Quem controla as polícias?
Não foram poucos os sinais de que muitos
integrantes das Forças Armadas e das polícias apoiavam os atos
antidemocráticos. O bolsonarismo era e ainda é muito presente entre policiais,
e a sensação de que ninguém seria punido por manifestar essa predileção era real
Roberto Uchoa/Le Monde Diplomatique
No dia 8 de janeiro, o país assistiu pela televisão e por
redes sociais a milhares de pessoas entrando no interior das sedes dos poderes
da República e destruindo tudo. Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro se
deslocaram até Brasília com o objetivo de contestar o resultado das últimas
eleições e acreditavam contar com o apoio de policiais e militares. Após meses
acampados em frente a quartéis das For&c cedil;as Armadas e sem qualquer
repressão, essas pessoas acreditavam que conseguiriam derrubar a democracia.
Não foram poucos os sinais de
que muitos integrantes das Forças Armadas e das polícias apoiavam os
atos antidemocráticos. Policiais e militares utilizavam intensamente redes
sociais para mostrar seus posicionamentos, e quando acionados para acompanhar
ou fazer o policiamento em manifestações, muitos tiravam fotos com os
presentes. Havia no ar um sentimento de concordância e até mesmo de proteção
por seus superiores. O bolsonarismo era e ainda é muito presente entre
policiais, e a sensação de que ninguém seria punido por manifestar essa
predileção era real.
Essa sensação de liberdade
para se posicionar politicamente e atuar de acordo com seus ideais
político-ideológicos não surgiu do nada. Na verdade, foi uma longa construção,
que passou pelos diversos casos de m otins e greves sem punição de seus
líderes. Nos últimos catorze anos ocorreram 52 paralisações de policiais
militares. Nesse mesmo período foram apresentados 31 projetos de anistia na
Câmara dos Deputados e oito no Senado, tendo sido aprovadas quatro leis de
anistia. A última delas, a Lei n. 13.293 de 2016, anistiou todos os policiais
que participaram de paralisações desde 1997. Ao mesmo tempo, lideranças desses
movimentos passaram a ter cada vez mais destaque político, tendo algumas delas,
inclusive, sido eleitas parlamentares.
O caso mais recente foi a paralisação que ocorreu no Ceará em
2019. Durante treze dias, policiais cruzaram os braços, ocuparam quartéis e
ameaçaram comerciantes para que fechassem seus estabelecimentos. O movimento
levou pânico à população de várias cidades do Ceará e durante esse período
houve 241 mortes. Em um dos momentos mais emblemáticos, o senador Cid Gomes
(PDT) foi atingido por disparos de armas de fogo efetuados do local onde
estavam os policiais amotinados. Para encerrar o movimento dos policiais, o
então governador, Camilo Santana (PT), prometeu reajustar os salários dos polic
iais e elevar o salário inicial dos soldados. Porém, dessa vez não foi aceito o
pedido de anistia para os policiais que aderiram ao movimento, algo que era
comum em negociações desse tipo.
Essa mudança de postura
encampada pelo governador do Ceará foi resultado da reação de autoridades
federais e estaduais. Enquanto governadores se preocupavam com o alastramento
de manifestações desse tipo por outros e stados, o presidente Bolsonaro
minimizava os eventos, chegando a afirmar que era apenas “uma greve”, mesmo
sabendo que greves de policiais são proibidas. Até então, essas paralisações
eram vistas como assuntos exclusivamente da esfera estadual. Dessa vez, vários
governadores se declararam contrários à anistia dos amotinados.
Por trás dessa mudança de
postura estava o medo de que os policiais fossem utilizados por grupos ligados
a Bolsonaro para desestabilizar a arena política estadual. Era necessário
passar um recado aos policiais. Ao mesmo tempo, Bol sonaro defendia a aprovação
de projeto de lei que diminuía ainda mais o controle dos governadores sobre
suas polícias e permitia ao governo federal mobilizá-las.
Porém, o exemplo dado no Ceará
não foi suficiente para mostrar que desvios e ilegalidades não seriam aceitos.
Desde então, não foram poucos os casos em que policiais deixaram de cumprir
suas atribuições por razões ideológicas. Em 7 de setembro de 2021, policiais
militares do Distrito Federal permitiram que manifestantes, em protesto contra
a democracia, atravessassem barreiras de contenção; em novembro, policiais
rodoviários federais foram filmados enquanto afirmavam estar ali para proteger
as pessoas que bloqueavam estradas pelo país, e, em 12 de dezembro, após a
diplomação de Lula, apoiadores de Bolsonaro atacaram a sede da Polícia Federal
e incendiaram veículos pelo Distrito Federal enquanto policiais militares
apenas assistiam a tudo.
As imagens e os vídeos que
mostravam a forma como os policiais se portavam e a ausência de pessoas detidas
chocou a população e deixou evidente que a Polícia Militar do DF estava tão
contaminada pelo bolsonarismo, que sequer cumpria sua missão. Um alerta que, se
tivesse sido levado a sério, poderia ter evitado o que ocorreu no fatídico dia
8 de janeiro, quando policiais militares tiravam fotos e filmavam enquanto
criminosos destruíam os interiores de prédios públicos.
A reação dos poderes Executivo
e Judiciário foi imediata: decretação de intervenção na segurança pública do
Distrito Federal e prisão do ex-secretário de Segurança Púb lica e do
comandante da Polícia Militar. No entanto, será que novamente apenas a ameaça
de punição bastará para evitar novas ocorrências desse tipo? Acredito que não.
É preciso encarar a necessidade de uma reforma nas instituições policiais.
Na Constituição de 1988, houve
reformas na saúde e na educação, porém a segurança pública foi deixada de lado.
As legislações que regem as polícias são, em sua quase totalida de, anteriores
à nova Constituição. As polícias militares, por exemplo, são subordinadas aos
governadores; porém, ao mesmo tempo, são forças auxiliares do Exército e seguem
uma estrutura que privilegia o controle em vez do serviço de segurança pública.
São instituições que trabalham
mais para si mesmas do que para a sociedade, na prestação de um serviço de
segurança pública. É preciso estabelecer princípios de transparência, contro le
de procedimentos, prestação de contas à sociedade e protocolos de uso da força.
Hoje sequer é possível aferir qual é a técnica de abordagem adotada por cada
força, porque quando há um padrão, é considerado sigiloso. Como saber se houve
abuso se não são conhecidos os parâmetros de abordagem? Ainda não há uma
percepção clara de que o serviço de segurança pública deve ser prestado à
população, e não contra grande parte dela.
Além disso, é preciso
modernizar a estrutura das forças policiais e mudar o treinamento. Não basta
inserir uma disciplina de direitos humanos no curso preparatório e, ao mesmo
tempo, treinar os policiais para “uma gue rra”. Não funciona. De que adianta
ensinar ao policial que ele deve respeitar os direitos das pessoas, quando
dentro de sua instituição ele sofre diversos tipos de assédio. Não são poucos
os casos em que policiais militares chegam a atuar como serviçais particulares
de oficiais superiores. A mistura do público com o privado é quase uma regra
não escrita.
Disputas por autonomia cada
vez maior escondem, na verdade, a vontade de tornar oficial aquilo que já
existe. Quando policiais se sentem na liberdade de usar bens públicos para
atividades privadas e de ameaçar governos e populaç&a tilde;o para
conseguirem seus objetivos, é sinal de que essa autonomia já existe no pior sentido.
Não uma autonomia para prestar o melhor serviço possível, mas uma para fazer o
que quiser. Foi essa liberdade que permitiu o crescimento contínuo do
envolvimento de policiais, oficiais e delegados com empresas de segurança
privada e até mesmo no crescimento do poder das milícias no Rio de Janeiro, um
modelo que se expande para outros estados.
Polícias sem controle adequado
e voltadas para si mesmas possibilitam que situações como as vividas
recentemente aconteçam. Essa ideia de que as polícias podem fazer o que querem
e no final não serem responsabilizada s é fruto da falta de reformas e de mais
controle. Nos últimos anos, o discurso sempre foi o de que bastaria adquirir
mais viaturas, armas melhores e contratar mais policiais que a segurança
pública melhoraria, e nada foi feito para melhorar o controle e a governança.
Motins, greves e ameaças eram seguidos por acordos de anistia, o que
incentivava cada vez mais atos.
Os casos recentes deixaram
claro que algo deve ser feito e que uma nova legislação precisa ser aprovada
para que exista controle efetivo sobre as instituições. O que não se pode
admitir é que instituiçõ es de Estado sejam utilizadas por seus integrantes
para ameaçar governos ou colocar a população em perigo. Quando as pessoas
acreditam que policiais estão ao seu lado para atacar a República e a
democracia é sinal de que é urgente intervir com reformas antes que esse quadro
piore e, assim, evitar que aconteça aqui algo como o que ocorreu na Bolívia,
onde policiais participaram de golpe contra o governo.
*Roberto Uchoa,
sociólogo e policial federal, é ex-policial civil no Rio de Janeiro, policial
federal, especialista em gest ão de segurança pública e justiça criminal pela
UFF, mestre em sociologia política pela Universidade Estadual do Norte
Fluminense (UENF), pesquisador do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito (NUC/Uenf),
membro do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, conselheiro da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) e autor do livro Armas
para quem? A busca por armas de fogo (Dialética, 2021).
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