Diante do Carnaval
Carlos Drummond de
Andrade
Ora pois, chegou o momento de
cessar o trabalho e entoar o cântico e desmanchar o corpo em sacolejos
convulsos. Teus amigos se dividiram em duas hostes: a que se retraiu para
montes e praias, e a que, vestindo os disfarces mais leves, saiu por aí saracoteando
e gritando. Entre as duas formas de viver o carnaval, ficaste sozinho e
desarmado: no centro do acontecimento, sem participar dele.
Velhos carnavais afloram a tua
memória. Por tê-los brincando, conquistaste o direito de eximir-te aos novos.
Foste moço e ainda não és velho. Recusas-te a aderir; recusas-te a fugir.
Elegeste para estes quatro dias o pijama, o livro, o jardinzinho, o cigarro, a
música, o sono, a paz. E todas essas riquezas, vais desfrutá-las a dois passos
do clube de onde desce e se espraia um rumor rouco de água rolando, coral
frenético onde se misturam imagens e interesses da vida cotidiana, penas de
amor, invocações a uma alegria que é apenas prazer, a um prazer que busca
subjugar o tempo e dissolver o importuno senso de realidade, mais duro e
agressivo que a realidade mesma. Tua situação é quase a de um sábio recolhido
ao hospício, ou a do puma no jardim zoológico, entre siriemas e quatis. Essas
coisas não te dizem respeito, e passas ileso entre elas. Mas evita o orgulho;
se há uma razão pessoal para não ceder ao calendário, sobram mil outras para
obedecer-lhe. Tua razão individual é uma vitória sobre os ritos, que ainda não
amadureceu para outros, e talvez jamais amadureça. Repara nos velhos foliões
que se esbaldam junto a brotinhos. Se são autênticos, não podes condená-los,
embora também não os invejes. A criança, e não o sátiro, continua neles a
desenvolver um jogo pueril, e, mortos, amanhã sorrirá na lembrança desses
velhos um pouco do que dançaram.
O carnaval não mudou senão nas
formas aparentes, e não tens direito de suspirar que naquele tempo, sim, era
melhor, e hoje tudo é porcaria, da decoração aos sambas. O carnaval cresce e se
agita dentro de cada um, seja ou não patrocinado pela prefeitura, e dinamiza músculos
e cordas vocais, restituindo ao homem um pouco de animalidade comprometida
menos pela civilização que pelo seu uso mecânico. O poeta imaginou compor um
carnaval, como o de Schumann, “todo subjetivo”. São todos subjetivos, quando
vividos intensa e profundamente na zona sensível de cada um, que transforma e
valoriza a circunstância exterior. Não te rebaixes a falar mal do carnaval que
já não te procura.
Estás só. É bom estar só, quando
companhias sutis nos embalam, como sejam o livro muito folheado, o navio de
Segall na parede, um gato austero. Outros estão sós, como tu, mas presos a uma
inibição ou a uma disciplina. Para os doentes no hospital, o dia é mais longo,
para as enfermeiras é mais árido. Motorneiros e condutores, nossos irmãos
admiráveis, estão sós no infinito barulho e promiscuidade, na ilha de trabalho
a que se condenaram. E o faroleiro no seu farol, o aviador na sua máquina, e
esse homem ou essa mulher sem rosto, que velam por um gerador ou mexem uma
panela na chapa de ferro, e que ajudam a vida a continuar, em sua humildade sem
prêmio.
Entre o prazer e a abstenção,
encontraste no carnaval este secreto encanto: é uma festa que a uns permite a
extroversão, a outros dá ensejo de fugas marítimas ou campestres, e a ti
oferece o exercício da arte difícil e nobre de estar só.
[Ilustração: D. Esteves]
Carnaval,
alegria guerreira https://bit.ly/3IgoGR6
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