MARACATU PIABA DE
OURO: ESTE ANO TEM CARNAVAL
A poucos dias de sair às ruas após
um hiato de dois anos, o maracatu fundado por Mestre Salustiano, em 1977, se
prepara para voltar à folia
TEXTO E FOTOS CHICO LUDERMIR/Revista
Continente
Fantasias espalhadas
no galpão da Casa da Rabeca indicavam um sonho. A espera por
dois anos sofridos, intermináveis, sem Carnaval estava, por fim, prestes a
acabar. Lantejoulas voltando a serem bordadas em golas de caboclo de lança,
penas outra vez coladas nos chapéus de arreia-mar, reparos em roupas de índias
e baianas que não aguentavam mais o cheiro de guardado. Na sede do Maracatu Piaba de Ouro,
na Cidade Tabajara, em Olinda, tudo naquele fim de tarde de semana pré-carnavalesca
parecia estar como deveria ser: a todo vapor, como de costume há mais de 40
anos.
Desde
1977, quando foi fundado por Manoel Salustiano – um dos mestres mais importantes da
cultura popular de Pernambuco –, aquele maracatu de baque solto nunca tinha
deixado de sair às ruas um Carnaval sequer. Ligeiros e difíceis de pegar, como
o peixinho de água doce da região que dá nome ao brinquedo, as “piabas” estavam
de quarentena desde 2020, quando a pandemia ceifou vidas, suspendeu a alegria e
os carnavais. A espera castigou forte a família Salu que, há décadas, tem na arte um motivo
para estar viva e, ao mesmo tempo, um meio de sobrevivência.
Ao redor
das fantasias em confecção, quatros gerações somavam esforços para dar conta de
deixar tudo preparado para o próximo domingo (19/2), quando mais de 200
folgazões sairão em três ônibus lotados, para ganhar as ruas lotadas de Olinda. Ana,
costureira e uma das ex-mulheres de Salu, tecia os bicos das roupas, enquanto
Betânia, uma entre as 15 filhas e filhos do mestre, pregava com cola quente um
chapéu. Ao lado dela, Jemerson, neto do fundador, cortava uma gola pequenina:
era para seu filho caçula, o mais novo entre os bisnetos. Irlan, com pouco mais
de um ano, vai brincar em 2023 o seu Carnaval de número um.
Ver a desenvoltura de
Irlan ao provar uma gola de maracatu pela primeira vez é se deparar com uma
tradição ancestral, que corre no sangue e veio junto com Salu e seu pai – João
Salustiano – da cidade de Aliança, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, nascedouro de muitos brinquedos. “A partir de
hoje, eu não corto mais cana”, disse Salu a João pouco antes de rumar à cidade
grande. Em Olinda, trabalhou em serviços gerais, casa de família e vendeu
picolé. E do pouco que ganhava, investia nos folguedos, num misto de desejo por
valorizar a cultura do seu povo e de necessidade de levar consigo as
brincadeiras que o constituíam, a sua própria terra. E foi assim, reunindo a
família, que, além do Piaba, montou também o cavalo-marinho Boi Matuto, o
Mamulengo Alegre, a Ciranda Nordestina e o grupo Família Salustiano e a Rabeca
Encantada.
Ver Irlan se preparar para brincar Carnaval pela
primeira vez é também entender uma dimensão muito própria da cultura popular: o
seu caráter de transmissão oral e familiar. Ou como disse Maciel Salu, também filho do mestre, “a brincadeira de
terreiro só se perpetua dentro terreiro, quando os mais novos veem os mais
velhos e mais velhas brincarem”.
Não é de forma nenhuma por acaso que sejam os filhos, filhas,
netos e netas de Salu os que tocam o Piaba de Ouro com a mesma paixão do pai e
avô, falecido em 2008. O convívio cotidiano nunca colocou fronteiras entre
família e brincadeiras. E a casa sempre foi também o lugar dos ensaios, da
confecção e até do alojamento para os foliões durante o período carnavalesco.
Chamada pelo apelido de Moca, Imaculada Salustiano, outra filha do mestre,
lembra-se bem de dividir o quarto com golas e tecidos de fantasias na infância.
“A gente muitas vezes dormia no sofá, porque as camas estavam todas tomadas por
alegorias e adereços”, conta. “A nossa sede era nossa própria casa. Salu dava a
vida pelo maracatu e a gente viu isso desde criança.”
Assim como Irlan, Moca também começou a brincar desde o ventre da
mãe. O Piaba de Ouro a viu nascer e dar os primeiros passos ao som frenético do
terno de maracatu. Mas, diferentemente dos irmãos homens e mais velhos, ela
teve que disputar seu lugar. “Maracatu é coisa de cabra macho”, dizia Salu. Até
que ela, com pouco mais de 10 anos e seu jeito cativante – que carrega até hoje
– convenceu o pai de deixar ela e a irmã Betânia desfilarem de baianas. “A
gente tinha substituído dois rapazes que tinham faltado à sambada. Depois desse
dia, cheguei e disse enquanto fazia um cafuné nele: ‘A partir de agora a gente
vai ficar fixa como baiana, né, pai?’”, relembra. Salu relutou, mas, ao ver a
filha amuada, cedeu. E com seu jeito, ao mesmo tempo rígido e amoroso,
sustentou a presença das meninas diante de olhares reprovadores: “As filhas são
minhas, o brinquedo é meu. Então elas vão brincar”.
A participação
pioneira de Moca e Betânia no Piaba, e ainda no cavalo-marinho da família,
marcou a abertura de um espaço de destaque para mulheres que hoje, além de estarem no costumeiro
lugar dos bastidores, ocupam posições de decisão. Moca não só desfila como
cabocla de lança – o que, por muito tempo, foi impensável dentro do universo
tradicional da cultura popular –, como é a primeira e atual presidenta do Piaba
de Ouro, posto já ocupado por seus irmãos Maciel, Manoelzinho, Pedro e Dinda.
Faltava uma semana exata para o primeiro desfile do grupo após
um par de anos sem botar o brinquedo na rua. O sol quente do começo da tarde
daquele domingo deixava o chão batido da Casa da Rabeca mais amarelo e a
escultura do Mestre Salustiano gigante empunhando uma rabeca, com uma luz bem
viva. O cenário de contraste de cores do ensaio geral que começaria dali a
pouco marcava o reencontro dos folgazões com aquele terreiro e o início de um
período de resguardo e preparo para os dias de Momo. Desse preparativo, cada
brincante já levaria consigo sua fantasia. Para os de dentro, era chegada a
hora da culminância de um ano inteiro de dedicação.
De longe, víamos Moca se aproximar. Acabara de descer a rua de sua
casa e caminhava em direção ao galpão principal para se juntar às irmãs Mariana
e Betânia, também moradoras do mesmo sítio. Elas já aguardavam Moca para o
ensaio. Quando vivo, Salu comprou um terreno e deu um pedacinho de chão para
cada um dos filhos construir sua casa perto da dele e, sustentando o seu
legado, até hoje, boa parte deles se mantém morando ao redor da Casa da Rabeca.
“A gente sempre diz que Salu era como uma galinha que sempre anda arrodeada dos
pintinhos”, brinca Betânia. “Desde sempre foi assim. Para onde ele ia, ele
sempre levava a gente.”
Tudo ali no Piaba de Ouro ainda ressoa a existência de Mestre
Salustiano. Seja nos genes e nas memórias dos que ficaram, ou na dedicação e
entrega dos que, como ele, assumiram a responsabilidade de manter viva uma
tradição popular, um patrimônio. “Esses últimos dois anos foram muito difíceis
pra gente. E esse Carnaval que se aproxima vem cheio de esperança, mas também
de incertezas”, confessa Mariana. “A expectativa é muito grande, e a ansiedade
maior ainda.”
Aos poucos, o terreiro foi se enchendo. Ao som das rimas dos mestres
Gleibson e Cleiton, os folgazões executavam suas manobras entres saltos e
quedas no chão. Quando o terno começou a tocar, qualquer dúvida parecia se
suspender. E a certeza se fazia presente no corpo de cada brincante. Este ano o
Piaba sai. Este ano vai ter Carnaval.
Para acompanhar o Piaba:
Domigo (19/2)
16h Casa da Rabeca – Cidade Tabajara, Olinda
20h Polo Varadouro – Sítio histórico de Olinda
Segunda
(20/2)
9h Largo do Guadalupe – Sítio histórico de Olinda
11h Encontro de Maracatus Praça Ilumiara – Cidade Tabajara, Olinda
22h Sambada em Chã de Esconso – Aliança, Zona da Mata Norte
Terça
(21/2)
9h Praça do Carmo – Sítio histórico de Olinda
18h Marco Zero – Bairro do Recife
CHICO LUDERMIR, jornalista e mestre em Sociologia. É
escritor, artista visual e educador popular.
Pierrôs e Colombinas são para sempre https://bit.ly/3Ye45TD
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