Da política externa da destruição ao retorno da integração
Com o retorno de Lula à Presidência, a geopolítica latino-americana deve se modificar em virtude da retomada brasileira da prioridade em termos de integração regional
Fábio Borges/Le Monde Diplomatique
A política externa brasileira no período de Bolsonaro na Presidência não priorizou a integração regional, enfraquecendo o Mercosul, mantendo-se fora da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e retirando-se da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac); desgastou muito o prestígio brasileiro em temas ambientais; pouco valorizou, em meio à pandemia, as articulações e organizações internacionais em temas de saúde; teve uma postura radicalmente ideológica, com atritos constantes com nosso maior sócio comercial, a China, e uma política de subserviência a Donald Trump nos Estados Unidos – a qual nem sequer significava algum tipo de aliança estratégica entre Estados.1 Essa série de posicionamentos representou um momento bastante atípico em nossas linhas gerais de conduta no Sistema Internacional.
Sobre a posição brasileira no Mercosul na época de Bolsonaro, Tullo Vigevani, professor emérito de Ciência Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp), argumenta que a situação do Brasil enfraqueceu o bloco.2 No entanto, entidades empresariais dos diferentes países (no caso brasileiro, a Confederação Nacional da Industria e a Fiesp) nos demonstram que o mercado comum não é um organismo que estaria prestes a morrer; a tendência era de continuidade com baixa intensidade. Janina Onuki, professora titular do Departamento de Ciência Política da USP, no mesmo sentido aponta que “é muito claro que desde 2014 o governo brasileiro perdeu interesse pelo Mercosul, mas […] no governo Bolsonaro a gente teve não apenas uma estagnação, mas sim um retrocesso, pois a postura do governo brasileiro não foi só de desinteresse, e sim foi uma posição de destruição do que tinha sido feito”.3 Especialmente nos avanços tão importantes em cooperação de atores não governamentais houve retrocesso, como é o caso da retirada do Brasil do Mercosul educacional.
Por outro lado, Celso Amorim pondera que a fortaleza do Mercosul “é que ele é absolutamente incontornável; não há política econômica, política externa dos países da região que não tomem o Mercosul como referência, nem que seja para falar mal […]. Eu não gosto de medir a importância do bloco apenas pelo comércio, mas nos vinte primeiros anos do Mercosul o comércio mundial tinha aumentado cinco vezes, e olha que aí você tinha China no meio; já o comércio intra-Mercosul tinha aumentado catorze vezes. Ou seja, ele continua sendo importante, a Argentina continua sendo o grande parceiro do Brasil e o Brasil segue sendo importante para a Argentina; em um mundo governado por grandes blocos, apesar de o Brasil ser grande, sozinho ele não é tão forte”.4
Sobre a Unasul, o organismo viveu um momento de profunda fragilidade, até mesmo antes da posse de Bolsonaro em 2019, pois, em 20 de abril de 2018, o Brasil e outros cinco países suspenderam sua participação no bloco. O então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Aloysio Nunes Ferreira, e os ministros das Relações Exteriores da Argentina, Paraguai, Colômbia, Chile e Peru enviaram carta à Presidência Pro Tempore da Unasul. No documento enviado ao chanceler boliviano, Fernando Huanacumi, que estava à frente da organização, eles informaram sobre a decisão de suspender, por tempo indeterminado, a participação nas reuniões do bloco.5
A Unasul foi fundada em 2008 como uma organização intergovernamental originalmente composta dos doze Estados da América do Sul. A entidade, assim como outros processos de regionalismo na América Latina, seguiu um modelo associativo intergovernamental, no qual os Estados soberanos são os principais atores na formulação e implementação desses mesmos processos. Ao contrário do modelo de integração da União Europeia (UE), por exemplo, no qual há instituições e organizações de caráter supranacional, na Unasul os Estados procuraram manter, acima da visão regional, o interesse nacional e a preservação das identidades nacionais soberanas. Ou seja, os conceitos de não intervenção, autonomia e autodeterminação dos povos eram valores inquestionáveis dentro da instituição.
Vale ressaltar que talvez esse cenário se transforme, pois com o retorno de Lula à Presidência em 2023 a geopolítica regional deve se modificar em virtude da retomada brasileira da prioridade em termos de integração regional. Em 6 de abril de 2023, os governos brasileiro e argentino formalizaram seus retornos à Unasul.6
O governo brasileiro formalizou em 15 de janeiro de 2020 também a decisão de suspender a participação do país na Celac, um organismo internacional composto de 33 países, sem a presença dos Estados Unidos. Uma nota do Itamaraty afirmou que o Brasil “não considera estarem dadas as condições para a atuação da Celac no atual contexto de crise regional”.7
Contudo, assim como no caso da Unasul, em 5 de janeiro de 2023 o governo brasileiro comunicou aos países-membros da Celac, pelos canais diplomáticos adequados, a reincorporação do país, de forma plena e imediata, a todas as instâncias do mecanismo, tanto as de caráter político como as de natureza técnica.8
Falta de pragmatismo
Recuperando o discurso na cerimônia de posse do ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro, Ernesto Araújo, em janeiro de 2019, já podíamos identificar o que chamamos de “política externa da destruição”, tanto que não faz menção ao nosso principal parceiro comercial – a República Popular da China – ou aos blocos dos quais participamos, como os Brics, grupo central na política externa brasileira durante os governos anteriores. O Brasil é então colocado como Ocidente, como parte de um só Hemisfério Americano e distante das relações com o Sul Global, como mostra Sawicka (2020) em sua análise sobre a autopercepção brasileira nas relações internacionais na era Bolsonaro.9
A crise diplomática com a China na pandemia iniciou-se em março de 2020, com publicações no Twitter do presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, Eduardo Bolsonaro (PSL): “Quem assistiu [à série] Chernobyl vai entender o q ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa +1 vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas q salvaria inúmeras vidas A culpa é da China e liberdade seria a solução [sic]”.10
Em 22 de abril de 2020, Ernesto Araújo publicou em seu blog o texto “Chegou o Comunavírus”, fazendo alusão ao regime chinês e à publicação de artigo do filósofo marxista Slavoj Žižek, marcando fortemente a oposição à China, aos mecanismos multilaterais (especialmente a Organização Mundial da Saúde) e ao “globalismo”.
Com os avanços das pesquisas para a produção da vacina, o laboratório chinês Sinovac Biotech, em cooperação com o Instituto Butantã de São Paulo, produziu a CoronaVac, aprovada pela Anvisa em 17 de janeiro de 2021. Em outubro de 2020, o Ministério da Saúde tinha negociado com o governo de São Paulo, responsável pelo Instituto Butantã, a compra de 46 milhões de doses – o acordo quase consolidado foi cancelado pelo ex-presidente; anteriormente, no mesmo dia, em sua página na rede social Facebook, ele respondeu ao comentário de um apoiador que acusava a China de ser uma ditadura com “NÃO SERÁ COMPRADA [sic]”.
Como alertado pela Embaixada de Pequim em Brasília, “a pena de tropeçar feio”11 veio com o atraso na entrega dos insumos para a produção da vacina e a dificuldade na negociação com a Índia para a compra de materiais para fabricação da vacina da Oxford/AstraZeneca, produzida em cooperação com a Fundação Oswaldo Cruz (RJ).12 Já com os indianos, o preço pago pela vacina foi duas vezes o valor pago pela União Europeia: os europeus compravam a AstraZeneca por US$ 2,16 a dose, enquanto o Brasil pagava US$ 5,25.13 A falta de pragmatismo do governo Bolsonaro foi impressionante, pois as relações comerciais entre Brasil e China foram extremamente dinâmicas nos últimos vinte anos e configuraram uma das ligações mais importantes entre emergentes no mundo hoje, como apontou o diplomata chinês Qu Yuhui, ministro conselheiro da Embaixada da República Popular da China no Brasil.14 Interessante notar que é uma balança comercial favorável ao Brasil, chegando a superávits de mais de US$ 30 bilhões em alguns anos. Por isso, Charles Andrew Tang, presidente da Câmara Binacional de Comércio e Indústria Brasil-China, de forma contundente, dizia que não entendia como parte da alta cúpula brasileira agredia a China e atuava de forma contrária aos interesses nacionais, pois não havia a menor lógica em atacar seu maior parceiro comercial.15 É claro, porém, que essas relações também trazem desafios, como ficam claras as tendências de reprimarização e desindustrialização que o protagonismo chinês gera no Brasil.
Terceiro governo Lula
Sobre a China, Amorim reconhece que realmente é um desafio, assim como o foram a Europa e os Estados Unidos em outros momentos, ainda que reconheça que o gigante asiático é mais sutil do ponto de vista político, sem colocar tantas condicionalidades, e remete à preocupação de Prebisch das relações do tipo centro-periferia.16 Nesse sentido, conclui que seria importante “remar contra a maré” e que processos de integração regional poderiam servir como um instrumento para lidar com o tema da reprimarização, em razão de o comércio intrabloco ser caracterizado por manufaturas. Conclui que a falta de dinamismo nos processos de integração na América do Sul hoje se deve mais a questões internas do que à influência chinesa.
O saudoso professor Marcos Costa Lima apontou complementariedades nas relações Brasil e China, já que o gigante asiático possui capital, é extremamente dinâmico e a região tem problemas graves de infraestrutura. Dessa forma, a China poderia ajudar na integração regional. E, se o comércio brasileiro hoje é concentrado em soja e minérios, “o problema é nosso, fruto de nossa estratégia suicida, porque, por exemplo, exportar soja significa exportar muita água, e isso está relacionado com os desastres ambientais pelos quais a região vem passando atualmente”.17
O tema da guerra na Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022, também trouxe controvérsias na atuação da diplomacia de Bolsonaro, que desembarcou em Moscou em 15 de fevereiro do ano passado e retornou ao Brasil no dia 18 do mesmo mês – portanto, semanas antes da invasão russa à Ucrânia. A visita do presidente recebeu críticas de outros países, como os Estados Unidos, por ter sido realizada em meio ao aumento da tensão entre a Rússia e a Ucrânia.18 Talvez, do ponto de vista diplomático e diante da complexidade da situação, essa relação com a Rússia não tenha mudado significativamente no governo Lula, que, como apontaremos, procura uma postura independente e autônoma diante desse conflito.
A diplomacia do terceiro governo Lula parece bastante condizente com a que foi praticada em seus dois primeiros períodos (2003-2010): prioridade na integração regional, protagonismo em questões ambientais e defesa do multilateralismo e da paz, tentando ser um dos possíveis mediadores no conflito Rússia e Ucrânia; resumidamente, “a autonomia pela diversificação”. O grande desafio é que o mundo mudou bastante desde 2000 e não é seguro que seja possível alcançar os mesmos resultados de uma época de boom de commodities, sem pandemia nem conflitos da dimensão hoje representada pela guerra na Ucrânia e com a escalada de tensões entre Estados Unidos e China no Sistema Internacional. Na região latino-americana, o cenário é de uma “nova onda rosa”, mas com crises profundas na maioria dos países, com destaque para as de Venezuela e Argentina.
O apoio à reativação de um Mercosul mais dinâmico, o retorno à Unasul e à Celac, e a valorização dos Brics, como constatado na indicação e nomeação de Dilma Rousseff para a presidência do Novo Banco de Desenvolvimento dos Brics, sinalizam uma retomada de nossas tradições em política externa e podem trazer muitos frutos. Entretanto, é necessário refletir sobre os erros do passado e cuidar para que as instituições regionais sejam mais estáveis e para que internamente cada país seja prudente em relação aos avanços da extrema direita no continente – que em geral dificulta a integração regional em uma perspectiva multidimensional, tão necessária para fazer frente aos desafios impostos pelo cenário internacional.
[Ilustração: Vitor Flynn]
*Fábio Borges é diretor do Instituto Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
1 Sobre a política externa de Bolsonaro, Andrea Ribeiro Hoffmann, professora associada do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, argumentou, no mesmo sentido apontado, que “o Brasil tinha uma conexão estratégica com a China via Brics. Mas agora, desde a queda de Dilma, a situação mudou completamente. O Brasil está em um momento muito particular, aí sim já no governo Bolsonaro, de uma perspectiva unilateral, no estabelecimento de um privilégio dos EUA, que nem sequer se configuraria uma aliança estratégica, simplesmente um apoio a Trump de forma cega. A política externa brasileira praticamente não existe. É uma inflexão, mas sem força, porque ele está praticamente sozinho, inacreditável” (entrevista concedida a Fábio Borges e Edith Venero Ferro, 30 ago. 2021).
2 Entrevista concedida a Fábio Borges e Edith Venero Ferro (23 ago. 2021).
3 Entrevista concedida a Fábio Borges e Edith Venero Ferro (28 ago. 2021).
4 Entrevista concedida a Fábio Borges e Edith Venero Ferro (27 ago. 2021).
5 A iniciativa, segundo o documento, foi motivada pelo impasse com o governo venezuelano em relação à eleição do secretário-geral da entidade. Na carta, os chanceleres afirmam que a Unasul está paralisada desde janeiro de 2017 porque a Venezuela, com o apoio da Bolívia, do Suriname e do Equador, vetou o candidato argentino ao cargo de secretário-geral. Na época, o candidato era o embaixador argentino José Octávio Bordón. Apesar do veto, a Venezuela e os demais países não tiveram alternativa ao nome. Assim, a Secretaria-Geral ficou vaga. Ver Maiana Diniz, “Brasil e mais cinco países suspendem participação na Unasul”, Agência Brasil, 22 abr. 2018.
6 “O que é a Unasul e por que Brasil decidiu voltar a integrar o bloco”, BBC News Brasil, 7 abr. 2023.
7 “Brasil suspende participação na Celac”, DW, 16 jan. 2020.
8 Ministério das Relações Exteriores, “Retorno do Brasil à Celac”, Nota à imprensa n.5, 5 jan. 2023.
9 Monika Sawicka, “Quemando puentes y defendiendo la fe: la relación turbulenta entre Brasil y China en la era Bolsonaro”, Anuario Latinoamericano: Ciencias Políticas y Relaciones Internacionales, v.10, p.121-146, 2020.
10 @BolsonaroSP, Twitter, 18 mar. 2020.
11 @EmbaixadaChina, Twitter, 18 mar. 2020.
12 Jamil Chade, “Novo instrumento da geopolítica, vacina escancara erros do Itamaraty”, UOL, 20 jan. 2021.
13 Jamil Chade, “Para 1ª entrega, Brasil paga o dobro dos europeus por vacinas”, UOL, 22 jan. 2021.
14 Entrevista concedida a Fábio Borges e Edith Venero Ferro (20 set. 2021).
15 Entrevista concedida a Fábio Borges e Edith Venero Ferro (21 ago. 2021).
16 Prebisch sustentava que, ao contrário do que supunha a teoria das vantagens comparativas, a maior lentidão no progresso técnico dos produtos primários em relação aos industriais não estava motivando o encarecimento dos primeiros em relação aos últimos; na verdade, ocorria um processo que ele denominou deterioração dos termos de troca. As explicações eram complexas para esse fenômeno, perpassando pelas diferentes elasticidades entre preço da demanda dos produtos primários (inelásticos – pouco sensíveis às variações de preços) e industrializados (elásticos – quando seus preços diminuíam, seu consumo aumentava mais do que proporcionalmente à queda de seus preços), assim como a organização sindical avançada na Europa em comparação à da América Latina, que tinha abundância de mão de obra e era dispersa e desorganizada. Nesse sentido, as relações centro-periferia se caracterizariam pelas exportações de produtos primários dos países subdesenvolvidos (com economias pouco diversificadas e baixos valores agregados) para os desenvolvidos, que, por sua vez, exportavam produtos tecnológicos com altos valores agregados (economias diversificadas) aos subdesenvolvidos, aumentando a brecha econômica entre eles.
17 Em entrevista concedida a Fábio Borges e Edith Venero Ferro (28 ago. 2021).
18 “Governo coloca sigilo sobre viagem de Bolsonaro à Rússia”, Poder 360, 20 abr. 2022.
Elias Jabbour diz em entrevista https://bit.ly/3Nbr5za que "há hoje 42 tecnologias sensíveis no mundo, e a China está à frente em 37".
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