30 junho 2021

Palavra de poeta: Mia Couto

Gaiola

Mia Couto
 
A pluma pensa,
a ave pesa.
 
Mais leve é o céu
que não sabe voar.
 
Hoje, porém,
contra plumas e céus,
a gaiola se ergueu
e voou sobre a cidade,
grave e sem gravidade,
rumo às citadinas nuvens.
 
A gaiola
vingava a saudade
que a asa sentia do pássaro.
 
E cruzou
o agnóstico céu,
disputando lugares de anjos.
 
E era um milagre de coisa
profanando o firmamento.
 
Mas, afinal,
fui eu
e não a gaiola
quem do chão se soltou.
 
Flutuei
por entre nuvens
como se outra terra pisasse.
Nas alturas,
porém,
a asa, sem pluma,
de vertigem sofreu.
 
Entendi, então,
o meu voo corrigir.
 
Mas foi fatal o intento.
 
Porque o voar de ave
é como alma sem rasura:
sempre sem erro,
sempre segura da precisa altura.
 
Na aresta do chão
me despenhei,
tombando em cascata de sombra.
 
Inteiro sobre mim,
com peso de lápide,
um céu confirmava:
todos de si sabem
o lugar e a idade.
 
Desconhecemos apenas
onde somos eternidade.
 
[Ilustração: Gil Vicente]
 
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