O escândalo da Americanas: bom jornalismo é ruim para os negócios
Esse
apagão jornalístico não é caso isolado e ocorre toda vez que o estrago causado
pela elite econômica emerge. Como fica difícil de ignorar o tamanho da
encrenca, a cobertura da imprensa faz um trabalho de redução de danos, aborda o
assunto pelas franjas e evita expor os personagens
Luís Humberto
Carrijo/Le Monde Diplomatique
Se a imprensa corporativa entendeu
que a Lava Jato, por conta do apelo midiático que exercia na audiência, com
reviravoltas e prisões espetaculares de políticos e empresários graúdos, era um
assunto para ser trabalhado em ritmo de seriado dramático, com alguma dose de
sensacionalismo, o escândalo da Americanas oferece em tese todos os
ingredientes de que a grande mídia precisa para desenvolver um jornalismo
investigativo instigante: gente importante, grandes somas de dinheiro, “inside
information”, mistério, provavelmente intrigas, ameaças e corrupção nas altas
esferas do poder econômico, al ém de indicar se tratar de um crime perfeito.
Mas ao contrário, o que vemos é
uma cobertura burocrática, asséptica e previsível como são as notícias da
temporada de compras Black Friday. O que mudou? Os atores. Enquanto na Lava
Jato os protagonistas eram as lideranças
do PT, pelas quais a imprensa nutre
antipatia, no caso da Americanas são os homens mais ricos do país, incensados
cansativamente pelo “jornalismo independente e profissional”. A troca de
personagens faz uma grande diferença.
A inflexão não é um descuido.
Colocar em questão assuntos que contrariem a posição dos veículos e do
empresariado é buscar sarna para se coçar. Com o tempo, ensina Robert McChesney
– estudioso do papel que a mídia desempenha nas sociedades democráticas e
capitalistas -, os jornalistas bem-sucedidos simplesmente internalizam a ideia
de que é tolice e “não profissional” querer perseguir histórias controversas
que, em sua maioria, causam dores de cabeça e demandam muito esforço para obter
a aprovação da chefia – que exige cada vez mais provas “ir refutáveis” para
submeter ao escrutínio jornalístico um ator político aliado -, um padrão
absurdo pela qual, como apontou a produtora da CNN April Oliver, “não teria
havido Watergate”.
Parece ser esse o caso do golpe
bilionário da Americanas. A cobertura jornalística tem sido extremamente zelosa
na apresentação dos fatos e de seus protagonistas. A dívida exorbitante de mais
de R$ 40 bilhões é ; abordada muito mais como um rombo contingente do que como
uma fraude deliberada (desculpe o pleonasmo).
A maior parte das notícias explora
as repercussões do caso para o mercado acionário, a guerra judicial entre os
bancos credores e a varejista, as possíveis implicações do pedido de
recuperação judicial e as alternativas para os milhares de pequenos acionistas
e fornecedores, questiona como um rombo daquela magnitude pôde ter passado
despercebido aos olhos dos executivos, dos sócios de referência, da auditoria
externa e dos órgãos de fiscalização e especula sobre as medidas que deveriam
ter sido tomadas para que a inconsistência contábil não acontecesse e quais as
providências que o Conselho de Valores Mobiliários, órgão normatizador, deverá
tomar. Nem os editoriais – dois apenas (O Globo e Folha de S. Paulo ) -, que
costumam ser contundentes e intransigentes com as autoridades, os servidores
públicos e as políticas econômicas que lhes desagradam, aplicaram um tom quase
que indulgente sobre o calote.
Enquanto isso, ao contrário da
práxis corriqueira nas páginas policiais e políticas, em que suspeitos de
crimes e esquemas de corrupção são rapidamente expostos, até agora estão
envoltos em mist& eacute;rio os responsáveis por uma das maiores falcatruas
contábeis do país, apesar das fortes suspeitas de que se trata de um golpe de
mestre, não de um problema de governança. A descoberta de que o ex-CEO e a
então diretoria da Americanas, cujos nomes estranhamente pouco aparecem nas
matérias, venderam R$ 241,5 milhões em ações da companhia no segundo semestre
de 2022 é evidência indiscutível de má-fé e de que a fraude nos balanços da
varejista foi um plano bem arquitetado.
A falta de interesse na cobertura
jornalística para revelar os culpados e provocar uma reflexão sobre a
permissiva lei das S.A., sobre a frágil proteção ao consumidor e aos pequenos
fornecedores, sobre a selvagem desregula& ccedil;ão dos mercados e sobre a
responsabilização penal dos crimes de fraudes não apenas pouco tem ajudado a
esclarecer quem é o vilão dessa “pirotecnia contábil” como tem contribuído para
criar uma nuvem cinzenta que engolfa a história, tergiversa e deixa confuso
quem vê de fora toda essa bagunça. Mesmo os sócios de referência da Americanas
– Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira -, sob inevitável
pressão dos credores e da Justiça, ainda gozam do infinito benefício da dúvida
por parte da mídia, que até outro dia os tratava como os semi-deuses do
“capitalismo do bem”, ou seja lá o que isso quer dizer.
Até que um jornalista
investigativo faça o dever de casa, como se atreveram os advogados de defesa do
BTG , que meteram o dedo na cara dos festejados bilionários chamando-os de
fraudadores , a percepção de quem acompanha pe lo noticiário o desenrolar das
apurações é a de que essa lambança não resulta de um golpe de caso pensado, mas
de mero efeito colateral do arriscado mundo dos negócios. É do jogo!
É como se os jornalistas que
cobrem e comentam o assunto fossem orientados pela chefia a não colocar em
questão o caráter dos super-ricos e o mito de que as corporações são os faróis
da meritocracia, da moralidade e da eficiência, a não questionar os alicerces
do liberalismo, quais sejam a desregulação dos mercados, o corte de impostos e
o acúmulo de capital, ou a disfuncionalidade desse modelo capitalista para a
sociedade brasileira.
Esse apagão jornalístico não é
caso isolado e ocorre toda vez que o estrago causado pela elite econômica
emerge. Como fica difícil de ignorar o tamanho da encrenca, a cobertura da
imprensa faz um trabalho de redu&cced il;ão de danos, aborda o assunto
pelas franjas e evita expor os personagens centrais da barafunda até o episódio
virar memória.
A lista é grande, como o das
varejistas Magazines Luiza e Americanas que vendem produtos de marcas acusadas
de trabalho análogo à escravidão, das gigantes de tecnologia que usam ouro
ilegal de terras indígenas brasileiras, do cartel da Crutale que levou milhares
de pequenos agricultores à ruína financeira, das milhares de famílias que
perderam suas casas pela mineração da Braskem, em Maceió, da fabricante de
alumínio Norsk Hydro, responsável pela poluição de rios com resíduos tóxicos
que adoeceram comunidades quilombolas e povos indígenas no Pará, e a vista
grossa que os bancos fazem para o desmatamento causado por seus clientes.
Não se pode esquecer da Operação
Zelotes da Polícia Federal deflagrada 2015 visando investigar um esquema de
corrupção no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (CARF), órgão colegi
ado do Ministério da Fazenda, responsável por julgar os recursos
administrativos de autuações contra empresas e pessoas físicas por sonegação
fiscal e previdenciária. Foram investigadas ao menos 70 empresas, com destaque
para a Gerdau, BankBoston, Mundial-Eberle, Ford, Mitsubishi, Santander,
Bradesco, Banco Safra e o Grupo RBS, afiliado da Rede Globo no Rio Grande do
Sul, todos com dívidas fiscais milionárias em jogo.
Por fim, o rompimento das
barragens da mineradora Vale em Brumadinho e Mariana. Que fim deram o ex-CEO da
companhia, os demais membros de sua diretoria e os responsáveis pelos frágeis
laudos técnicos que atestaram a estabilidade das barr agens? A exemplo de
outros peixes graúdos enrolados em crimes e denúncias de toda ordem, Fabio
Schvartsman, presidente da mineradora à época dos desastres, parece estar bem.
Apesar da tragédia ambiental e da morte de mais de 270 pessoas, continua corado
com sua imperturbável vida de luxo e glamour e seu sono reparador protegido por
medalhões da advocacia, às expensas da Vale. Reapareceu na cena corporativa
brasileira no ano passado numa espécie de reabilitação no mundo dos negócios.
A proximidade que existe entre os figurões da elite dominante e a cúpula dos
jornais e emissoras de TV dificulta ainda mais a disposição dos veículos em ir
a fundo na apuração jornalística. Os laços estreitos, notou o estudioso Silvio
Waisbord , constrangem as organizações midiáticas de irem atrás dos segredos
dos envolvidos, que transitam nos mesmos ambientes exclusivos por onde
perambulam os magnatas dos grandes grupos de comunicação. Têm a mesma origem
aristocrata, compartilham a mesma visão de mundo e criam vínculos afetivos que
vão além do pacto ideológico.
Registro raro da intimidade dos
moradores do andar de cima foi o jantar, flagrado em setembro de 2021, no
apartamento de Naji Nahas, que resume com inteireza a relação promíscua entre
mídia e gente poderosa com ficha suja. Al&eacu te;m do anfitrião,
especulador preso por corrupção e lavagem de dinheiro, mais conhecido como “o
homem que quebrou a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro” , estavam no repasto o
ex-presidente Michel Temer , detido pela Polícia Federal por corrupção ativa e lavagem
de dinheiro, seu amigo e advogado José Yunes , preso pela PF e acusado de ser
intermediário de propina, e o presidente do PSD, Gilberto Kassab, indiciado
pela PF pela propina de R$ 58 milhões recebidos do grupo J&F . Junto a
essas celebridades de reputação questionável estavam os jornalistas Roberto
D’Ávila, apresentador e diretor da GloboNews, João Carlos Saad, presidente do
Grupo Bandeirantes, e o jornalista Antonio Carlos Pereira, que foi diretor de
opinião do jornal “O Estado de S. Paulo”.
A cumplicidade e a descontração
reveladas em vídeo nos levam a desconfiar da independência que teria a redação
do veículo de qualquer um daqueles prepostos da grande mídia para apurar em
profundidade seu s pares sociais. Daí, explica Waisbord, o porquê de os jornalistas
serem propensos a fornecer uma cobertura complacente ou a ignorar as
transgressões de gente poderosa do mercado.
O jornalismo investigativo
brasileiro é seletivo. O compromisso da imprensa corporativa em combater a
corrupção, em revelar as irregularidades de autoridades e empresários depende
em grande medida de quem as comete. Citando mais u ma vez Robert McChesney, o
mais producente e prudente, no entendimento dos jornalistas mais experientes, é
gerar histórias de fórmula testada e comprovada que custem pouco, que se
ajustem bem aos objetivos comerciais dos meios e não antagonizem com os
interesses da elite e dos anunciantes. Afinal, como resumiu o escritor e
colunista Richard Reeves sobre a visão pragmática dos executivos que governam o
mundo da mídia: o bom jornalismo é ruim para os negócios.
Luís Humberto Carrijo é
sócio-fundador da agência de comunicação Rapport Comunica, especializada em
relacionamento com a imprensa para o funcionalismo público e autor do livro “O
Carcereiro – o Japonês da Federal e os preso da Lava Jato”.
Instagram: @imprensa_sem_disfarce
Twitter: @IDisfarce
Youtube: @ImprensaSemDisfarce
[1] https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial/coluna/2023/01/caso-americanas-e-oportunidade-para-maior-transparencia-no-varejo.ghtml
[2] https://www1.folha.uol.com.br
/opiniao/2023/01/americanas-em-queda.shtml
[3] https://static.poder360.c
om.br/2023/01/mandado-seguranca-btg-justica-rj.pdf
[4] https://www.poder360.com.br/economia/em-pedido-a-justica-btg-critica-americanas-e-trio-3g-capital/
Onde está a estrela da manhã? https://bit.ly/3Ye45TD
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