03 fevereiro 2023

Influência nefasta

Quem controla as polícias?

Não foram poucos os sinais de que muitos integrantes das Forças Armadas e das polícias apoiavam os atos antidemocráticos. O bolsonarismo era e ainda é muito presente entre policiais, e a sensação de que ninguém seria punido por manifestar essa predileção era real
Roberto Uchoa/Le Monde Diplomatique


No dia 8 de janeiro, o país assistiu pela televisão e por redes sociais a milhares de pessoas entrando no interior das sedes dos poderes da República e destruindo tudo. Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro se deslocaram até Brasília com o objetivo de contestar o resultado das últimas eleições e acreditavam contar com o apoio de policiais e militares. Após meses acampados em frente a quartéis das For&c cedil;as Armadas e sem qualquer repressão, essas pessoas acreditavam que conseguiriam derrubar a democracia.
Não foram poucos os sinais de que muitos integrantes das Forças Armadas e das polícias apoiavam os atos antidemocráticos. Policiais e militares utilizavam intensamente redes sociais para mostrar seus posicionamentos, e quando acionados para acompanhar ou fazer o policiamento em manifestações, muitos tiravam fotos com os presentes. Havia no ar um sentimento de concordância e até mesmo de proteção por seus superiores. O bolsonarismo era e ainda é muito presente entre policiais, e a sensação de que ninguém seria punido por manifestar essa predileção era real.
Essa sensação de liberdade para se posicionar politicamente e atuar de acordo com seus ideais político-ideológicos não surgiu do nada. Na verdade, foi uma longa construção, que passou pelos diversos casos de m otins e greves sem punição de seus líderes. Nos últimos catorze anos ocorreram 52 paralisações de policiais militares. Nesse mesmo período foram apresentados 31 projetos de anistia na Câmara dos Deputados e oito no Senado, tendo sido aprovadas quatro leis de anistia. A última delas, a Lei n. 13.293 de 2016, anistiou todos os policiais que participaram de paralisações desde 1997. Ao mesmo tempo, lideranças desses movimentos passaram a ter cada vez mais destaque político, tendo algumas delas, inclusive, sido eleitas parlamentares.
O caso mais recente foi a paralisação que ocorreu no Ceará em 2019. Durante treze dias, policiais cruzaram os braços, ocuparam quartéis e ameaçaram comerciantes para que fechassem seus estabelecimentos. O movimento levou pânico à população de várias cidades do Ceará e durante esse período houve 241 mortes. Em um dos momentos mais emblemáticos, o senador Cid Gomes (PDT) foi atingido por disparos de armas de fogo efetuados do local onde estavam os policiais amotinados. Para encerrar o movimento dos policiais, o então governador, Camilo Santana (PT), prometeu reajustar os salários dos polic iais e elevar o salário inicial dos soldados. Porém, dessa vez não foi aceito o pedido de anistia para os policiais que aderiram ao movimento, algo que era comum em negociações desse tipo.
Essa mudança de postura encampada pelo governador do Ceará foi resultado da reação de autoridades federais e estaduais. Enquanto governadores se preocupavam com o alastramento de manifestações desse tipo por outros e stados, o presidente Bolsonaro minimizava os eventos, chegando a afirmar que era apenas “uma greve”, mesmo sabendo que greves de policiais são proibidas. Até então, essas paralisações eram vistas como assuntos exclusivamente da esfera estadual. Dessa vez, vários governadores se declararam contrários à anistia dos amotinados.
Por trás dessa mudança de postura estava o medo de que os policiais fossem utilizados por grupos ligados a Bolsonaro para desestabilizar a arena política estadual. Era necessário passar um recado aos policiais. Ao mesmo tempo, Bol sonaro defendia a aprovação de projeto de lei que diminuía ainda mais o controle dos governadores sobre suas polícias e permitia ao governo federal mobilizá-las.
Porém, o exemplo dado no Ceará não foi suficiente para mostrar que desvios e ilegalidades não seriam aceitos. Desde então, não foram poucos os casos em que policiais deixaram de cumprir suas atribuições por razões ideológicas. Em 7 de setembro de 2021, policiais militares do Distrito Federal permitiram que manifestantes, em protesto contra a democracia, atravessassem barreiras de contenção; em novembro, policiais rodoviários federais foram filmados enquanto afirmavam estar ali para proteger as pessoas que bloqueavam estradas pelo país, e, em 12 de dezembro, após a diplomação de Lula, apoiadores de Bolsonaro atacaram a sede da Polícia Federal e incendiaram veículos pelo Distrito Federal enquanto policiais militares apenas assistiam a tudo.
As imagens e os vídeos que mostravam a forma como os policiais se portavam e a ausência de pessoas detidas chocou a população e deixou evidente que a Polícia Militar do DF estava tão contaminada pelo bolsonarismo, que sequer cumpria sua missão. Um alerta que, se tivesse sido levado a sério, poderia ter evitado o que ocorreu no fatídico dia 8 de janeiro, quando policiais militares tiravam fotos e filmavam enquanto criminosos destruíam os interiores de prédios públicos.
A reação dos poderes Executivo e Judiciário foi imediata: decretação de intervenção na segurança pública do Distrito Federal e prisão do ex-secretário de Segurança Púb lica e do comandante da Polícia Militar. No entanto, será que novamente apenas a ameaça de punição bastará para evitar novas ocorrências desse tipo? Acredito que não. É preciso encarar a necessidade de uma reforma nas instituições policiais.
Na Constituição de 1988, houve reformas na saúde e na educação, porém a segurança pública foi deixada de lado. As legislações que regem as polícias são, em sua quase totalida de, anteriores à nova Constituição. As polícias militares, por exemplo, são subordinadas aos governadores; porém, ao mesmo tempo, são forças auxiliares do Exército e seguem uma estrutura que privilegia o controle em vez do serviço de segurança pública.
São instituições que trabalham mais para si mesmas do que para a sociedade, na prestação de um serviço de segurança pública. É preciso estabelecer princípios de transparência, contro le de procedimentos, prestação de contas à sociedade e protocolos de uso da força. Hoje sequer é possível aferir qual é a técnica de abordagem adotada por cada força, porque quando há um padrão, é considerado sigiloso. Como saber se houve abuso se não são conhecidos os parâmetros de abordagem? Ainda não há uma percepção clara de que o serviço de segurança pública deve ser prestado à população, e não contra grande parte dela.
Além disso, é preciso modernizar a estrutura das forças policiais e mudar o treinamento. Não basta inserir uma disciplina de direitos humanos no curso preparatório e, ao mesmo tempo, treinar os policiais para “uma gue rra”. Não funciona. De que adianta ensinar ao policial que ele deve respeitar os direitos das pessoas, quando dentro de sua instituição ele sofre diversos tipos de assédio. Não são poucos os casos em que policiais militares chegam a atuar como serviçais particulares de oficiais superiores. A mistura do público com o privado é quase uma regra não escrita.
Disputas por autonomia cada vez maior escondem, na verdade, a vontade de tornar oficial aquilo que já existe. Quando policiais se sentem na liberdade de usar bens públicos para atividades privadas e de ameaçar governos e populaç&a tilde;o para conseguirem seus objetivos, é sinal de que essa autonomia já existe no pior sentido. Não uma autonomia para prestar o melhor serviço possível, mas uma para fazer o que quiser. Foi essa liberdade que permitiu o crescimento contínuo do envolvimento de policiais, oficiais e delegados com empresas de segurança privada e até mesmo no crescimento do poder das milícias no Rio de Janeiro, um modelo que se expande para outros estados.
Polícias sem controle adequado e voltadas para si mesmas possibilitam que situações como as vividas recentemente aconteçam. Essa ideia de que as polícias podem fazer o que querem e no final não serem responsabilizada s é fruto da falta de reformas e de mais controle. Nos últimos anos, o discurso sempre foi o de que bastaria adquirir mais viaturas, armas melhores e contratar mais policiais que a segurança pública melhoraria, e nada foi feito para melhorar o controle e a governança. Motins, greves e ameaças eram seguidos por acordos de anistia, o que incentivava cada vez mais atos.
Os casos recentes deixaram claro que algo deve ser feito e que uma nova legislação precisa ser aprovada para que exista controle efetivo sobre as instituições. O que não se pode admitir é que instituiçõ es de Estado sejam utilizadas por seus integrantes para ameaçar governos ou colocar a população em perigo. Quando as pessoas acreditam que policiais estão ao seu lado para atacar a República e a democracia é sinal de que é urgente intervir com reformas antes que esse quadro piore e, assim, evitar que aconteça aqui algo como o que ocorreu na Bolívia, onde policiais participaram de golpe contra o governo.
 
*Roberto Uchoa, sociólogo e policial federal, é ex-policial civil no Rio de Janeiro, policial federal, especialista em gest ão de segurança pública e justiça criminal pela UFF, mestre em sociologia política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), pesquisador do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito (NUC/Uenf), membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, conselheiro da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) e autor do livro Armas para quem? A busca por armas de fogo (Dialética, 2021).

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