04 junho 2023

Uma crônica de Cícero Belmar

Respeita, Januário!

Cícero Belmar*

 

A letra do baião é, praticamente, um conto. Relata que Januário, agricultor do pé da serra e tocador de pé-de-bode (sanfona de oito baixos), também era “tinhoso”. Que quer dizer o cão chupando manga. A letra da música desenha o mapa do grande Sertão para ninguém ter dúvidas: desde a cidade do Granito à da Rancharia, de Salgueiro a Bodocó, Januário era o maior.

Mas, justamente o filho dele, Gonzaga, voltou boçal do Rio de Janeiro. Trazia uma sanfona prateada, achando-se o máximo porque virou artista famoso. Até a Rádio Nacional o chamava Rei do Baião. Foi aí que lhe falou, meio zangado, o velho Jacó: “Tu podes ser famoso, mas teu pai é mais tinhoso e com ele ninguém vai, Luiz, respeita os oito baixos do teu pai”.

Conta a lenda que foi Januário a primeira pessoa que afinou um fole, transformando-o num pé-de-bode. Corria o ano de 1923. Portanto, há um século. O pai de Luiz Gonzaga não tinha dinheiro para comprar uma sanfona e adaptou essa de oito baixos. A arte de Januário virou mito nas quebradas dos sertões e deu a ele essa fama de tinhoso.

A sanfona dos oito baixos é o começo de tudo. Foi isso que ouvi, num fio de conversa do produtor e documentarista Anselmo Alves. Conversa que agora passo adiante. Ele estava dizendo, num bate-papo de mesa de bar, que a tradição da sanfona de oito baixos, que no Sertão Nordestino tem um código musical único no mundo, está acabando-se.

Anselmo fazia considerações a partir das programações para os festejos juninos, que a estas alturas já estão sendo fechadas e divulgadas por todo o Nordeste. Neste mês de junho, que entra na semana que vem, numerosas cidades têm festa quase todo dia. Nas programações há de tudo, do sertanejo à sofrência. Do piseiro ao forró estilizado, passando pelo brega rasgado.

Mas não há um único evento que ofereça palco para apresentação de sanfoneiros. De oito baixos, é que não tem mesmo. “Os mestres e tocadores, os poucos que ainda restam, não encontram mais espaço nos festejos tradicionais ligados à arte da sanfona, inclusive no São João”, analisou Anselmo Alves.

O pesquisador esteve em recente viagem pelos sertões. Em passagem pela cidade de Salgueiro, interior de Pernambuco, o produtor e documentarista encontrou o mestre Artur Simião, que mantém, sem apoio do poder público, sua oficina de afinar sanfonas. O mestre é um dos poucos que mantém essa arte de memória oral, cada vez mais rara. Como é a casa dele? Eu quis saber. Anselmo:

“Ele mora numa casa muito simples, de dois cômodos. Mas ninguém se engane com a simplicidade e o pequeno espaço de sua oficina. Seu Artur é genial! Afina e faz manutenção em sanfonas de 80, 120 baixos, além de afinar fole de oito baixos. Mas, ele é um dos nomes invisíveis da autêntica cultura popular”.

Anselmo compartilha a informação de que as sanfonas chegaram ao Brasil com afinação europeia. Os ciganos que perambulavam pelo Brasil apresentaram o instrumento ao interior do Nordeste. Januário foi um dos que fizeram a adaptação para os oito baixos. Certamente há outros mestres que também o fizeram. Aprenderam a tocar com o pé-de-bode Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Hermeto Pascoal.

O Rio Grande do Sul tem uma forte tradição de sanfona de oito baixos. Influência cigana? Lá, chamam de gaita de oito baixos. Havia dezenas de fábricas de gaiteiros, que foram desativadas. O grande Renato Borghetti deu continuidade à tradição. Não sei como está hoje.

Com sua autenticidade, a sanfona de oito baixos representa um saber único na cultura popular brasileira. Mas ela está em extinção. Anotei a seguinte frase de Anselmo: “Fica uma preocupante reflexão quanto à preservação e o reconhecimento deste saber tão importante, ligado às nossas tradições”. Fecho com ele.

*Jornalista, escritor

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