Restos de carnavalClarice Lispector
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me
transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas
mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com
um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia
que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se
aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se
abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do
Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas
enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era
meu, meu.
No entanto, na
realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil,
nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas
da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os
outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as
com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete.
Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração
escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal
modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha
medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais
profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À
porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava
no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de
duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu
susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no
meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para
carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles
meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de
possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três
dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça — eu mal
podia esperar pela saída de uma infância vulnerável — e pintava minha boca de
batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia
bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu
não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir
pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da
fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel
crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma
flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se
criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava
seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu,
por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha
amiga — talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou
talvez por pura bondade, já que sobrara papel — resolveu fazer para mim também
uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois,
pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não
eu mesma.
Até os preparativos já
me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente,
minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação,
pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo
vestidas — à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores
femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha
— mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só
existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que
sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente
aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo
no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado
pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim!
Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti
de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já
perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um
destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom
todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge — minha
mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e
mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de
rosa — mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão
exposta vida infantil — fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre
serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a
atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa
tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que
encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma
rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era
uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de
sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do
estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que
veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me
salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse
menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura,
brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante
ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8
anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu
era, sim, uma rosa.
Mas há sempre uma quarta-feira de cinzas https://bit.ly/3Ye45TD
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