Respeita, Januário!
Cícero Belmar*
A letra
do baião é, praticamente, um conto. Relata que Januário, agricultor do pé da
serra e tocador de pé-de-bode (sanfona de oito baixos), também era “tinhoso”.
Que quer dizer o cão chupando manga. A letra da música desenha o mapa do grande
Sertão para ninguém ter dúvidas: desde a cidade do Granito à da Rancharia, de
Salgueiro a Bodocó, Januário era o maior.
Mas, justamente o filho dele, Gonzaga, voltou boçal do Rio de
Janeiro. Trazia uma sanfona prateada, achando-se o máximo porque virou artista
famoso. Até a Rádio Nacional o chamava Rei do Baião. Foi aí que lhe falou, meio
zangado, o velho Jacó: “Tu podes ser famoso, mas teu pai é mais tinhoso e com
ele ninguém vai, Luiz, respeita os oito baixos do teu pai”.
Conta a lenda que foi Januário a primeira pessoa que afinou um
fole, transformando-o num pé-de-bode. Corria o ano de 1923. Portanto, há um
século. O pai de Luiz Gonzaga não tinha dinheiro para comprar uma sanfona e
adaptou essa de oito baixos. A arte de Januário virou mito nas quebradas dos
sertões e deu a ele essa fama de tinhoso.
A sanfona dos oito baixos é o começo de tudo. Foi isso que ouvi,
num fio de conversa do produtor e documentarista Anselmo Alves. Conversa que
agora passo adiante. Ele estava dizendo, num bate-papo de mesa de bar, que a
tradição da sanfona de oito baixos, que no Sertão Nordestino tem um código
musical único no mundo, está acabando-se.
Anselmo fazia considerações a partir das programações para os
festejos juninos, que a estas alturas já estão sendo fechadas e divulgadas por
todo o Nordeste. Neste mês de junho, que entra na semana que vem, numerosas
cidades têm festa quase todo dia. Nas programações há de tudo, do sertanejo à
sofrência. Do piseiro ao forró estilizado, passando pelo brega rasgado.
Mas não há um único evento que ofereça palco para apresentação
de sanfoneiros. De oito baixos, é que não tem mesmo. “Os mestres e tocadores,
os poucos que ainda restam, não encontram mais espaço nos festejos tradicionais
ligados à arte da sanfona, inclusive no São João”, analisou Anselmo Alves.
O pesquisador esteve em recente viagem pelos sertões. Em
passagem pela cidade de Salgueiro, interior de Pernambuco, o produtor e
documentarista encontrou o mestre Artur Simião, que mantém, sem apoio do poder
público, sua oficina de afinar sanfonas. O mestre é um dos poucos que mantém
essa arte de memória oral, cada vez mais rara. Como é a casa dele? Eu quis
saber. Anselmo:
“Ele mora numa casa muito simples, de dois cômodos. Mas ninguém
se engane com a simplicidade e o pequeno espaço de sua oficina. Seu Artur é
genial! Afina e faz manutenção em sanfonas de 80, 120 baixos, além de afinar
fole de oito baixos. Mas, ele é um dos nomes invisíveis da autêntica cultura
popular”.
Anselmo compartilha a informação de que as sanfonas chegaram ao
Brasil com afinação europeia. Os ciganos que perambulavam pelo Brasil
apresentaram o instrumento ao interior do Nordeste. Januário foi um dos que
fizeram a adaptação para os oito baixos. Certamente há outros mestres que
também o fizeram. Aprenderam a tocar com o pé-de-bode Luiz Gonzaga,
Dominguinhos, Hermeto Pascoal.
O Rio Grande do Sul tem uma forte tradição de sanfona de oito
baixos. Influência cigana? Lá, chamam de gaita de oito baixos. Havia dezenas de
fábricas de gaiteiros, que foram desativadas. O grande Renato Borghetti deu
continuidade à tradição. Não sei como está hoje.
Com sua autenticidade, a sanfona de oito baixos representa um
saber único na cultura popular brasileira. Mas ela está em extinção. Anotei a
seguinte frase de Anselmo: “Fica uma preocupante reflexão quanto à preservação
e o reconhecimento deste saber tão importante, ligado às nossas tradições”.
Fecho com ele.
*Jornalista, escritor
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