Braço de quem?
Manuel Domingos Neto, no Facebook
A Força Terrestre se apresenta como “braço forte, mão amiga”.
Braço e mão de quem? Não seriam da sociedade brasileira. Não faz sentido
o braço e a mão dos brasileiros anunciarem amizade aos brasileiros?
O slogan é falacioso. O Exército é do Estado, não do povo. Tenta,
inclusive, conduzir o Estado, imiscuindo-se em suas entranhas e negócios.
Ao povo, cumpre pagar os custos, entregar seus filhos às fileiras e se
proteger como puder.
Estado e sociedade sempre foram entes com dificuldade de conciliação.
Estado é domínio que se exerce sobre a sociedade, explicou Maquiavel, dando origem
ao pensamento político moderno. Tem vontade própria, não traduz o desejo
coletivo.
Quando o princípio dinástico perdeu legitimidade, entrou em voga a ideia
de que o poder deve emanar do povo. A legitimação do Estado passou a ser
conferida por uma comunidade abstrata, a nação.
Militares brasileiros apresentaram nos últimos dias um “projeto de
nação”. Não se deram conta da ilegalidade perpetrada. Listaram proposições
sinistras, sem um pingo de amor ao povo. Curvaram-se diante de ricos e
poderosos. Ignoraram princípios constitucionais.
Não me aterei, aqui, ao festival de horrores exposto. Trata-se de
proposta saudosa do tenebroso tempo colonial. Registro que não encontrei
novidades. A maioria dos pontos arrolados está em curso. Alguns, inclusive, com
apoio da esquerda desavisada, como a que pretende, através de “escolas
cívico-militares”, converter crianças em janízaros.
Prendo-me a uma questão de base: como os militares arrumam autoridade
para ditar os rumos da sociedade? Fazem isso impunemente desde que mandaram
Pedro II morrer em outras plagas.
A petulância, com certeza, não deriva apenas da posse das armas. A
violência precisa ser revestida de justificativas “nobres”.
A permissividade dos militares tem lastro no aparelho de Estado e na
fragilidade das reações populares.
O Estado brasileiro nasceu assenhoreado por poucos. É patriarcal e
racista. Mantem a sociedade na taca. Nunca aspirou soberania efetiva, sempre
obedeceu aos senhores do mundo. Criou instrumentos de força que correspondem
aos seus desígnios. As corporações armadas retratam sua índole.
A sociedade, por sua vez, nunca foi mobilizada para alterar o Estado.
Combate pontualmente aspectos de sua dominação perversa.
A última Constituinte enalteceu a cidadania, mas não mudou o Estado.
Deixou intactos aparelhos fundamentais para a submissão da sociedade. Os
instrumentos de força permaneceram com seus papeis tradicionais. No caso das
corporações militares, o dilema existencial de atuar como polícia e como defesa
externa restou intocado.
A Carta atribuiu ao militar a missão de defesa da pátria, ou seja, da
nação. Por estes termos, tanto é possível designar o Estado como a sociedade. A
expressão “Estado nacional” é ainda mais ardilosa: remete a um domínio sobre a
sociedade exercido com seu consentimento.
A nação nunca foi conceituada de forma convincente. Ernest Renan disse
que seria uma “escolha cotidiana”; Otto Bauer disse que seria uma comunidade
unida pela promessa de destino comum para todos. Benedict Anderson disse que
seria uma “comunidade imaginada”...
A nação é misteriosa e encantadora porque remete ao passado longínquo e
ao futuro desconhecido. Tanto canalhas como pessoas honestas falam em nome
desta comunidade pela qual as pessoas matam e morrem.
Depois de Mussolini, Hitler e Franco, o “nacionalismo” virou coisa feia na
Europa, mas em terras colonizadas pelo europeu, persistiu virtuoso. Esquerda e
direita proclamam-se nacionalistas.
Passa da hora de compreendermos que Estado não é nação. Nação é a
sociedade. Braços armados do Estado não exprimem vontade coletiva. Exprimem
desígnios de um Estado que, mantendo o legado colonial, agride a sociedade.
Enquanto prevalecer a confusão conceitual, pedantocratas em uniforme,
como se dizia no tempo em que os enfileirados mandaram o Imperador morrer fora
de casa, tentarão assenhorear-se dos destinos do povo.
Escreverão “projetos de nação” e ditarão “objetivos nacionais”.
Usurparão a soberania popular sem medo de ir para a cadeia.
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Veja: Um mais três
duas vezes no apoio a Lula https://bit.ly/3LcXQYD
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