A
vida surgiu nos cristais
Hipótese de que
a primeira forma de vida foi um mineral levanta a questão: qual a fronteira
entre vivo e não vivo?
Fabrício Caxito*
Desde
o início de sua história, a Terra já dispunha de todos os ingredientes para
gerar vida. Os elementos envolvidos na formação de moléculas orgânicas, como
carbono, oxigênio, hidrogênio, nitrogênio, enxofre e fósforo, além de vários
outros micronutrientes, já eram abundantes nas rochas, nos oceanos e na
atmosfera desde que eles se formaram, há cerca de 4,5 bilhões de anos. A
energia necessária para "cozinhar" todos esses elementos no caldeirão
da Terra primitiva também era abundante, e provinha de diversas fontes: do
calor interno do manto terrestre e daquele expelido em fumarolas oceânicas, do
decaimento de elementos radioativos, da grande quantidade de impactos de
meteoros, e até mesmo de raios.
Em
1953, os cientistas Stanley L. Miller e Harold C. Urey, da Universidade de Chicago,
conduziram uma experiência que ficou famosa. Se todos estes ingredientes fossem
postos num frasco fechado e "cozidos" por descargas elétricas que
simulam raios, diversas moléculas orgânicas, como os aminoácidos, se formariam
espontaneamente. O experimento foi repetido inúmeras vezes desde então, e
parece confirmar que moléculas orgânicas podem ter sido um componente
corriqueiro da Terra primitiva.
Moléculas
orgânicas isoladas, porém, estão longe do que podemos chamar de vida. Existem
várias definições para este conceito, mas as mais aceitas envolvem algumas
propriedades principais: o que é vivo deve ser capaz de se reproduzir, carregar
informação genética de geração em geração, e utilizar energia para realizar
algum tipo de metabolismo.
A
presença de moléculas orgânicas, a base do que chamamos vida, é condição
necessária, mas está longe de ser suficiente. E isso porque, entre outros
problemas, a "sopa" em que as moléculas orgânicas foram criadas foi
provavelmente muito diluída, considerando o gigantesco volume do oceano
primordial terrestre. Outro é que não basta produzir aminoácidos, lipídios,
açúcares e outros componentes orgânicos: é preciso combinar as moléculas
corretas.
A
natureza é, de fato, prodigiosa na produção de moléculas orgânicas: um
meteorito, por exemplo, pode apresentar mais de setenta tipos de aminoácidos. A
vida, porém, é extremamente seletiva: ela usa uns vinte tipos. E é ainda mais
exigente: cadeias de composição química idêntica podem apresentar organização
de suas moléculas à esquerda ou à direita da cadeia principal, e essa diferença
de simetria faz com que as chamadas cadeias de "mão esquerda" se
comportem de forma distinta das cadeias de "mão direita" e
vice-versa. Por algum motivo, a vida utiliza quase exclusivamente cadeias de
mão esquerda.
É
necessário, então, algum mecanismo que possa selecionar e concentrar as
moléculas de composição e geometria correta, para que uma estrutura
autorreplicante e capaz de passar informação de geração em geração possa ser
construída, isto é, para que a receita da vida dê certo. Por sorte, a variedade
enorme de minerais que compõe a crosta da Terra desde seus primórdios é capaz
de fazer exatamente isto, agregando e concentrando moléculas orgânicas em sua
superfície. Mais ainda, algumas faces cristalinas de minerais comuns, como o
quartzo e a calcita, mostram uma aptidão para selecionar apenas moléculas de
determinada geometria, isto é, elas são capazes de selecionar as moléculas de
mão esquerda e as de mão direita. Além disto, alguns minerais podem servir como
catalisadores de reações químicas, talvez de reações importantes para a
formação de moléculas orgânicas, sua reprodução e metabolismo. Poderiam, então,
as superfícies cristalinas dos minerais ter funcionado como o primeiro
substrato no qual as moléculas orgânicas se organizaram em algo que pode ser
chamado vida?
Experimentos
neste sentido revelaram que a ideia é plausível. Estruturas de minerais como
grafita e molibdenita, por exemplo, se demonstraram capazes de atrair e
organizar espécies orgânicas cruciais, como a adenina e a guanina, duas das
bases dos ácidos nucleicos, RNA e DNA, em interessantes estruturas
bidimensionais. Outros cientistas chegaram a sugerir que não só as bases da
vida surgiram nas superfícies dos minerais, mas que a primeira forma de
"vida" foi exatamente uma espécie de argilomineral. Essa hipótese,
defendida pelo químico Graham Cairns-Smith, da Universidade de Glasgow, volta à
questão do que chamamos vida propriamente dita, e se existe algum estágio
intermediário entre o vivo e o não vivo. Para Cairns-Smith, algumas espécies de
argila carregam uma forma de informação genética em sua estrutura e composição
química, com as argilas mais "aptas à sobrevivência" sendo escolhidas
em um processo seletivo parecido com o visualizado por Darwin.
Seja
como catalisadores de reações bioquímicas, uma tela onde a história da vida
pôde ser pintada por meio do agrupamento e seleção das moléculas ideais para
sua receita, ou até mesmo como os primeiros seres que de alguma forma poderiam
ser interpretados como algo além do não vivo, a relação entre os minerais que
compõem a Terra e a vida que se desenvolveu em sua superfície é mais uma prova
de como estamos todos interligados em um grande sistema.
[Ilustração: Valentina Fraiz]
Fabrício
Caxito é professor de geologia, pesquisador principal no projeto GeoLife MOBILE e filósofo pela
UFMG.
O fato e a ideia https://bit.ly/3n47CDe
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