avião…. Cabe compreender a China tal qual ela é: um exuberante sucesso econômico do capitalismo nacional-desenvolvimentista, beneficiado, paradoxalmente, pela globalização neoliberal. No passado, imagina-se que muitos também se embeveceram com as belezas dos parques de Londres ou os arranhas céus de Nova Iorque. Voltando à realidade: a China ameaça empurrar a maioria dos países periféricos de volta aos padrões coloniais de comércio do século XIX.

*Renildo Souza é professor de economia e de relações internacionais na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor, entre outros livros, de A China de Mao e Xi Jinping (Editora da UFBA). [https://amzn.to/3BcOCN2]

Notas


[1] HARDING, Robin. China is making trade impossible. Financial Times, 25 nov. 2025. https://www.ft.com/content/f294be55-98c4-48f0-abce-9041ed236a44

[2] https://data.worldbank.org/indicator/NE.TRD.GNFS.ZS?locations=CN

[3] AL-HASCHIMI, Alexander; DVOŘÁKOVÁ, Natálie; LE ROUX, Julien; SPITAL, Tajda. China’s growing trade surplus: why exports are surging as imports stall. https://www.ecb.europa.eu/press/economic-bulletin/focus/2025/html/ecb.ebbox202507_01~83b0e7edd4.en.html

[4] Economic Watch: China eyes improved supply-demand alignment to unlock consumption potential-Xinhua.

[5] Michael Pettis no X: “1/8 Xinhua: “China aims to “achieve a notable increase in household consumption as a share of GDP,” and to increase the role of domestic demand as the principal engine of economic growth over the next five years, according to the new MIIT plan“. https://t.co/ATq9kCKoDG” / X

[6] NOGUEIRA, Isabela; COLOMBIN, Iderley. Do semiproletariado à nova classe trabalhadora na China. Economia e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 3 (82), 2024. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/issue/view/2140.

[7] WHITE, Edward. Is China winning the innovation race. Financial Times, 27 nov. 2025. https://www.ft.com/content/3eccd40e-5ec0-43e8-a521-3b87e29e323b

[Qual a sua opinião?]

China: quando planejar é governar https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/china-politica-no-posto-de-comando.html