As ilusões do Ocidente: não há como parar as transformações geopolíticas em curso
O surgimento do Brics foi o primeiro marco no processo de renovação da dinâmica capitalista internacional, apesar das enormes assimetrias entre seus membros
Charles Pennaforte/Le Monde Diplomatique
Uma grande parte dos especialistas ocidentais vem descartando um aspecto fundamental para uma boa análise: a lógica. Todos nós sabemos que uma grande parte destes especialistas não estão preocupados realmente em explicar os fenômenos que estamos vivenciando, mas sim moldá-los aos seus interesses ideológicos e políticos. O que estamos verificando desde fevereiro de 2022 é a aceleração do processo de transformação sistêmica e geopolítica de uma ordem internacional iniciada em 1945 e reformulada em 1989, com o fim da disputa ideológica entre Washington e Moscou.
A primazia dos EUA já está em declínio há bastante tempo e avançou com o fim da Guerra Fria, após um período de euforia com o possível “fim da história” sob sua liderança incontestável. Contudo, a realidade foi bem diferente do planejado em Washington. Novos atores internacionais foram reaparecendo e outros surgiram ao longo das última três décadas.
No século XXI, o surgimento do Brics foi o primeiro marco no processo de renovação da dinâmica capitalista internacional, apesar das enormes assimetrias, frequentemente destacadas pelos críticos ocidentais, entre seus membros. O eixo euro-atlântico começou gradualmente a perder importância. O segundo marco na mudança da dinâmica econômica e geopolítica no atual ciclo sistêmico de acumulação liderado pelos EUA foi a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) em 2014, também conhecido como o “Banco do Brics“. O NBD é um evento histórico, pois fornece outras fontes de recursos para o desenvolvimento de países hoje denominados “emergentes”, que busca m o crescimento econômico com bases mais justas.
Desde Bretton Woods o Ocidente manteve a hegemonia financeira no capitalismo internacional, ditando o ritmo de desenvolvimento do então chamado Terceiro Mundo, atrelando-o à aquisição de dólares (empréstimos) para a promoção do desenvolvimento. Analisando o quanto ilógico é um único país ter a sua moeda como reserva mundial e como isso pode ser utilizado como arma econômica contra uma nação ou grupou de nações, os membros fundadores do Brics já planejavam fugir desse domínio econômico e geopolítico há algum tempo. O conflito na Ucrânia acelerou tal processo.
O terceiro evento histórico no processo de construção de um mundo multipolar, sem a primazia do eixo euro-atlântico, ocorreu na 15ª Cúpula do Brics em Joanesburgo, neste ano. Além de marcar o compromisso com a multipolaridade, o grupo de países expandiu o número de membros e sua área geográfica de atuação. A transformação do Brics em um grupo “Brics Plus,” incluindo Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã, representa um sinal importante da nova dinâmica geoeconômica do capitalismo internacional no século XXI.
Sob o ponto de vista estatístico, o Brics é um gigante geopolítico e econômico. Dos 10 maiores produtores de petróleo do mundo, seis estão no grupo, representando 42% do comércio mundial. Além disso, o Brics detém 72% das reservas de minerais de terras raras do mundo. Em termos demográficos, a população do grupo passou de 41% para 46% da população mundial. O PIB em termos de paridade de poder de compra corresponde a 36% do total mundial. Estes são apenas alguns dos pontos que destacam a importância do Brics. Por exemplo, a Argentina, embora enfrente desafios econômicos, é uma potência na extração de lítio, com 13 projetos em desenvolvimento, muito à frente de qualq uer outro país. Com sua entrada no Brics, o grupo agora abriga três dos cinco maiores produtores de lítio do mundo, ao lado da China e do Brasil.
Apesar da máquina ideológica e de informação usada por norte-americanos e europeus para tentar obscurecer o atual momento histórico através de análises extremamente pessimistas, a realidade demonstra que o atual processo de consolidação do Brics é irreversível, mesmo com problemas pontuais entre seus membros.
Também é evidente que tanto Washington quanto Bruxelas relutam em aceitar o novo cenário geopolítico e econômico que está surgindo. De Washington, esperamos todas as formas de pressão direta e indireta para levar o Brics ao fracasso ou impedir sua consolidação. Bruxelas, por sua vez, deveria recuperar alguma autonomia em sua política externa em relação aos EUA, que usam a União Europeia como uma peça para a manutenção de seus interesses geopolíticos. Um pouco de bom senso por parte de alemães, franceses e britânicos seria muito importante neste momento. Afinal, é uma ilusão do Ocidente acreditar que pode deter as transformações geopolíticas em curso.
Charles Pennaforte é Doutor em Relações Internacionais e professor do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
O caleidoscópico tempo presente https://bit.ly/3Ye45TD
Nenhum comentário:
Postar um comentário