13 junho 2021

Dura realidade

Força na peruca

Cícero Belmar

 

No trajeto de minha casa até o mercado gasto uns dez minutos e vejo, no primeiro sinal de trânsito, um homem que vai de carro em carro, pedindo uma ajuda. Na calçada ao lado do semáforo, está sua família, debaixo da marquise. A mulher e duas crianças pequenas. Ela estende a mão para mim, me dê um trocadinho, pelo amor de Deus.

Dali, prossigo. Na esquina, onde preciso dobrar, uma outra mulher, negra, dorme na calçada. Enrolada em cobertor sujo e velho, está alheia às buzinas dos carros. Se eu continuasse para além do mercado, certamente iria encontrar mais pedintes, e sem teto, nas ruas. E é justamente o que eu digo a Carlos Lima, por telefone, quando chego, mais tarde, de volta para casa: “A coisa está feia”.

Fotógrafo dos bons e meu amigo, Carlos aproveita para me contar histórias semelhantes. Ele me relata que precisou resolver umas pendências, no centro do Recife, e comenta que viu “muita gente em situação de rua, como nunca mais tinha visto na cidade”.

No momento em que mais de 400 mil pessoas morreram por conta da covid-19, no País, também a fome chega a outras milhares de famílias. Incontáveis brasileiros estão na miséria. Muita gente ficou sem emprego, quem era pobre ficou ainda mais.

Digo a palavra incontáveis porque o Governo federal cortou verbas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A Justiça mandou liberar o dinheiro, mesmo assim a instituição continua de mãos atadas para fazer o censo demográfico.

Na conversa com Carlos, pergunto se ele, quando esteve no centro da cidade, pensou em registrar as cenas que viu. Jornalista tem defeito de fábrica, vê a vida como possibilidade de notícia. Ele responde que sim, mas que não havia levado a máquina fotográfica.

O aumento do número de pessoas vivendo nas ruas reforça nosso sentimento de angústia, de ansiedade, de incerteza, que a pandemia nos provoca. Estamos todos doentes emocionalmente.

Comparo a pandemia da covid-19 com aquelas bonecas russas talhadas em madeira, as matrioska, que têm umas dentro das outras. A pandemia abriga epidemias diversas que vêm à tona enquanto os números de contaminados e mortos se avolumam. Dentro da pandemia está a fome; e mais no interior ainda, a ansiedade. A depressão. Uma doença dentro da outra.

Convenhamos, está puxado. Só nos resta confiar em Deus, na Ciência, e em nós mesmos. Nessa pandemia, particularmente, tenho descoberto a força do que é subjetivo. Sentimentos como a esperança, a fé, o humor, ajudam a enfrentar o presente. Que, diga-se de passagem, quando virar passado, será igualmente subjetivo.

Fé é espada, gume cortante, que faz acreditar sem provas. A saída é respirar fundo, calma e humildemente, para continuar na batalha. A esperança, por sua vez, é um apoio que a gente coloca na frente  para dar mais um passo nesse campo minado.

Já o humor, embora ele não impeça a seriedade nem os nossos deveres para com as outras pessoas, é o que ainda nos faz ver o horizonte, nos faz rir. Garante um pouco de leveza, apesar dos pesares. Afinal, a tensão pela tensão só complica, não ajuda. O humor, sim. Continuar vivo é desafio e arte. Então, força na peruca!

*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 

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Veja: Ampliar a frente democrática para evitar o pior https://youtu.be/VKvI9Ht196U

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