26 dezembro 2020

Vendo e vivendo

Doce mistério da vida

Cícero Belmar

 

Para nós, escritores e escritoras, que somos capazes de retirar os leitores da realidade objetiva para acreditarem em vidas e histórias de ficções,  deveríamos estar acostumados com os doces mistérios que parecem uma expressão das nossas energias. Com os fatos inesperados do dia a dia, que poderiam render um bom roteiro. Afinal, as coincidências e as fantasias não são feitas da mesma substância? Pois eu ainda me espanto e fico bastante reflexivo com certas ocorrências.

Os leves mistérios do cotidiano existem onde queremos vê-los. Vamos aos fatos: o interfone tocou na tarde do dia 26 de novembro. Era o porteiro informando que uma encomenda acabara de chegar pelos Correios. No pacote, o mais novo livro da escritora paulista Mariana Ianelli. Dia de Amar a Casa é uma coletânea de crônicas escritas entre 2017 e 2020, publicada pela Ardotempo. Superlivro, cuja capa tem uma reprodução de óleo sobre tela, da década de 1950, do famoso Arcângelo Ianelli, avô de minha amiga.

Não é preciso acreditar nas coisas invisíveis, mas também não somos obrigados a enxergar apenas as concretas: a chegada do livro de Mariana era um prenúncio de que, três horas mais tarde, teríamos uma grande notícia. As redes sociais bombaram, informando que a poetisa Cida Pedrosa recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Livro do Ano e o de Melhor Poesia com o livro-poema Solo para Vialejo, editado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). É o maior prêmio da literatura brasileira, jamais ganho por uma pernambucana.

Eu, Cida e Mariana somos amigos em comum. Fui eu quem apresentei uma à outra e as duas se entrosaram muito bem, pois ambas têm muita facilidade de comunicação, e de ver o lado bom das pessoas. Ficaram próximas a ponto de Mariana ter escrito o prefácio de Solo para Vialejo, a obra vitoriosa de Cida. Com formação de crítica literária, Mariana Ianelli arrasou na apresentação e ainda foi quem divulgou o livro-poema, pela primeira vez, em 2019, quando o colocou na página “Poesia Brasileira”, do jornal de literatura Rascunho, do qual é colunista.

Como sou eu quem faz o prefácio do livro de Mariana, e ela faz o de Cida, achei que tudo está interligado e que existem pequenos mistérios do dia a dia, nada demais, mas que é preciso ter olhos para senti-los. Apenas estou enxergando os laços que nos une e, como escritor, exercito aqui a minha capacidade de criar um bom motivo de leitura. Mas as coincidências não acabam aqui. Eu tive a alegria e a graça de ler ambos os livros (tanto o de Mariana quanto ode Cida) nos originais. Ouvi as angústias e alegrias das duas escritoras, cada uma a seu modo, durante o período que estavam produzindo essas grandes obras. Viver já é, em si, um doce mistério.

Só para encerrar, o que esses dois livros têm em comum? A capacidade de resgatar a vida, por meio das palavras, com rigor técnico e beleza estética; a força de traduzir de forma tão genuína as nossas verdades. O Solo para Vialejo, de Cida Pedrosa, conta, em poema, uma viagem que ela faz do mar para o Sertão. Viagem para fora e para dentro de si, que também tem a ver com as diásporas dos negros e índios. E com os sons que os acompanharam.

Dia de Amar a Casa são crônicas poéticas, ou poemas em prosa,  sensíveis, fortes, que têm musicalidade nas palavras. E falam um pouco do que é ser mãe, filha, neta, cidadã, criatura do planeta Terra, como bem observa o texto explicativo que há na quarta capa da edição. Enfim, são duas obras de muita sensibilidade artística, escritas por duas mulheres fantásticas.

*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 


[Ilustração: Manabu Mabe]

Veja uma dica de leitura: Raimundo Carrero https://bit.ly/3pCHkXY

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