08 junho 2023

Saúde privada: crise?

Concentração de capital e os limites da saúde privada

Economista da UFRJ traça um panorama detalhado da situação do setor suplementar no Brasil. Sua “crise” parece apontar que a saúde voltada ao lucro é uma lógica ineficiente. Também por isso, é preciso que o Estado deixe de financiá-la
Gabriel Brito/OutraSaúde

 

O setor privado de saúde passa por um momento peculiar. De um lado, a saúde suplementar fechou o ano de 2022 com um medíocre lucro de R$ 2,5 milhões, margem infirma de 1 centavo para cada R$ 1.000 despendidos na prestação de serviços. De outro lado, grandes fusões e aquisições marcam cada vez mais o mercado, processo típico do capitalismo em sua fase globalizada, mas ainda recente neste setor no Brasil. Foram 73 transações do tipo apenas em 2021.

“Um dos aspectos desse processo de centralização são as combinações de negócios em atividades de saúde antes claramente separadas, funcionalmente distinguíveis.Quer dizer, atividade de empresas que se dedicam a diagnósticos, análises clínicas, exames de imagem, fora dos ambientes hospitalares assistenciais”, descreve Artur Monte Cardoso, economista e professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ, em entrevista ao Outra Saúde. “Normalmente era um ramo separado das redes hospitalares ou das empresas de planos de saúde. Já há algum tempo vêm ocorrendo processos de verticalização, quando uma empresa controla uma cadeia mais longa de atividades que servem ao objetivo final de controlar a assistência à saúde dos seus clientes.”

Na entrevista, Cardoso descreve o processo descrito como de centralização de capitais, repetidor da lógica de compras e fusões de grandes empresas de uma mesma cadeia produtiva, que geram processos complementares de suas operações, numa racionalização de custos e potencialização de margens de lucro. O economista colaborou com uma edição especial dos Cadernos de Saúde Pública da Fiocruz que tratou exclusivamente sobre o tema.

Na longa conversa com o Outra Saúde, ele explica o próprio processo histórico das grandes operadoras de serviços de saúde, que deixaram de ser empresas familiares para corporações com alto nível de profissionalização e os mais contemporâneos padrões de gestão – o que inclui a financeirização. Dessa forma, trata como natural que o resultado final do balanço da saúde suplementar de 2022 só tenha se salvado em razão dos bilionários ganhos em aplicações financeiras, conforme publicado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar.

“É verdade que outros componentes podem ajudar nesse resultado de 2022 e precisam ser melhor estudados”, reflete ele. “Precisamos saber o quanto cresceu o consumo de serviços dos clientes do plano de saúde, comparar com outros anos e saber se os clientes estão consumindo realmente muito mais serviços do que antes”. A inflação também teve um peso importante, em especial nos suprimentos de saúde: “houve ampliações de preço relevantes que podem ter impactado negativa e momentaneamente na conjuntura das empresas de planos de saúde”, explica.

Apesar das circunstâncias, Cardoso lembra do essencial: “o setor de planos de saúde durante muitos anos acusa uma crise, mas ela nunca aparece como uma crise terminal, uma crise estrutural. Essas empresas estão sempre crescendo e ampliando seus negócios”.

De toda forma, os últimos meses têm marcado importantes conflitos entre as seguradoras de saúde e seus próprios usuários. A batalha do rol taxativo foi um episódio marcante, com vitória das famílias que se mobilizaram pela garantia de que tratamentos em saúde não podem ficar restritos a um escopo previamente limitado. Agora, aparecem cada vez mais denúncias sobre cancelamento unilateral de planos de saúde em tratamentos caros, como câncer e terapias de autismo. Sinais que precisam ser lidos.

“A lógica do lucro tende a conflitar na medida em que ou inviabiliza a assistência integral ou torna impossível ampliar de maneira significativa o mercado das empresas, isto é, o número de clientes, sem reduzir a abrangência dos serviços aos quais as pessoas têm direito”, explica Cardoso, que enxerga que a estagnação de 25% da população brasileira com planos de saúde desde os anos 2000 pode significar que o setor bateu no teto. “O que parece ser visível é que a sustentação de tal mercado é um mecanismo de concentração de renda das maiores empresas, dos principais estados da federação em termos econômicos, das maiores cidades, onde os salários são maiores e as empresas mais dinâmicas, e não parece ser um modelo generalizável”, sintetizou.

Em sua visão, estamos chegando ao fim das ilusões de uma pressuposta eficiência do setor privado, ao passo que o SUS, mesmo subfinanciado, aparece como o sistema que cumpre a ideia de direito à saúde em sua totalidade. Por tabela, outro mito deve ser superado: o de que aumentar o número de usuários de planos de saúde desonera o Estado e alivia o SUS.

“A política de financiamento para o SUS não pode ser unicamente a de mais recursos. Tem que garantir menos recursos ao setor privado. Só dessa maneira é possível equacionar a estruturação do Sistema Único de Saúde. E existem várias maneiras de fazer isso, há experiências internacionais das mais variadas. O caminho inicial é que o SUS seja o articulador do sistema de saúde, para que mesmo as empresas privadas estejam a seu serviço”, sugere Cardoso.

Leia a entrevista completa.

Você fez parte de um grupo de pesquisadores que publicou nos Cadernos de Saúde Pública uma edição especial sobre centralização de capital no setor de saúde. Como você descreve esse processo?

A centralização de capital é um processo que envolve um conjunto de empresas, controladas por um número cada vez menor de proprietários. É um fenômeno que já vem ocorrendo há umas duas décadas no Brasil. Não é uma novidade no capitalismo e não é uma novidade no capitalismo brasileiro. Mas ocorre no Brasil junto ao crescimento do setor privado, um conjunto muito grande de atividades e empresas: planos de saúde, redes hospitalares, redes de diagnóstico ou de serviços assistenciais terapêuticos, indústria farmacêutica e rede de farmácias e drogarias, até alguns outros setores que entraram no radar mais recentemente e dizem respeito à saúde, como as Organizações Sociais que atuam na gestão de unidades básicas ou mesmo as escolas profissionais de saúde, como as escolas médicas, que também estiveram na nossa pesquisa.

É um fenômeno que conta pelo menos duas décadas e se acelerou no período abordado pela pesquisa, de 2009 a 2016. Ocorre por mecanismos simples: empresas maiores adquirem empresas menores, normalmente empresas que já atuam nos principais mercados de saúde privada no Brasil, capitais, cidades de médio ou grande porte, ou por meio da fusão de duas empresas que já atuam no setor, onde normalmente uma delas deixa de existir, ainda que continue usando a mesma marca. Isso vem acontecendo notadamente em planos de saúde, redes hospitalares e de diagnóstico, e claramente acompanha o crescimento do setor.

Junto disso, ocorre um processo de financeirização, crescimento do porte das empresas, elas se tornam maiores, têm uma profissionalização da gestão e a entrada de acionistas, investidores, fundos de investimento, brasileiros ou estrangeiros, com abertura de capital na bolsa. São todos fenômenos que acompanham o processo de crescimento, o que de certa forma é um amadurecimento de tais empresas privadas e alimenta a dinâmica de centralização.

Portanto, empresas maiores vão comprando empresas menores, se apropriando de uma fatia maior do mercado ou se fundem e tomam uma fatia maior do mercado, sob um controle unificado. A centralização é visível na prática, podemos enxergá-la pelo fato de alguns grupos controlarem parcelas crescentes dos mercados das atividades de saúde do Brasil.

Nos últimos tempos algumas operações de aquisições têm criado o que se chama verticalização do setor, a exemplo da compra pela Rede D’or, que opera hospitais, clínicas e laboratórios, da SulAmérica seguros, que vende planos. Ou seja, agentes de diferentes campos de atuação na área da saúde se tornando a mesma empresa. Isso evidencia que tal centralização de capital se amplia e talvez esteja numa fase apenas inicial ou intermediária? Quais seriam as explicações?

Um dos aspectos desse processo de centralização são as combinações de negócios em atividades de saúde antes claramente separadas, funcionalmente distinguíveis. Quer dizer, atividade de empresas que se dedicam a diagnósticos, análises clínicas, exames de imagem, fora dos ambientes hospitalares assistenciais. Normalmente era um ramo separado das redes hospitalares ou das empresas de planos de saúde. Já há algum tempo vêm ocorrendo processos de verticalização, quando uma empresa controla uma cadeia mais longa de atividades que sirvam ao objetivo final de controlar a assistência à saúde dos seus clientes. Nessas últimas duas décadas, planos de saúde fazem incursões em atividades assistenciais, compram ou constroem hospitais próprios para poder participar do negócio assistencial.

Por exemplo, os planos de saúde não objetivavam disputar o controle da atividade hospitalar, mas participar dela, serem capazes de influenciar o mercado, negociarem melhores preços com os seus provedores de serviços hospitalares e eventualmente também se apropriar de uma parcela dos lucros dessa atividade. Aconteceu com planos de saúde, cujo caso amadureceu para tipos de empresas de planos que tinham como modelo de negócios uma estrutura verticalizada, ou seja, apesar de dispor de uma rede credenciada de profissionais de saúde, médicos, fisioterapeutas, outras profissões da saúde e de clínicas de diagnósticos, buscavam ofertar a maior parte dos seus serviços por meio de rede própria ambulatorial, hospitalar, de diagnóstico etc.

Esse é o caso de duas empresas que cresceram na última década, a Hapvida e o Grupo Notre Dame Intermédica, por caminhos diferentes. As duas abriram o capital na bolsa e recentemente passaram por um processo de fusão, exatamente por terem um modelo de negócio muito parecido e uma complementariedade do negócio, o que eles chamam de praças, isto é, algumas cidades em que um era pequeno e outro maior. Aí eles se complementaram e passaram por um processo de fusão. Outros negócios mais recentes apresentam outros tipos de combinações, mas vão no mesmo sentido, como a mencionada transação entre Rede D’or e a SulAmérica, que busca ofertar aos clientes segurados pela SulAmérica os serviços da Rede D’or. Assim como negócios antigos já ocorriam, uma empresa maior, no caso a Rede D’or, visa participar da atividade de planos e também ter o poder de barganha para a negociar com outras empresas de planos de saúde os preços dos seus serviços.

Assim, a Rede D’or oferta serviço para outros planos, como Amil, Unimed, Bradesco Saúde, de modo que tenha uma melhor visão e participação no mercado e possa barganhar preços com seus outros pagadores, no caso, os outros planos de saúde. Este é um caso muito claro. Teve um outro também anterior que foi o do grupo Dasa, de medicina diagnóstica, com a Rede Ímpar, grupo hospitalar, uma combinação aqui sem planos de saúde, mas que segue uma mesma lógica.

E qual o denominador comum dentro dessas diferentes operações?

Uma vez estabelecidos grandes mercados no setor de saúde brasileiro, em que as empresas são avaliadas por grupos financeiros especializados, eventualmente boa parte com capitais abertos na bolsa e assim avaliados permanentemente pelas regras de governança, transparência, derrubam-se os limites de operação funcional de cada uma das suas atividades de origem e passa-se a poder operar nas mais diversas atividades, de acordo com um critério único de lucratividade e rentabilidade de investimentos.

É claro que há uma base econômica e técnica para que essas empresas atuem. É preciso que aquela junção de atividade possa dar algum tipo de sinergia, aproveitar algum setor cuja lucratividade seja maior que o outro e assim por diante, mas a lógica é que os capitais possam operar com muito mais liberdade e fluidez entre as distintas atividades.

Na nossa visão, é uma expressão da financeirização do capitalismo brasileiro e do setor de saúde do país.

Como isso dialoga com os resultados recentes da saúde suplementar, que teve déficit operacional e só conseguiu um raquítico resultado financeiro positivo em 2022 através de aplicações financeiras, conforme relatório divulgado pela ANS?

O primeiro contexto é o da pandemia, que levou a um represamento de muitos serviços assistenciais, até por orientações das autoridades sanitárias nos primeiros meses, quando se pedia que as pessoas evitassem realizar atividades que não fossem extremamente urgentes, só saíssem por emergências etc. Assim, muitas consultas, terapias, cirurgias eletivas e o próprio ritmo de consumo de bens e serviços de saúde, exceto a assistência à covid-19, tiveram forte desaceleração em 2020, o que gerou lucros recordes no setor. Isso foi paulatinamente mudando em 2021 e 2022, quando a demanda por tais serviços voltou a crescer.

O setor foi reaquecido pela pandemia. A pequena redução do número de clientes verificada no Brasil a partir da crise econômica de 2015-16, quando houve queda do PIB por dois anos seguidos, foi compensada nos últimos anos com a volta do crescimento do número de clientes. Agora, o número de clientes das empresas é equivalente ao último pico, verificado em 2014. Portanto, o setor não passa por uma crise, pelo contrário.

Em segundo lugar, o setor de planos de saúde teve um crescimento de suas receitas e das despesas de maneira proporcional mesmo neste contexto de crise econômica, quando se espera que a desaceleração econômica e ampliação do desemprego diminuam o número de pessoas cobertas por planos de saúde, pois os recebem como benefício empregatício, além de outras pessoas que veem sua renda diminuir e abrem mão de um plano de saúde. Mas na realidade, a despeito da crise econômica e de uma leve queda no número de beneficiários e clientes, o setor teve crescimento sucessivo de receitas nesses anos de crise econômica, o que contrasta drasticamente com a relativa estagnação dos gastos públicos com saúde nesse mesmo período, a partir de 2015. Fizemos até um trabalho, cuja primeira autora é a Daniele Pontes, que compara essas duas trajetórias, do setor público e privado.

É verdade que outros componentes podem ajudar nesse resultado de 2022 e precisam ser melhor estudados. Precisamos saber o quanto cresceu o consumo de serviços dos clientes do plano de saúde, comparar com outros anos e saber se os clientes estão consumindo realmente muito mais serviços do que antes. Também é preciso pensar nos preços. A inflação foi generalizada na economia brasileira e em algumas cadeias, particularmente de alguns suprimentos de saúde, houve ampliações de preço relevantes que podem ter impactado negativa e momentaneamente na conjuntura das empresas de planos de saúde.

Mas acredito que, diante da capacidade do setor em continuar crescendo nos últimos anos, tais resultados devam ser equacionados por reajuste nos preços das mensalidades, que recairão sobre empregadores e, no fundo, no conjunto da economia, porque os planos de saúde entram como custo de força de trabalho e são repassados nos preços finais dos bens e serviços das empresas que pagam planos para seus funcionários. E também vão ser repassados às famílias, que neste caso pagam por desembolso próprio.

O setor de planos de saúde durante muitos anos acusa uma crise, mas ela nunca aparece como uma crise terminal, uma crise estrutural. Essas empresas estão sempre crescendo e ampliando seus negócios.

Quanto à questão de aplicações financeiras comporem o resultado final dos balanços, talvez as pessoas estranhem, mas é preciso entender, em primeiro lugar, que empresas de planos e seguros de saúde são intermediárias financeiras. Elas recebem mensalidades antes; depois, pagam os custos e serviços usados pelos clientes. Isso é do ramo, da própria atividade, em alguns casos até por exigência regulatória, pois precisam de recursos em caixa para fazer os pagamentos.

Outra coisa é que empresas ditas não financeiras investirem em aplicação é algo muito recorrente, muito disseminado no capitalismo contemporâneo, independentemente do setor. No Brasil, que tem altas taxas básicas de juros, as aplicações financeiras são parte da atividade recorrente das tesourarias das grandes empresas e das famílias com altíssimas rendas, que acabam sendo fonte de renda para sua própria manutenção. Isso é uma coisa normal no capitalismo e no caso dos planos de saúde é esperado que eles tenham lucros com tais atividades.

Outro fato importante dos últimos dias é a denúncia de família sobre o cancelamento unilateral de seguros de saúde por empresas, relacionados a tratamentos caros, como de câncer ou terapias para autismo, para não falar da batalha do rol taxativo no ano passado, quando a polarização entre empresas e usuários ficou evidente. O que isso revela do negócio da saúde? Haveria uma inviabilidade crônica de ao menos uma parte dos serviços do setor conforme a demanda se amplia e complexifica?

Do ponto de vista das políticas públicas, no caso o SUS, o princípio é ofertar atenção integral, individual e coletiva. É claro que assistência integral não é uma assistência irrestrita. É preciso haver critérios sanitários e financeiros para que você estabeleça, como todos os sistemas de saúde do mundo, algum tipo de critério para saber o que é coberto ou não. Dito isso, nós perseguimos a assistência integral e o caso das famílias que tem tido tratamentos negados é um caso muito grave porque expressa incompatibilidade entre o negócio dos planos de saúde e a assistência a essas populações que necessitam de cuidados especiais, muitas vezes bastante caros, porque exigem equipes de profissionais de várias especialidades, alguns exigem medicamentos mais caros, tratamentos continuados.

O conflito do rol assistencial das empresas privadas de saúde, no ano passado, revela um conflito de duas faces. Primeiro, sobre os objetivos. O objetivo da política de saúde brasileira é garantir assistência integral. E eu acredito que as empresas de plano de saúde deveriam, dentro desse espírito, garantir assistência integral. Aqui, temos um conflito com os seus objetivos lucrativos. É a questão dos modelos assistenciais: os planos de saúde têm modelos de escolha, com incentivo à utilização de determinados bens e serviços muito grandes, sem que haja uma certa racionalidade sanitária. Mas isso é do negócio e inclusive é esperado pelos clientes.

Sistemas universais de saúde não funcionam assim, eles têm outras formas de organizar os fluxos, os cuidados longitudinais e outras formas de as pessoas acessarem o serviço. No caso do Brasil, temos os limites impostos pelo subfinanciamento crônico e pela competição com o setor privado pelos recursos assistenciais. Mas são lógicas muito diferentes. Este caso e o conflito em torno do rol taxativo/exemplificativo de 2022 expressam uma certa inviabilidade do modelo dos planos de seguro de saúde com o objetivo da assistência integral, que disputem os problemas dos limites para a assistência no âmbito da política pública, do controle e da participação sociais, da legislação, com base em informações, discussões técnicas e experiências internacionais. A lógica de organização de planos de saúde é uma lógica de mercado. O produto é o plano ou seguro de saúde e, portanto, ele está submetido ao objetivo dos proprietários, que é o lucro.

De certa forma, é um conflito insolúvel.

Como essa centralização de capital pode se refletir na qualidade do serviço prestado e nas condições de trabalho da mão de obra do setor?

De uma maneira geral, temos o conflito entre a lógica do lucro e o direito à saúde, um direito constitucional, para o qual há políticas assistenciais. O negócio dos planos de saúde cresceu de uma tal maneira no Brasil que ele se apresenta em boa parte do debate público, influenciado inclusive pela visão empresarial, como substituto do sistema público. para mim é muito claro que o subsetor de serviços privados não pode substituir um sistema público de saúde, que tem uma outra lógica de funcionamento, uma abrangência de competências e objetivos muito superior à mera assistência à saúde das pessoas adoecidas, embora em boa parte das vezes seja o que mais aparece para a população.

Portanto, a lógica do lucro tende a conflitar na medida em que ou inviabiliza a assistência integral ou torna impossível ampliar de maneira significativa o mercado das empresas, isto é, o número de clientes, sem reduzir a abrangência dos serviços aos quais as pessoas têm direito. Desde meados dos anos 2000 até os dias de hoje, estamos com cerca de 25% da população com acesso a alguns tipos de plano seguro de saúde. Isto é, esse mercado parece ter batido no teto. O que parece ser visível é que a sustentação de tal mercado é um mecanismo de concentração de renda das maiores empresas, dos principais estados da federação em termos econômicos, das maiores cidades, onde os salários são maiores e as empresas mais dinâmicas, e não parece ser um modelo generalizável.

Assim, ou a lógica do lucro conflita com as coberturas assistenciais, onde parece ter um limite, ou não consegue ampliar o número de clientes com o mesmo padrão de coberturas. E o que nós vemos é a proliferação de planos de serviços baratos, coberturas menores, o rol de profissionais disponíveis passa a ser mais restrito, com o credenciamento de redes hospitalares, ambulatoriais e de diagnósticos mais restrito. Na realidade, esse mercado comporta produtos muito diferentes, desde o plano de saúde “premium”, “top”, de grandes empresas, pessoas muito ricas, até planos de saúde muito baratos, com coberturas restritas, poucos profissionais credenciados. Exatamente porque é um mecanismo de concentração da renda, que viabiliza o acesso de parcela minoritária da população a tais produtos de saúde, assim como em outras áreas, onde certo padrão de consumo só é viável mediante concentração de renda. Esse é o primeiro conflito.

O segundo conflito é que dentro desta lógica os trabalhadores de saúde também tendem a não ter integralmente os seus pleitos atendidos, melhorias salariais, vínculos empregatícios, porque vemos uma grande precarização do trabalho no setor. E sem uma negociação global de carreiras no setor público de saúde, a realidade é que os profissionais da área tendem a ter vários vínculos empregatícios para garantir uma renda que se considere adequada à sua formação, às suas experiências, preferências profissionais etc. Isso acarreta em adoecimento dos trabalhadores, numa dificuldade muito grande de lidar com o trabalho e suas consequências, eventualmente no seu próprio trabalho essencial, o que é muito grave se nós considerarmos a força de trabalho de saúde como um todo.

Isso se reflete agora, por exemplo, no caso do Piso Nacional da Enfermagem, que no setor público foi equacionado de uma maneira política e colocado dentro da emenda constitucional negociada em dezembro na transição ao atual governo, de tal forma que se buscassem recursos no Governo Federal pra poder garantir a lei. É uma saída correta no âmbito da política, a fim de garantir aquilo que se considera prioridade. Claro que a gente pode discutir quais são os pisos dos outros profissionais de saúde, mas houve um mérito da enfermagem de conseguir colocar o piso salarial da categoria dentro de uma política pública. E o setor privado vai ter de considerar isso agora e dar garantias de remuneração mínima a seus profissionais, de acordo com a lei. É uma política pública para os profissionais da enfermagem, não para os profissionais de enfermagem do setor privado ou do setor público. É para todos eles.

Para a força de trabalho do SUS houve um acordo político para se financiar o piso. O setor privado vai ter de correr atrás para poder garantir esses recursos. Se nós estivéssemos tratando de um setor de um sistema público de saúde que atendesse recorrentemente uma parcela maior do que atende hoje, ou seja, se esse mercado de planos de saúde for significativamente menor e uma parcela ainda maior da população utilizasse o SUS como sua principal maneira de ser assistida, o SUS teria recebido mais profissionais e eles poderiam garantir seu piso salarial.

É claro que isso não é uma batalha ganha. É preciso agora passar pelo crivo da nova regra fiscal, o arcabouço fiscal, além da Lei de Diretrizes Orçamentárias, para que haja um acerto para que a valorização dos profissionais de saúde, dentre eles os da enfermagem, seja garantida. O setor privado não consegue fazer isso e aí nós temos um problema de incoerência, de inviabilidade do setor em garantir que sua força de trabalho receba o preconizado no piso. Esse é um problema do setor privado e seu modelo. E, se não conseguirem pagar o piso, as dificuldades do modelo de negócios do plano de saúde vão ficar cada vez mais claras.

Como o setor público, em sua visão, deveria olhar para isso e que conclusões poderia extrair?

Nossos estudos apontam, em primeiro lugar, uma espécie de amadurecimento das empresas do setor de saúde, que se tornaram grandes capitais no capitalismo brasileiro, espelhando o que acontece por exemplo nos Estados Unidos, em que as empresas de saúde são grandes empresas do capitalismo daquele país. Falo das seguradoras, empresas assistenciais, sem falar nas empresas da indústria farmacêutica, que já eram fortes há tempos. Esse amadurecimento faz com que ideias sobre regulação do setor privado, antes muito mais difundidas, passem a entrar em conflito com a realidade. Assim, é muito mais difícil o poder público ter mecanismos de regulação de atividades privadas do que antes. É verdade que não há tanta regulação de mercados, e sim critérios técnicos e sanitários para funcionamento do setor e uma certa regulação, imperfeita, feita pela ANS.

Mas essa regulação se torna muito mais difícil, pois a balança pende mais para o setor privado neste ponto de vista, pois tem maior visão do conjunto do setor e da parcela do setor de saúde que é mais bem remunerada e recebe uma fatia muito maior dos serviços. Um cliente do plano de saúde tem um padrão de gastos per capita muito maior do que o usuário do SUS. Assim, há mais acesso a serviços e bens e torna-se, portanto, um mercado privilegiado.

Falamos de um país que, apesar de gastar muito com saúde, quase 10% do seu PIB, tem no privado o lado majoritário de gastos, algo em torno de 60% do total (o que inclui desembolsos das pessoas por fora do mercado de planos de saúde). A primeira lição é essa, fica mais difícil regular, se é que havia condições.

Em segundo lugar, acho que fica claro, agora, dada a magnitude desses negócios, a sua complexidade, a sua capacidade de controlar recursos chaves do setor de saúde. E não são só recursos financeiros, como assistenciais, uma vez que o setor privado controla uma quantidade enorme de leitos hospitalares, equipamentos de assistência à saúde, contrata uma boa parte dos profissionais e compete diretamente com o SUS.

Portanto, na minha opinião, a abordagem do Estado brasileiro frente a esse mercado não pode mais ser aquela que era muito difundida, e incorreta, de que o setor privado alivia o SUS e, à medida que mais pessoas são atendidas no plano de saúde, o SUS ficaria aliviado por ter de atender menos pessoas.

Essa leitura deve ser invertida?

Sim, pois é exatamente o contrário: o fortalecimento do mercado privado pega recursos financeiros da sociedade que poderiam ser levados ao SUS, por meio de uma tributação mais progressiva, imposto de renda, sobre propriedade, mesmo impostos sobre serviços, que ficam concentrados nessa espécie de circuito fechado da saúde privada.

Além do dinheiro, o setor concentra profissionais de saúde, equipamentos assistenciais nos principais centros, recursos muito caros, muito importantes, que deveriam ser empregados para o SUS. Outros sistemas de saúde mundo afora têm no seu sistema público de saúde não apenas um grande provedor de serviços, mas também um sistema que compra os serviços privados existentes. Ou seja, o serviço privado tem de prestar serviços para o sistema público, não como acontece no Brasil, onde existe a mediação de um seguro de saúde.

Em uma solução definitiva, estruturante, aquela de garantir o direito à saúde, que é um direito constitucional do povo brasileiro, o SUS deveria ser aquele agente que controla os recursos assistenciais, sejam propriedades públicas ou privadas. É claro que aí tem um outro conflito, sobre o SUS ser capaz de cumprir essa função, o que hoje é muito difícil. Não há capacidade de centralizar recursos e planejar. Ele é muito fragmentado e subfinanciado. Mas a solução caminha nesse sentido.

O SUS tem se fortalecido como um provedor e também como aquele que vai garantir o acesso à população onde quer que ela esteja, com os recursos assistenciais disponíveis. Nós devemos fazer com que um profissional de saúde seja um trabalhador do SUS, independentemente do seu vínculo empregatício. Ele tem de ser o trabalhador do SUS para a população, sem contrapartida de pagamento no acesso à saúde pelo SUS, como se faz hoje.

O crescimento, fortalecimento e centralização de capitais, com a quebra das barreiras, a abertura de capital, a atração de investidores financeiros, profissionalização da gestão, metas de remuneração de dividendos dos acionistas, tudo isso compete para o setor privado de saúde se tornar ainda mais forte. E essa é a tendência, se tornar mais forte, mas muito distante daquilo que o Brasil precisa, que é um sistema universal com assistência integral, onde as pessoas possam ser atendidas independentemente da sua capacidade de pagamento, seu emprego e sua renda. Mas isso exige uma inversão de prioridades.

A política de financiamento para o SUS não pode ser unicamente mais recursos ao SUS. Tem que ser mais recursos ao SUS e menos recursos ao setor privado. Só dessa maneira é possível equacionar a estruturação do Sistema Único de Saúde. É mais público e menos privado. E existem várias maneiras de fazer isso, há experiências internacionais das mais variadas. O caminho inicial é que o SUS seja o articulador do sistema de saúde, para que mesmo as empresas privadas estejam a seu serviço, eventualmente por meio de experiências que aconteceram em outros países, estatização de serviços privados etc. O importante é que os recursos existentes no Brasil estejam a serviço do conjunto da população por meio do SUS.

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